É preciso inovar a inovação social

Por: Instituto Sabin| Notícias| 06/03/2020

 

Fábio Deboni[1]

Enquanto a Inovação Social parece seguir numa crescente, permanece também certo desentendimento sobre o que de fato ela significa. Já debatemos anteriormente essa questão[2], e neste artigo a intenção é discutirmos a necessidade de que as próprias práticas de/para/sobre inovação social também consigam inovar e reinventar-se.

Inovar onde, pra quê, pra quem?

A despeito das várias definições que circulam por aí, tendo a preferir essa síntese dos colegas canadenses[3] sobre o que eles compreendem como sendo ‘inovação social’: novas, inclusivas e colaborativas abordagens para resolver problemas complexos.

A síntese merece, a meu ver, apenas 2 adendos importantes:

  1. ‘resolver’ poderia ser trocado por ‘enfrentar’, visto que problemas complexos são difíceis de serem ‘resolvidos’; e
  2. na expressão ‘problemas complexos’ poderíamos qualificar que tipo de problemas estamos atacando, demarcando mais claramente as dimensões socioambiental, democrática, civilizatória e afins, sob pena de não nos diferenciarmos da ‘vala comum’ da inovação convencional.

Ok, temos uma definição, mas isso resolve algo?

Não, pois ainda que muita gente busque uma definição (de prateleira) pra chamar de sua, já vimos que isso não altera ponteiros nos modelos organizacionais e nos arranjos sistêmicos vigentes.

Cabe então questionarmos se essa tara por inovação (social) tem nos levado ou ao menos nos provocado a:

– enfrentar de forma sistêmica, justa e colaborativa os problemas socioambientais e civilizatórios que nos assolam? Ou será que em alguns casos temos sido ainda mais excludentes e elitistas?

– equilibrar o jogo de forças e de poder entre os diferentes atores sociais, econômicos e políticos? Ou será que, em alguns casos isso tem se acentuado?

Perguntas como estas e tantas outras deveriam ser feitas com mais frequência entre os atores que querem surfar a onda da inovação social, mas infelizmente não é o que temos visto.

Voltando ao conceito, vale destacar também alguns insights dos colegas australianos (TACSI[4]) ao considerarem que princípios são mais relevantes do que métodos[5] na jornada deles por esta agenda. Sem dúvida, soa como algo na contramão do que temos visto atualmente por aqui: uma enxurrada de métodos/ferramentas (da moda, com nomes gringos, etc) para todos os lados se sobrepondo a reflexões de ‘fundo’ sobre os problemas que precisam ser enfrentados e sobre as iniciativas que pretendem fazê-lo.

Quem ‘toca esse bumbo’ no Brasil?

Um giro por experiências em vários países nos permite visualizar uma grande variedade de ‘tocadores de bumbo’ desta agenda em cada contexto local.

De iniciativas mais individuais (Canadá), a um forte estímulo governamental (Reino Unido), ao fomento da sociedade civil e de fundações (Suíça e Austrália), passando pela academia (México), por empreendedores sociais (Espanha) e cooperativas (Alemanha), quem ‘toca esse bumbo’ muda de país para país, evidenciando que o ideal é que este conjunto de atores esteja envolvido como um todo nesta agenda, ainda que na prática, um ou outro é quem assume papel facilitador (pra valer) nestes ecossistemas.

Por aqui podemos enxergar vários sub-ecossistemas[6] se relacionando entre si e parece não termos ainda nos dado conta de que a confluência entre eles é onde poderíamos encontrar o espaço potencial de um efetivo ecossistema de inovação social.

O esquema abaixo, meramente ilustrativo e sem escala, tenta ‘desenhar’ as interfaces entre os vários ecossistemas que poderiam compor o/um ecossistema de inovação social pra tornar esse debate mais visível.

Os vários ‘ecossistemas’ representados por círculos/ovais nos ajudam a colocar no radar uma variedade mais ampla de setores e ‘silos’ que têm participado (ou têm potencial de) nos ecossistemas de inovação social de cada país. O desafio em si passa pelas interfaces, confluências e zonas ‘cinzas’ entre os setores, refletindo o caráter multistakeholder da inovação social. Em suma, a inovação social deveria ocorrer entre os setores.

Estaríamos muito distantes, no país, da percepção e do alcance deste esquema? Tenho lá minhas muitas dúvidas, ainda que mantenha a esperança viva.

Incômodos e desafios

Desafios similares são facilmente identificados ao redor do mundo. Os nossos aqui[7] – de compreensão, de financiamento, de articulação/ecossistema, de ferramentas e de avaliação, dentre outros – são também recorrentes em outros países e sinalizam que há muito por fazer não só por aqui.

Dado que outras regiões (Europa, Austrália, Canadá, etc) largaram na nossa frente na compreensão, fomento e articulação desta agenda, aspectos mais fundamentais dela já foram ali superados ou bem encaminhados. Um deles passa pelo desafio de compreensão. Conceitos e definições do que seria inovação social para cada país já foram estabelecidos e, embora o tema ainda possa gerar algum ruído em cada local, essa questão parece ter sido superada a partir da preferência pela prática baseada em princípios.

Em outras palavras: parece importar menos nestas experiências gringas de qual é o ‘melhor’ conceito, e mais quais são os princípios que qualquer prática de inovação social deve respeitar. Princípios que, embora variem também de local para local, passam por: colaboração entre diferentes atores e setores, transparência nas relações, visão de médio-longo prazo, foco em questões estruturantes e sistêmicas, modelos mais horizontais de governança, etc.

Outro incômodo presente nesta agenda passa pela dimensão do financiamento (funding). Enquanto em vários países o fomento público foi e segue sendo muito relevante para alavancar o tema, nos países em desenvolvimento iniciativas governamentais como por exemplo a experiência ‘Portugal Inovação Social[8]’ tendem a nos fazer muita falta.

Embora ela também tenha seus dilemas e desafios, é inegável os avanços que alavancou a partir não só da disponibilidade de recursos (alguns bons milhões de euros), mas também pelo seu papel de ‘tocador de bumbo’ junto ao ecossistema local.

Vale salientar no Brasil a iniciativa da Enimpacto, entretanto mais circunscrita à agenda de negócios de impacto[9].

Inovando a inovação social

Se os desafios são prementes e variados, é fundamental também debatermos certa sensação de ‘mais do mesmo’ nas iniciativas de/para/sobre inovação social que nos rodeiam. Já discutimos isso anteriormente[10] reforçando a sensação de que a agenda parece ter caído na armadilha do ‘selo de qualidade’.

Parece haver mais avanços no discurso (narrativas, selos, marcas) do que nas práticas destas iniciativas de ‘inovação social’. Repensar práticas passa por redimensionar projetos, programas, parceiros, escopo de atuação, governança, etc, à luz do enfrentamento de causas estruturantes dos problemas socioambientais complexos e urgentes que nos permeiam. Será que é isso que vemos por aí na atualidade?

Mas então como seria inovar a forma de se praticar inovação social?

Inovar, neste contexto, passa por:

– capilarizar e conectar as diferentes iniciativas pelo país, reduzindo disparidades regionais e desconcentrando poderes

– incluir mais pessoas da ponta, da base e de fora do eixo nas discussões e definições do/sobre o ecossistema

– colocar mais ênfase nos princípios e nas práticas de colaboração mútua genuína e menos em ferramentas e técnicas da moda, ainda que elas sejam necessárias

– debater de forma ampla e crítica as ofertas de capital de fomento à inovação social, à luz da sua destinação para potencializar impacto socioambiental positivo para mais pessoas e comunidades (e para reduzir desigualdades) independente do modelo organizacional, do modelo jurídico e do modelo de ‘negócio’

– assumir papel crítico e ‘político[11]’ da inovação social como motor da dimensão pública, sem anular a privada, em consonância com um princípio do ecossistema europeu: “uma inovação social nunca irá defender a fragilização/precarização de serviços públicos[12]”.

– sustentar parcerias, projetos e iniciativas de mais longo prazo, rompendo a lógica de parcerias/projetos de ciclo anual.

Longe de tentar esgotar esse debate, paro por aqui pra não deixar o(a) leitor(a) chateado. No meu blog, sigo ‘confundindo pra esclarecer’, como diz o poeta[13]: https://fabiodeboni.com.br/

 

* * * * *

[1] Gerente Executivo do Instituto Sabin (www.institutosabin.org.br). Membro do Conselho do GIFE. É escritor e lançou seu terceiro livro – em meados de 2019 – “Impacto na encruzilhada: inovação social, negócios de impacto e investimento social privado: caminhos e descaminhos. A venda em: https://aupa.com.br/loja/ e https://amzn.to/36VSPzn contato: [email protected]

[2] Vide: https://gife.org.br/desafios-da-inovacao-social-no-brasil/

[3] Vide publicação da Social Innovation Canada: https://sicanada.org/wp-content/uploads/2018/12/SI-Canada-Strategy_PUBLIC.pdf (início da página 3)

[4] https://www.tacsi.org.au/

[5] Vide artigo deles na 2ª edição do Atlas: https://www.socialinnovationatlas.net/articles/

[6] Eu sei que o termo não é o mais adequado, mas não encontrei outro pra manter o raciocínio didático.

[7] Já abordei anteriormente esse tema: https://gife.org.br/desafios-da-inovacao-social-no-brasil/

[8] A Portugal Inovação Social é uma iniciativa pública portuguesa, criada em 2014, para promover a Inovação Social e o Empreendedorismo Social em Portugal, no âmbito do Acordo de Parceria designado Portugal 2020, que regula a transferência de fundos comunitários para Portugal no período 2014-2020. https://inovacaosocial.portugal2020.pt/ e https://revistas.webs.uvigo.es/index.php/CES/article/download/1380/1362

[9] http://www.mdic.gov.br/index.php/inovacao/enimpacto

[10] https://gife.org.br/inovacao-social-o-que-ha-embaixo-deste-guarda-chuva/

[11] Numa perspectiva de cidadania ativa e de fortalecimento da esfera pública, não remetendo a agremiações e partidos políticos.

[12] Vide Declaração de Lisboa: http://inovasocial.com.br/solucoes-de-impacto/declaracao-de-lisboa/

[13] Tom Zé, na música ‘Tô’.


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