Desconhecimento e ineficiência dificultam doações a OSCs por meio do imposto de renda

Por: GIFE| Notícias| 09/04/2020

Na última semana, a Receita Federal anunciou que o prazo para a entrega do Imposto de Renda 2020 (ano-base 2019), que venceria no dia 30 de abril, foi adiado para o dia 30 de junho por conta da pandemia do coronavírus.

A expectativa é que 32 milhões de contribuintes declarem o imposto este ano. Por meio de uma adequada aplicação de incentivos fiscais, esse montante poderia gerar doações a organizações da sociedade civil (OSCs) brasileiras, fortalecendo, assim, diversas causas de interesse público.

A atual legislação de incentivos fiscais para doações individuais, no entanto, tem um alcance muito limitado. É o que aponta o diagnóstico apresentado na publicação Incentivos regulatórios à filantropia individual no Brasil, a partir dos resultados das pesquisas desenvolvidas no âmbito do projeto Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil, realizado pelo GIFE em parceria com a Coordenadoria de Pesquisa Jurídica Aplicada da FGV Direito SP e com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O estudo aborda os incentivos regulatórios às doações de pessoas físicas às organizações, analisando a efetividade desses incentivos em comparação com regimes internacionais.

De acordo com a publicação, no Brasil, o ambiente legal dos incentivos fiscais às doações individuais caracteriza-se por uma dupla restrição.

Causas específicas

A primeira diz respeito aos temas incentivados. As doações só podem ser feitas a OSCs que tenham projetos pré-aprovados por órgãos governamentais ou pelos fundos setoriais de áreas específicas. Nesse sentido, os incentivos fiscais para as doações individuais estão restritos às áreas de cultura, esporte, saúde e assistência à criança e ao adolescente, à pessoa com deficiência e ao idoso. Outras áreas de interesse público tão relevantes quanto essas, como proteção dos direitos humanos ou do meio ambiente, não contam com o benefício.

Natasha Salinas, professora da FGV Direito Rio, lembra que esses incentivos foram sendo concedidos de forma casuística e incremental ao longo do tempo. “Os grupos melhor articulados foram aqueles que lograram êxito em estender os incentivos fiscais para suas respectivas áreas. Sem essa compreensão histórica, não é possível entender porque hoje se conferem incentivos fiscais às doações para a área da cultura, mas não para a área ambiental ou de direitos humanos”, explica.

A professora defende a expansão do benefício para outras áreas prioritárias. “Identificamos, em acompanhamento da tramitação legislativa do Congresso, proposições que visam conceder o benefício para áreas tão variadas como Direitos da Mulher, Política Antidrogas, Proteção da Amazônia, dentre outras. Somos favoráveis à aprovação dessas iniciativas legislativas.”

E acrescenta: “Defendemos que as doações de pessoas físicas também possam ser deduzidas da base de cálculo do seu imposto de renda, tal como ocorre com as doações das pessoas jurídicas. Essas doações, previstas no art. 84-B da Lei n. 13.019/14, destinam-se a qualquer organização da sociedade civil, independentemente da área que atuam. Não há razão para que esse benefício seja restrito às doações de pessoas jurídicas.”

Acesso

A segunda limitação se refere à ineficácia dos mecanismos de incentivo, sobretudo em relação ao engajamento de doadores pessoas físicas. Nos incentivos temáticos o valor doado não é deduzido da base de cálculo, mas descontado (até certo limite) do próprio valor do imposto a pagar. O resultado é que, em muitos casos, o contribuinte consegue compensar integralmente o valor doado, não precisando desembolsar qualquer quantia adicional àquela que já pagaria ao fisco. Nesse contexto, era de se esperar que os contribuintes fizessem largo uso dos incentivos existentes. Novamente, porém, não é o que se verifica na realidade, como aponta a pesquisa.

Um dos gargalos está no acesso ao mecanismo. O benefício é restrito àqueles que declaram renda pelo modelo “completo” (em contraste ao “simplificado”). Segundo estimativas da mesma pesquisa, em um cenário ideal no qual todo esse grupo utilizasse plenamente os incentivos disponíveis, cerca de R$ 7,6 bilhões seriam destinados a projetos ou fundos de interesse público. Porém, apenas 51,8 mil contribuintes (0,45% do potencial) fizeram uso dos mecanismos em 2015, doando um total de R$ 78,6 milhões (1,04% do potencial), conforme dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).

O mesmo ocorre do lado das empresas porque a legislação brasileira permite doações incentivadas apenas por aquelas tributadas pelo regime de lucro real, que corresponde a uma minoria, já que a maioria acaba adotando o regime de lucro presumido.

Natasha explica que todo contribuinte brasileiro que declara imposto de renda na modalidade completa poderá descontar até 8% do imposto devido caso tenha realizado doação em quantia equivalente para uma organização da sociedade civil.

“A complexidade não está no mecanismo em si, mas nas circunstâncias que o qualificam. Pela legislação brasileira, a doação tem de ser feita no exercício anterior ao do pagamento de imposto. Isso é problemático porque o doador, além de não possuir necessariamente os recursos para doar, não sabe exatamente quanto pagará de imposto no ano seguinte. Além disso, os contribuintes não sabem se optarão pela modalidade completa ou simplificada até o momento da declaração, quando terão a confirmação de qual opção lhes será mais vantajosa. Isso traz um desincentivo para a doação no exercício anterior.”

A professora observa ainda que cada uma das seis áreas beneficiadas com incentivos fiscais possui regras específicas para a aprovação de projetos, agravando assim a complexidade do mecanismo.

“É a aprovação governamental desses projetos que qualifica a organização da sociedade civil a receber o benefício fiscal. A obrigatoriedade da doação antecipada e a necessidade de aprovação de projetos são, a nosso ver, os dois principais fatores que dificultam o uso e a popularização do incentivo fiscal.”

Desconhecimento

Outro desafio apontado pela publicação diz respeito ao desconhecimento. Boa parte dos indivíduos que recolhem imposto de renda e poderia destinar uma parte desse imposto na forma de doação para organizações e projetos de interesse público, muitas vezes, não sabe dessa possibilidade ou desconhece os mecanismos para operacionalizar essa iniciativa e, por isso, acaba não utilizando o beneficio.

Para o advogado Eduardo Szazi, o desconhecimento não é necessariamente um empecilho para aqueles que desejam fazer doações incentivadas. “O desconhecimento deve ser compreendido em termos. O site da Receita Federal possui uma seção de Educação Fiscal que mantém campanha para destinação do Imposto de Renda a serviço da cidadania. De outra sorte, os Conselhos da Criança e do Idoso, em várias cidades e estados, têm páginas com tutoriais sobre doações. OSCs, então, nem se fala, pois mantêm essa informação ‘na ponta da língua’ de suas equipes de captação.”

Recomendações

Esses dados sugerem que os incentivos fiscais, na forma como estão estruturados e funcionam atualmente, podem ser relevantes para assegurar recursos para as áreas por eles contempladas. No entanto, têm um desempenho claramente insatisfatório como instrumentos para alavancar a cultura de doação no país e garantir o desenvolvimento institucional das organizações no longo prazo e de maneira permanente.

Aperfeiçoar os incentivos existentes, bem como explorar outras formas de incentivo que não aquelas baseadas no IR, a fim de que também os cidadãos que não são contribuintes do imposto – a maioria da população brasileira – contem com estímulos para doar, são caminhos apontados para superação dos desafios e efetivo aprimoramento do ambiente legal em prol do fortalecimento da atuação da sociedade civil.

O estudo sugere que alguns desses problemas podem ser enfrentados com medidas simples, como:

  • Direcionamento das doações diretamente na declaração de imposto de renda pessoa física;
  • Expansão dos incentivos fiscais para outras áreas de atuação das OSCs;
  • Regulamentação da doação de bens e de despesas com trabalho voluntário às OSCs;
  • Ampliação do incentivo a contribuintes optantes pela modalidade simplificada do IRPF;
  • Incentivos fiscais equânimes para pessoas físicas e jurídicas.

Natasha observa que a possibilidade de que as doações às organizações da sociedade civil possam ser realizadas no ato da declaração do imposto de renda, e não apenas no exercício anterior, já é conferida às doações individuais aos Fundos da Infância e Adolescência (FIA) e aos Fundos do Idoso, nos limites de 3% do imposto apurado para cada um.

“Assim como o contribuinte pode hoje deduzir da base de cálculo despesas com educação e saúde, defendemos que ele também possa deduzir valores doados às OSC, limitados a 2% da sua renda tributável. E que a doação também possa ser realizada para outras áreas.”

Natasha lembra que o governo do estado de São Paulo permite que os beneficiários do programa Nota Paulista (que restitui aos consumidores uma parte do imposto pago na compra de bens e mercadorias) doem seus créditos para instituições filantrópicas que atuam dentro do território paulista. O programa permite a doação desses créditos para entidades de assistência social, saúde, educação, defesa e proteção animal e cultura que mantenham em dia um Certificado de Regularidade Cadastral de Entidade.

“Esse é um exemplo de iniciativa que tem incrementado a sustentabilidade financeira das instituições paulistas. Outros estados e municípios que desenvolvem, respectivamente, programas de restituição de ICMS e ISS, também poderiam permitir que créditos fossem doados às organizações da sociedade civil”, defende a professora.

Projeto Sustenta OSC

O projeto Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil é realizado pelo GIFE e pela Coordenadoria de Pesquisa Jurídica Aplicada (CPJA) da FGV Direito São Paulo, em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e com apoio da União Europeia, Instituto C&A, ICE, Instituto Arapyaú e Fundação Lemann.

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