Especial ECA 27 anos: diante da crise, Brasil precisa cuidar, mais do que nunca, de suas crianças e adolescentes

Por: GIFE| Notícias| 17/07/2017

No momento atual em que o Brasil vive, de uma intensa crise política, econômica e social, e com uma forte tendência a retrocessos nos indicadores sociais, cuidar da infância se torna ainda mais essencial e urgente. “Diante da redução de investimentos e à crise instalada, os primeiros a serem atingidos, e de forma mais dura, são os mais vulneráveis, principalmente as crianças e os adolescentes. Por isso, precisamos de uma atenção especial e cuidado na garantia dos direitos desse público. As violações a estes direitos têm um impacto muito grande e vão perdurar ao longo do tempo, não somente diretamente na vida destas crianças, mas com reflexos no desenvolvimento da sociedade como um todo”, analisa Guilherme Perissé, advogado do Programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana.

O debate ganha ainda mais destaque tendo em vista o fato de que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) completa neste mês de julho 27 anos da sua promulgação. Porém, apesar de todos os avanços que trouxe para o campo dos direitos da infância – principalmente em relação a tomar a criança como sujeito de direito e enfatizar a responsabilidade do Estado, da família e da sociedade na proteção integral das crianças e adolescentes – não é ainda aplicado com eficiência e eficácia no país.

“É fundamental lembrarmos a importância do Estatuto quanto uma legislação que transformou mesmo o direito brasileiro, pois criou toda uma nova doutrina, tirando esse olhar antes menorista em relação à infância. O ECA foi ganhando mais vigência ao longo dos anos, mas, muito do que está na legislação, ainda não é realidade para grande parte das crianças e adolescentes no Brasil”, alerta Guilherme.

Isso acontece, segundo os especialistas, pois, mais do que implementar uma lei, é preciso promover de fato uma mudança cultural na sociedade brasileira em relação à infância e à juventude. Marília Rovaron, coordenadora de projetos do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), lembra que não será um projeto de lei que conseguirá garantir um olhar humanizado para as crianças e adolescentes. E os dados nos ajudam a entender porque ainda temos tantos desafios de implementação do ECA.

“Se fizermos uma análise atual percebemos uma sociedade punitiva e que encontra eco nas políticas de Estado repressivas. A sociedade legitima práticas muito violentas. Uma pesquisa promovida em 2015 pelo Datafolha, por exemplo, durante o debate sobre a redução da maioridade penal, apontou que 87% das pessoas eram favoráveis à redução. No ano passado, outro estudo promovido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontou que 57% dos entrevistados achavam que bandido bom é bandido morto. Isso é alarmante”, ressalta.

Marília destaca que, junto ao público com o qual atua – meninos e meninas que cumprem medidas socioeducativas – esse cenário fica ainda mais evidente. “Para a sociedade, apesar do ECA ter rompido com a nomenclatura de ‘menores’, eles ainda são vistos como o ‘perigo das ruas’. Há vários mitos em relação a estes adolescentes, considerados infratores. Isso rotula e coloca-os em uma condição permanente. Sem falar que nós sabemos quem são aqueles que morrem: eles têm cor, gênero e endereço. São questões que atravessam a problematização sobre o ECA, mas não são debatidas. Precisamos ver o que está por trás disso, entender que sociedade é essa, e todos os direitos que vêm sendo retirados da população nesse retrocesso em que estamos vivendo. É um movimento violento. As políticas não permitem emancipação. Ainda é pelo viés do controle e da disciplina”, acredita a coordenadora do Cenpec.

 

Informação qualificada

Mudar essa cultura passa também por ampliar o conhecimento dos brasileiros de quais são, afinal, os direitos e os deveres dessas crianças e jovens no país. Algo que, na visão também dos especialistas, é essencial e que precisa ser disseminado.

O artigo 227 da Constituição Federal (1988), por exemplo, diz que: “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Ou seja, ele enfatiza que a infância e a juventude devem ser ‘prioridade absoluta’ para todas as ações da sociedade. E esse direito aparece como ponto pacífico entre os brasileiros: uma pesquisa realizada em 2013 pelo Instituto Alana mostrou que 94% das pessoas entrevistadas eram favoráveis ao cumprimento da regra da ‘prioridade absoluta’. Porém, ao mesmo tempo que concordam com este direito, não sabem do que ele se trata. A mesma pesquisa do Alana identificou que só 19% das pessoas estavam minimamente informadas e 81% pouco ou nada informadas sobre os direitos da infância. “É preciso ampliar e muito esse debate na sociedade”, ressalta o advogado Guilherme.

Foi a partir dessa constatação que o Alana decidiu criar o Programa Prioridade Absoluta, que já opera há quatro anos, com diversas ações no âmbito institucional e de mobilização. Entre elas, se destacam iniciativas como parceria junto às OABs (Ordem dos Advogados do Brasil), a fim de que se torne obrigatória a inclusão de disciplinas sobre os direitos das crianças e dos adolescentes nas faculdades de direito do Brasil. Hoje, a maior parte das faculdades não aplica essa matéria ou é optativa ou, quando tem, a carga horária é muito baixa.

Já entre as ações de mobilização, estão projetos como o realizado em parceria com o Ministério Público dos Estados do Ceará e São Paulo, em que são disponibilizados roteiros de atuação, com minutas de peças jurídicas elaboradas pelo programa, que orientam e trazem subsídios técnicos para que os promotores de justiça possam atuar localmente a fim de garantir o serviço e qualidade do transporte escolar para as crianças.

Outra parceria estabelecida pelo programa desde 2016 e que se estende nesse ano é com o Tribunal de Justiça de São Paulo para a realização de eventos nas regiões administrativas do Estado sobre o Marco Legal da Primeira Infância. Nestes encontros – já foram sete e, até o fim do ano, serão promovidas mais três – funcionários do poder judiciário e participantes da rede de proteção da infância da região (como Conselho Tutelar, Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, entre outros atores), discutem sobre o tema e têm a oportunidade de pensar em propostas práticas para a garantia destes direitos na ponta.

“Quando falamos sobre a prioridade absoluta presente tanto no ECA, quanto na Constituição, as pessoas, mesmo do universo jurídico, não conhecem. A nossa missão é justamente informar com o objetivo de sensibilizar e mobilizar os operadores de direitos para essa mudança de olhar”, ressalta Guilherme, destacando que, no site do projeto, é possível acessar textos, pesquisas, artigos e documentos que ajudam e orientam as pessoas a como atuar.

 

Empresas e direitos da infância

Diante da responsabilidade de toda a sociedade na garantia dos direitos das crianças e adolescentes, empresas, organizações da sociedade civil e membros da academia e representantes de diferentes instituições do governo, se reuniram para elaborar o “Protocolo de Ações para Proteção dos Direitos de Crianças e Adolescentes no Contexto de Obras e Empreendimentos”. O documento é resultado de um trabalho realizado no âmbito da Agenda de Convergência para Obras e Empreendimentos (“Agenda de Convergência”), coordenada pela Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos, e criada em 2014.

O Protocolo– que passou recentemente por uma consulta pública e agora irá para uma nova análise jurídica do Ministério de Direitos Humanos antes de ser lançado oficialmente – tem como proposta estabelecer medidas para a promoção, defesa e controle da efetivação dos direitos de crianças e adolescentes impactados em razão da realização de obras e empreendimentos no território em que se encontram; e que deverão ser adotadas pelos atores envolvidos em todas as etapas de realização de obras e empreendimentos, desde o planejamento até a operação.

O objetivo do Protocolo, nesses termos, é reduzir riscos e violações aos direitos de crianças e adolescentes no contexto de obras e empreendimentos, garantindo a efetiva proteção que lhes é atribuída nas normas nacionais e internacionais, tendo como base os princípios da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos.

Um diferencial desta iniciativa é o fato de ter sido construída de forma participativa por atores de diferentes setores – foram mais de quatro anos de trabalho e um termo de parceria assinado entre todos os envolvidos.

Zilma Ferreira, gerente do Instituto Invepar, participou da elaboração do documento, e ressalta a importância desta iniciativa, tendo em vista que, até então, nos processos de licitação e construção de obras, o destaque era para as obrigações contratuais em relação, principalmente, ao cuidado com o meio ambiente e nada a possíveis violações aos direitos das crianças e dos adolescentes.

“É fato que em municípios pequenos, principalmente, a interferência de uma grande obra é enorme. Ao mesmo tempo que temos fatores positivos, como o desenvolvimento econômico, temos diversos fatores negativos, como o aumento da exploração sexual, por exemplo, devido a ampliação de mão-de-obra externa. São fatores muito preocupantes e que não podem ser ignorados”, comenta.

O Instituto Invepar, inclusive, além de ter se envolvido diretamente neste grupo de trabalho para a elaboração do Protocolo, desenvolve diversas outras ações relacionadas à garantia dos direitos humanos, trazendo as diretrizes da ONU para dentro do negócio, assim como incorporando este enfoque de forma transversal nos projetos que implementa ou apoia nos territórios. Entre as iniciativas está o projeto “Inscrever os Direitos Humanos em 1000 Escolas”, que discute essa temática com os estudantes e, depois, produzem azulejos a serem instalados nas instituições de ensino.

 

Mais conhecimento

Ao longo do mês de julho, diversas iniciativas terão como foco central o tema da infância e da juventude. Confira algumas oportunidades para aprofundar o conhecimento a respeito:

  • Exibição do documentário “Meninos de Palavra”  

O Cenpec promove exibição gratuita e aberta ao público do documentário “Meninos de Palavra”, que traz um registro inédito das atividades realizadas pelo Projeto Educação com Arte: Oficinas Culturais com adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação em unidades da Fundação CASA. A partir de cenas do cotidiano dos jovens e das atividades das oficinas e de depoimentos de arte-educadores e de especialistas, o documentário retrata o poder da palavra – escrita, cantada ou encenada – neste universo.

O filme foi concebido pelos educadores Daniela Schoeps, José Alves e Tamara Castro, sob a direção do cineasta Fabrício Borges. Após a exibição do documentário, haverá um debate com alguns convidados: Bruno Paes Manso – jornalista, escritor, doutor e pesquisador no Núcleo de Estudos da Violência da USP e colaborador da Ponte Jornalismo; Heloísa de Souza Dantas – psicóloga e professora de Pós-Graduação em Psicossociologia da Juventude da FESPSP e integrante do Núcleo de Política de Drogas do GREA-IPq-HC-FMUSP; MC Boy JM – rapper e ex-participante de oficinas culturais; e Carlos Caçapava – arte-educador do projeto Educação com Arte.

A atividade será realizada no CineSesc, em São Paulo, em 18 de julho, a partir das 19h, e os ingressos serão distribuídos uma hora antes do início.

  • Curso online e gratuito “Elaboração do Plano Municipal pela Primeira Infância”

 A Rede Nacional Primeira Infância/ CECIP – Centro de Criação de Imagem Popular e a Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, estão com inscrições abertas para o curso, que terá duração de três meses. A formação é voltada para gestores públicos municipais, técnicos das secretarias municipais e integrantes dos Conselhos Municipais de Direitos da Criança e do Adolescente.

O objetivo do curso é contribuir para a qualificação de cidadãos capazes de articular e desenvolver Planos Municipais pela Primeira Infância, e promover o encontro e a troca de conhecimento entre os municípios que desejam elaborar PMPIs. Ao longo da formação, serão abordados temas como: a importância das políticas públicas no desenvolvimento das crianças na primeira infância, a intersetorialidade das políticas públicas, a importância da participação social e da participação das crianças na elaboração do PMPI, dicas para a construção, aprovação e implementação do PMPI, bem como de seu monitoramento e avaliação.

As inscrições vão até o dia 17 de julho, clique aqui para se candidatar a uma das vagas disponíveis.


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