Rede Temática de Garantia de Direitos define foco de atuação para os próximos anos

Por: GIFE| Notícias| 15/08/2016

Diante do cenário atual em que o país vive, quais são as principais demandas da sociedade em termos de garantia de direitos? Quais as agendas que o investimento social privado pode contribuir com sua atuação? Como aproximar o setor do campo legislativo para novas conquistas e políticas públicas efetivas?

Com a proposta de debater estas questões e encontrar caminhos para a sua atuação nos próximos anos, investidores sociais se reuniram em São Paulo, no dia 12 de agosto, para mais um encontro da Rede Temática de Garantia de Direitos.

O grupo tem um histórico de atuação colaborativa, principalmente no campo da garantia de direitos voltados às crianças e adolescentes, mas reúne também institutos, fundações e empresas com agendas diversas, como a promoção de uma educação de qualidade, fortalecimento de conselhos, inserção do jovem no mundo do trabalho, direitos dos idosos, entre outras.

Em 2015, inclusive, o grupo realizou ações de relevância, como um Seminário em comemoração aos 25 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em Brasília, no dia 01 de julho, que reuniu mais de 80 pessoas. Outro ponto de destaque foi o posicionamento público do grupo contra a aprovação da PEC 171/93 que reduz a maioridade penal no Brasil de 18 para 16 anos.

Para ajudar o grupo a pensar em iniciativas conjuntas para os próximos anos, o encontro do dia 12 contou com a participação de dois especialistas: Veet Vivarta, consultor especialista no campo de mídia, direitos humanos, desenvolvimento e sustentabilidade, e Renato Roseno, advogado especialista em direitos humanos e Deputado Estadual do Ceará.

Mídia

Quando se discute garantia de direitos, não há como não trazer ao debate o papel da comunicação e, mais do que isso, de que forma, em um mundo cada vez mais conectado, os cidadãos desempenham um papel ativo e participativo. Para tal, Veet Vivarta trouxe ao grupo uma discussão sobre as principais tendências da educação para a mídia, cidadania digital e internet como direito humano.

Um ponto de partida relevante neste contexto é o fato que, a partir de 27 de junho deste ano, o Conselho de Direitos Humanos da ONU passou a reconhecer que a natureza global e aberta da internet é força motriz para os direitos humanos e passou a encorajar seus Estados membros a tratarem do problema da exclusão digital e a promoverem a alfabetização digital e o acesso à informação na internet.

“E porque isso é importante? Vários especialistas enfatizam a maneira como as TICs (tecnologias da informação e comunicação) muitas vezes servem para agravar as desigualdades existentes entre comunidades”, comentou Veet, destacando que, hoje, se fala de como “exclusão de segundo nível” ou “exclusão de uso”, ou seja, das desigualdades registradas no nível de desenvolvimento de capacidades e competências tecnológicas.

Tendo como ponto de partida o universo de crianças e adolescentes – que hoje no Brasil são mais de 57 milhões de pessoas – o especialista apresentou alguns dados de pesquisas e estudos sobre o atual cenário deste campo no país.

Segundo Veet, o primeiro desafio, que é o de acesso, começou a ser superado, tendo em vista que 65% dos adolescentes, 10 a 14 anos, e 75,3%, de 15 a 17 anos, acessam a internet. Porém, quando se mergulha nos dados e passamos a olhar para a realidade das diferentes classes sociais, o país revela-se desigual neste campo: se nas classes A e B a porcentagem de crianças e adolescentes que acessam a internet todos os dias é de 77%, por exemplo, nas classes D e E esse dado cai para menos da metade: 32%.

A realidade das escolas brasileiras também não é diferente. Se 82,2% das unidades escolares do Ensino Fundamental na região Sul têm acesso à internet, a realidade é bem diferente em outros locais: somente 22,1% no Norte e 29,5% no Nordeste.

Outro aspecto percebido é o crescente uso do celular para acesso à internet, ao invés do computador, o que traz um dinamismo maior, mas, ao mesmo tempo, pode restringir o acesso das crianças e adolescentes em situação mais vulnerável, seja por causa das limitações do próprio dispositivo, seja pelo tipo de contrato que elas têm com a operadora do plano de celular. Num comparativo do Brasil com a Europa, o que se percebe é que apenas 21% da população europeia utiliza pacotes de dados, enquanto no Brasil esse número sobe para 66%.

Só para se ter ideia, hoje, do total de usuários de internet de 9 a 17 anos que usam o celular para acessar a internet, nas classes A e B 83% usam wifi, enquanto nas classes C e D esse número cai para 50%. “Naturalmente, as classes menos privilegiadas acabam tendo uma limitação ao tempo e tipo de uso em função do plano que estão pagando. O mercado sozinho não vai dar conta de atender a essa crescente demanda. Se o Estado se ausenta e se omite teremos uma reprodução muito grave do quadro de exclusão do mundo físico e não virtual. Assim, quando falamos em exclusão de segundo nível é em relação a isso: um cidadão digital de segunda ou terceira categoria”, comentou Veet.

A partir deste cenário, o especialista apresentou então o conceito de educação para a mídia, destacando a importância de se atuar nesta perspectiva, tendo em vista a sua importância para fornecer o conhecimento crítico e as ferramentas analíticas que irão capacitar os consumidores de mídia a funcionar como cidadãos autônomos e racionais, permitindo-lhes fazer criticamente uso dos meios de comunicação. Lembrou ainda que diante da crescente convergência de rádio, televisão e tecnologia digital, a alfabetização para a mídia está cada vez mais vinculada a questões de democracia e cidadania ativa e participativa.

Por isso, entre as recomendações globais neste campo, três se destacam: dar acesso a todos os tipos de mídia, que hoje são ferramentas potenciais para compreender a sociedade e participar da vida democrática; desenvolver competências para a análise crítica de notícias ou entretenimento, reforçando as capacidades de indivíduos autônomos e usuários ativos; e incentivar a produção, criatividade e interatividade nas diferentes áreas da comunicação midiática.

“Dentro de todo o espectro de questões de promoção de direitos, essa temática se torna fundamental, pois discutisse a como utilizar estas ferramentas para a construção de uma cidadania ativa. É fazer de fato o uso efetivo dos meios de comunicação no exercício dos direitos democráticos e das responsabilidades civis”, ressaltou Veet.

O especialista destacou ainda que embora a educação para as mídias tenha sido mencionada na Lei de Diretrizes e Bases (1996), nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia (2006) e no Plano Nacional de Educação (2011), ainda o país carece de uma política nacional para o setor. E finalizou com uma frase de Viviane Reding, membro da Diretoria Geral para a Sociedade da Informação da Comissão Europeia: “Hoje, a alfabetização para a mídia é tão central para uma cidadania ativa e plena como foi a alfabetização no início do século XIX”.

Políticas

Durante o encontro, Renato Roseno foi convidado também a trazer para o debate sua percepção sobre o campo da garantia de direitos, a partir de sua experiência enquanto militante da área, assim como da visão de quem está atualmente atuando no parlamento e em comissões em direitos humanos.

O advogado iniciou a sua fala analisando três aspectos que considera centrais para o enfrentamento do cenário atual que, em sua visão, é de um processo de desmonte do projeto de Estado que foi constitucionalizado em 1988. Um primeiro aspecto seria o fato de que o Brasil não conseguiu ser uma nação republicana, mantendo, principalmente, a concentração e legitimação da riqueza, do poder e do saber. Renato apontou alguns cenários, como o fato de em 2009, por exemplo, a distribuição funcional da riqueza ser pior do que em 1959, e que hoje o parlamento tem uma distribuição de gênero pior do que a Tunísia e o Afeganistão, que são sociedades patriarcais, ou o fato de, em alguns estados, cerca de 75% da população é analfabeta funcional.

O segundo aspecto diz respeito a um intenso movimento que já existiu no país pela garantia de direitos e a busca pela igualdade, principalmente no momento pré-Constituinte, nos anos 1980, com uma importante participação dos movimentos sociais para a conquista de direitos. Neste contexto e visando ampliar a participação social, foi elaborada, segundo Renato, uma arquitetura no país de participação baseada em conselhos, conferências temáticas e pastas específicas com seus respectivos fundos específicos.

“Essas inovações democráticas de então foram constitucionalizadas em torno de uma determinada arquitetura. Precisávamos disso, pois o grande objetivo era limitar o poder. Ou seja, que um pequeno conselho de saúde, por exemplo, fosse capaz de ser definidor da política para aquele território. Esse conselho de política era necessário para essa agenda de direitos e a demanda de investimento social”, comentou Renato.

Por fim, o advogado trouxe como terceiro ponto para o debate, o fato de que, com a chegada dos anos 90 e sua agenda econômica e esvaziamento da esfera pública, ocorreram alguns retrocessos no campo dos direitos.

Lembrou, assim, que é no parlamento que estes pactos de país são consolidados e, portanto, tem um papel fundamental. Porém, em sua avaliação, o que se vê hoje é “um local em que se legitima uma agenda dos retrocessos”.

Entre os projetos que têm ganhado força na Câmara e no Senado e que impactam diretamente o campo da garantia dos direitos está a PEC 241/2016 (Proposta de Emenda Constitucional) que propõe, por um prazo de 20 anos, um limite máximo de despesas primárias para cada um dos poderes da União igual às despesas primárias executadas em 2016, atualizadas anualmente pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo, o índice oficial de medida da inflação). Assim, os gastos federais com saúde e educação, que atualmente são vinculados a percentuais mínimos da receita, deixariam de variar conforme as receitas. Mantidos os valores mínimos definidos para 2016, passariam a ser atualizados pelo IPCA. Essa regra substituiria a recente proposta de DRU (Desvinculação de Receitas da União) aprovada no Congresso, que permite a desvinculação de até 30% dos recursos para saúde e educação.

“Imaginem o impacto disso para a educação pública, para os centros de pesquisa para tratamento do câncer, por exemplo? É um afronte à Constituição”, ressaltou o deputado, citando ainda como preocupante o Projeto de Lei Complementar 257/16, de autoria do Poder Executivo, e que dispõe sobre a renegociação das dívidas dos Estados e do Distrito Federal.

Segundo o advogado, o que se percebe é que a agenda econômica atual, que precisa de legitimação política, encontra porta-vozes no parlamento, e que isso se dá justamente pelo esvaziamento da esfera pública, na qual os brasileiros não se engajam mais em tecidos associativos, como grêmios, redes, associações etc, ou seja, lugares em que as individualidades possam ser conjugadas numa agenda coletiva.

“Esse lugar está sendo ocupado e tem objetivo e intencionalidade. Trata-se de um projeto de sociedade que não é democrático, equitativo. É um projeto contra as pautas do movimento feminista, da cidadania, do LGBT, da reivindicação das populações tradicionais etc. Ou seja, é um projeto de silenciamento dos direitos já conquistados. Aconteceu uma ruptura democrática”, analisou.

Atuação ISP

Diante deste cenário, o deputado ressaltou a importância da sociedade civil organizada ocupar os espaços e se inserir de fato nas discussões frente às contradições atuais. “Vocês têm muito potencial para fazer uma agenda de incidência política. Se nós não estivermos no parlamento, permanentemente em rede, lutando pelo investimento social, pela participação popular, pela garantia de direitos, haverá quem faça o contrário. Não há vácuo na política. Trata-se de uma área de disputa. É preciso enfrentá-lo e ocupá-lo”, convocou o deputado, destacando a importância dos investidores sociais se aterem principalmente num esforço para que o campo da garantia dos direitos não sofra retrocessos.

Na opinião dos especialistas, é preciso fazer advogacy constante e de forma permanente, não apenas em momentos em que alguns temas entram de fato na pauta – como a questão da redução da maioridade penal – para que as organizações não atuem apenas para “apagar incêndios em situações de emergência”.

“Todo mundo é sensível ao tema, mas ninguém pensa e atua 24 horas por dia somente neste assunto como agenda prioritária marco zero. Isso é um dos elementos que fragiliza o processo. Essas construções dentro do Congresso e do espaço político exigem realmente uma decisão de construir uma atuação a médio e longo prazo no qual os interesses são os de uma agenda mais ampla de direitos humanos. Precisamos pensar em maneiras de apoio para que este debate seja feito de forma técnica, consistente, e não só emergencial”, afirmou Veet.

Mas, para que isso seja possível, os convidados ressaltaram a importância da educação política dos brasileiros, a fim de que estejam preparados para exercer de fato uma cidadania ativa.

Segundo os especialistas, uma atuação relevante dos investidores é ainda no sentido de levar estas temáticas de forma ampla para a sociedade, incentivando um processo maior de engajamento em questões sociais centrais, assim como encontrar agendas que possam permitir a conquista de novos aliados.

Em relação ao fortalecimento dos conselhos, por exemplo, tendo em vista que este é um tema comum a grande parte dos membros da Rede Temática, os especialistas ressaltaram a importância de investir na formação e proteção dos sujeitos que atuam neste espaço, a fim de que possam de fato exercer o seu papel e ganhar legitimidade de atuação.

“Precisamos tomar posicionamentos públicos e inaugurar uma nova narrativa que nos una enquanto projeto de nação”, afirmou Renato.

Pauta de ação

Tendo em vista os contextos apresentados pelos especialistas convidados, o grupo foi motivado a pensar de que forma a Rede Temática poderia contribuir e avançar nestas agendas. Os institutos, fundações e empresas participantes definiram como foco de ação para o grupo duas frentes: a manutenção da agenda contra a redução da maioridade penal e o direito à internet com qualidade para criança e adolescentes incentivando os governos a resolverem o problema da exclusão digital e a promoverem a alfabetização digital e o acesso à informação na Internet.

A partir de agora o grupo se dedicará ao mapeamento de cenário nas duas agendas e planejamento de ações nestes campos de atuação.

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