O Especial RedeGIFE de julho é sobre a fome, um problema que voltou a ser manchete no Brasil. O que explica este cenário? Onde governos e poderes públicos têm errado? O que o Investimento Social Privado (ISP) tem feito e pode fazer para enfrentar esta situação? O GIFE conversou com especialistas, organizações da sociedade civil e representantes do ISP para tentar responder estas e outras perguntas. O resultado você confere nesta reportagem e em um novo episódio do podcast GIFE.
Rita*, de 37 anos, acende o fogo à lenha da casa onde vive com o marido e suas duas filhas, no pequeno município de Caldas do Jorro, interior da Bahia. Comprar botijão de gás, e qualquer outra coisa, é quase impossível nos últimos tempos para muitos brasileiros. Hoje, é um daqueles dias que não tem muito o que pôr na panela. “Ficamos eu e minhas filhas sem almoçar, dei salgadinho pra comerem.”
Ela trabalha com reciclagem desde criança, e ganha R$ 80 por mês. Seu marido recebe R$15 por dia. Com o Auxílio Brasil, antigo Bolsa Família, paga o aluguel, e não tem acesso a outro benefício do governo. No Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), foi informada que teria direito apenas a cinco cestas básicas.
Situações como a de Rita e sua família levaram o Brasil de volta ao Mapa da Fome da ONU, posição que havia saído em 2014. Dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede PENSSAN, revelaram que 33 milhões de pessoas estão passando fome (15,5% da população), e 125 milhões encontram-se em algum nível de insegurança alimentar (58,6%).
Quando considerados os marcadores de raça e gênero a situação é ainda mais grave. De acordo com o Inquérito, 65% dos lares comandados por pessoas negras convivem com insegurança alimentar, enquanto que nos comandados por brancos esse número é de 45%. No caso dos lares chefiados por mulheres, 64,1% convivem com insegurança alimentar, enquanto que nos chefiados por homens, 53,6%.
Para Ana Georgina da Silva, supervisora técnica do escritório regional do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), a crise que levou o país a voltar ao Mapa da Fome antecede a pandemia. “Há uma crise no mercado de trabalho, taxas de desemprego elevadas, má qualidade do emprego. A pandemia vem como potencializadora”, explica a economista.
Ela observa que mesmo com a retomada das atividades econômicas, os postos de trabalho seguem precários. Isso somado à alta no valor da cesta básica, leva ao aumento da insegurança alimentar. Embora a inflação esteja elevada no mundo todo, no Brasil, afirma Ana Georgina, esse indicador é alimentado por escolhas políticas.
Em contraste ao cenário de aumento da fome, o número de doações de alimentos em 2022 caiu 80% em relação ao início da pandemia – os dados são da Central Única de Favelas (CUFA). Na Bahia, o Instituto Odara, juntamente com o Centro de Arte e Meio Ambiente e a ONG Vida Brasil, executaram durante a pandemia a Campanha Justiça e Solidariedade. Naiara Leite, coordenadora executiva do Odara, avalia que poucas campanhas conseguiram se manter devido a essa queda nas doações. Atualmente, o Odara mantém a campanha de doação em caráter emergencial para um público menor.
A Ação da Cidadania lançou, em 15 de julho, o Pacto pelos 15% com Fome, uma rede nacional de solidariedade. Para Rodrigo Kiko Afonso, diretor-executivo da organização, a atuação do ISP é fundamental, mas muitas vezes fica aquém do que poderia e tende a priorizar outras áreas.
“As pessoas que têm visão de impacto afunilada têm que compreender que a fome tem correlação direta com saúde, educação, aumento da violência, até com a democracia. Sabemos que tratar a fome a longo prazo é a solução, mas enquanto isso, quem tem fome tem pressa”, enfatiza Kiko Afonso.
Críticas consideradas válidas por Márcia Woods, assessora da Fundação José Luiz Egydio Setúbal (FJLES). “Para gestores de fundações e para o filantropo, é constante o exercício de ler o contexto e olhar para a causa que escolhemos atuar, para construir a forma de ação.”
O contexto atual foi um dos fatores que levou a FJLES a optar pela segurança alimentar, sobretudo o impacto desse cenário na saúde das crianças, como um dos temas prioritários da década.
O Instituto Ibirapitanga traz a alimentação como elemento central no programa de Sistemas Alimentares. Para Manu Justo, gestora de portfólio do Sistemas, a filantropia pode atuar tanto no sentido emergencial, com estratégias que garantam financiamento a curto prazo para iniciativas de doação de alimentos, como a médio e longo prazo, no apoio à produção, distribuição e consumo de alimentos saudáveis e sustentáveis. Não basta haver alimentos nas mesas, existe a preocupação com a qualidade do que é consumido.
“É fundamental que sejam ampliados recursos da filantropia nessa área e que o ISP seja canalizado para mitigação do cenário. No entanto, é importante termos a consciência de que quando falamos de insegurança alimentar e de fome, estamos falando sobre a violação de um direito”, explica Manu Justo.
A política de valorização do salário mínimo, defende Ana Georgina da Silva, teve papel muito importante, mas foi abandonada. “Se você garante a política de valorização contínua, aumentando o poder de compra, há melhoria na atividade econômica e isso se reverte em produção e arrecadação.”
Para Kiko Afonso, não é necessário inventar a roda, já que o Brasil já foi referência global no combate à fome. “A gente tirou uma França da extrema miséria em termos de população há poucos anos. O fato é: extrema pobreza é uma decisão política.”
Entre os instrumentos existentes apontados pelo diretor estão transferência de renda, geração de emprego e promoção de políticas públicas. “O papel da sociedade civil, além da atuação emergencial, é cobrar o poder público, apoiar a instrumentalização com dados, propostas e fiscalização do governo.”
*Nome fictício para preservar a fonte.
Natália Passafaro
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Revista Afirmativa
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