O redeGIFE conversou com representantes de organizações do investimento social privado brasileiro que atuam na agenda da inclusão produtiva para saber: quais são os desafios atuais ou novos em face da crise do coronavírus e qual é o papel do setor na direção de enfrentá-los? Em infográfico, reunimos 21 tendências e oportunidades para uma atuação mais estratégica e efetiva do ISP no tema no próximo período.
A pandemia de Covid-19 aprofundou as desigualdades no Brasil e tornou o desafio de gerar oportunidades de trabalho e renda para pessoas que vivem em situação de exclusão social ainda mais urgente.
A crise econômica e a aceleração da digitalização e da flexibilização das relações de trabalho não só afetaram empresas – sobretudo pequenos negócios, que precisaram fechar ou demitir funcionários – e trabalhadores – especialmente os informais -, como também contribuíram para uma drástica redução no número de postos formais de trabalho.
O desemprego já atinge mais de 14,3 milhões de pessoas, um acréscimo de 2,4 milhões de brasileiros e brasileiras só em 2020 e o maior índice registrado pela série histórica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), iniciada em 2012.
Esse desemprego recorde provocado pela pandemia tem efeitos mais devastadores sobre a população mais jovem, preta e nordestina, como mostram dados recentes.
Heloisa Binello, gerente de comunicação para impacto do Instituto Coca-Cola Brasil, aponta a exclusão histórica que caracteriza a agenda de geração de trabalho e renda no Brasil.
“Dados do IBGE mostram que, no final de 2020, o desemprego era 58% maior entre as pessoas que se autodeclaravam pretas. A cada cinco trabalhadores informais, grupo mais afetado pela crise da Covid-19, quatro são negros. As mulheres também foram extremamente impactadas, tanto pela informalidade e desemprego, como pela sobrecarga com cuidados domésticos e familiares imposta pelo isolamento, além de maior exposição à violência doméstica.”
Frente a esse cenário, o empreendedorismo tem se tornado cada vez mais a única alternativa disponível para uma parcela crescente da população.
O número de microempreendedores individuais (MEI) aumentou no país ao longo de 2020. Das 3,3 milhões de empresas abertas no período, mais de 2,6 milhões são MEI, um crescimento de 8,4% em relação ao ano de 2019. Os dados são do Mapa de Empresas, do Ministério da Economia. Atualmente, o setor responde por mais de 56% do total de negócios em funcionamento no país.
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Para Vivianne Naigeborin, superintendente da Fundação Arymax, é preciso oferecer formas de apoio abrangentes e integradas a pequenos empreendedores.
“Para lidar com os desafios do atual contexto, precisamos fortalecer o empreendedor no âmbito pessoal e apoiar o desenvolvimento de suas competências profissionais e socioemocionais; aumentar a produtividade dos pequenos negócios, aprimorando sua gestão e conexão com mercados; e criar ambientes favoráveis ao crescimento dos pequenos negócios, com novos serviços financeiros, acesso a grandes compradores, apoio na formação de redes e associações, entre outras ações”, elenca.
Somado ao atual contexto de desmonte de políticas e programas de transferência de renda, os desafios apontam para a urgência de medidas de inclusão produtiva integradas à área de assistência social.
“A pandemia trouxe à luz o debate sobre desigualdades e recolocou na agenda pública a discussão sobre transferência de renda como estratégia de erradicação da miséria. A transferência de recursos para as populações vulneráveis representa um ‘choque de renda’ positivo que pode ajudar a dinamizar a economia local de periferias país afora”, defende Mariana Almeida, superintendente da Fundação Tide Setubal.
Para a especialista, o ISP pode apoiar a agenda, seja garantindo a continuidade do debate em torno da importância de uma renda básica no país, seja estudando alternativas de aproveitamento da transferência de renda como forma de potencializar economias locais e possibilidades de inclusão produtiva.
Em início da vida produtiva, a população jovem foi uma das mais afetadas pelos efeitos econômicos e sociais da pandemia. Distanciados do processo de educação, eles e elas também se depararam com a diminuição de oportunidades de emprego. São 48 milhões de pessoas entre 15 e 29 anos, 11 milhões das quais não estão ocupadas no mercado de trabalho, nem estudando ou se qualificando.
O país vive seu último bônus demográfico. Ou seja, é a última vez que haverá mais pessoas do segmento etário potencialmente produtivo (entre 15 e 64 anos) do que idosos e crianças.
“Em 2050, os jovens de hoje serão a maior parte da população economicamente ativa do Brasil. Portanto, é urgente e importante focar na inclusão produtiva de jovens para mover os ponteiros da desigualdade e contribuir para o desenvolvimento socioeconômico do país”, alerta Heloisa.
Para a gerente de comunicação para impacto do Instituto Coca-Cola Brasil, a atuação com foco nas juventudes em situação de vulnerabilidade, incluindo perspectivas de equidade de gênero e raça, é a forma mais efetiva de quebrar os ciclos de pobreza.
“Grandes períodos de desemprego logo no início da vida profissional são mais críticos para os jovens. É preciso criar incentivos para a contratação de jovens em cargos de entrada, seja aumentando a oferta de capacitação, os programas de aprendizagem ou reduzindo os custos de contratação formal. Não podemos deixar que o jovem de hoje perca a oportunidade de se desenvolver agora, correndo o risco de sofrer com o desemprego e a informalidade ao longo de toda vida laboral.”
Se por um lado, para quem procura emprego, falta, muitas vezes, capacitação profissional e experiência, por outro, os processos de recrutamento estabelecem barreiras à contratação e retenção, gerando a exclusão de alguns grupos sociais.
“A conexão com o mercado de trabalho é um dos grandes desafios, principalmente para os jovens negros, uma vez que a população negra já era a mais afetada pelo desemprego e sofre mais com a pandemia”, observa Heloisa.
Levando em conta esse contexto, a gerente afirma que iniciativas empresariais, de modo geral, são bem-vindas para expandir as oportunidades, mas são fundamentais aquelas com foco na equidade racial.
“Temos visto crescer o número de ações afirmativas dentro das empresas para maior contratação desse público, a exemplo do programa de trainees do Magazine Luiza. Acredito que ações voltadas para a inclusão produtiva de pessoas negras tendem a continuar crescendo e é urgente que cresçam não apenas nas empresas, mas em toda e qualquer iniciativa com o objetivo de geração de renda”, defende.
Para Mônica Pinto, gerente de desenvolvimento institucional da Fundação Roberto Marinho (FRM), estabelecer pontes entre esses diferentes pontos de vista e desenhar soluções aderentes ao que jovens e empresas necessitam é uma competência que pode ser assumida pelo investimento social privado.
Por sua importância na conjuntura pandêmica e pela conexão estratégica com pautas tradicionais do investimento social privado e estruturantes das desigualdades brasileiras e globais, o tema da inclusão produtiva está no horizonte de organizações como a FRM, que atua na agenda da educação.
“Só será possível promover a inclusão de jovens no mundo do trabalho e gerar renda a partir do pleno acesso a uma educação básica de qualidade. É assim no mundo inteiro e aqui no Brasil não há como ser diferente”, observa Mônica.
Para a especialista, enfrentar os desafios passa por conhecer as milhares de soluções que estão sendo geradas pelos próprios jovens nas ‘quebradas’.
“Jovens têm muita energia, ideias e garra. Jovens são potência. Fomentar negócios nos quais esses jovens possam produzir e trabalhar e, ao mesmo tempo, continuar aprendendo e trocando informações, pode ser uma oportunidade. Conciliar educação, trabalho e prazer gera engajamento e alta performance. Jovens querem conectividade, espaços presenciais e virtuais gameficados, onde as diversidades estejam presentes e em que possam se manifestar e ser valorizados pelo que são capazes de produzir, inovar e criar”, pondera a gerente.
Um dos pilares fundamentais da inclusão produtiva é a capacitação e, nesse quesito, a agenda da inclusão digital ganhou ainda mais centralidade.
“Quando 30% dos domicílios no Brasil não possuem acesso à internet, como podemos exigir que essas pessoas estejam preparadas para o mercado de trabalho? O tema da inclusão digital precisará estar cada vez mais conectado com todas as estratégias de inclusão produtiva e geração de renda”, observa Heloisa.
Para a gerente de comunicação para impacto do Instituto Coca-Cola Brasil, a pandemia criou uma nova oportunidade: capacitação de mais pessoas em situação de vulnerabilidade para postos de trabalho no setor da tecnologia.
“O mercado digital vinha crescendo a passos largos e avançou mais ainda com a pandemia, que forçou a transição rápida de muitos negócios que ainda estavam fora do modelo digital de trabalho, o que aumentou mais a demanda por profissionais da área. Em pouco tempo, quem ficar de fora desse circuito terá grandes dificuldades de se manter no mercado de trabalho no longo prazo e não podemos deixar que isso aconteça.”
Para Mariana, o ISP ainda atua de forma limitada no tema.
“Toda ação de inclusão produtiva tem o risco de provocar um efeito de deslocamento, ou seja, o apoio a determinadas organizações e/ou setores pode deslocar a renda de outros atores igualmente vulneráveis. Ou seja, o investimento pode não gerar a escala capaz de transformar processos e ampliar a renda geral, atuando apenas na transferência da renda de um ator não beneficiário para outro que se tornou alvo das ações, o que pode gerar resultados falsos do ponto de vista da economia como um todo”, pontua a superintendente da Fundação Tide Setubal.
Para enfrentar esse desafio e gerar um impacto positivo mais estrutural e efetivo, a superintendente aposta em uma atuação mais estratégica do ponto de vista da colaboração.
“O ISP está avançando na prática colaborativa, mas ainda sofre dos vícios de excesso de projetos próprios, excessivamente autorais, sem compartilhamento de aprendizagens e métodos de acompanhamento. No caso dos projetos de inclusão produtiva, isso é particularmente preocupante porque beneficiários de ações de empregabilidade e apoio a empreendedores acabam se repetindo em diversas iniciativas dispersas do setor, o que pode criar um viés de análise sobre a efetividade da solução, além de dependência desses sujeitos”, problematiza.
A seguir, sintetizamos os principais desafios para uma atuação mais efetiva e escalada do investimento social privado e da filantropia na agenda da inclusão produtiva.
Desigualdades aprofundadas pela pandemia
Escassez de indicadores factíveis de longo prazo
Insuficiência de recursos frente ao aumento de causas urgentes no contexto de pandemia
Falta de agenda comum entre investidores sociais brasileiros
Não clareza de expectativas dos investidores sociais
Falta de coordenação entre diferentes atores para resultados mais eficazes e duradouros
Risco de deslocamento do investimento social entre organizações, setores e/ou atores igualmente vulneráveis
Pouco compartilhamento de aprendizagens e métodos de acompanhamento
Falta de assistência técnica continuada
Olhar fragmentado com foco apenas na oferta ou na demanda
Desconexão entre jovens, em especial negros, e o mercado de trabalho
A partir da escuta de diversas vozes do investimento social privado e da filantropia, identificamos algumas tendências para a atuação do setor na agenda da inclusão produtiva. São 21 oportunidades que respondem aos principais desafios da atualidade e apontam conexões com antigas e novas agendas do ISP.
“Temos duas formas de encarar o atual contexto do país no tema da inclusão produtiva: pela ótica da vulnerabilidade social ou pela ótica da potência. Em lugar de pensar que um quarto da população corresponde aos ‘nem nem’ [nem estudam, nem trabalham], podemos analisar isso como uma grande oportunidade de que um quarto da população brasileira tem um enorme potencial a ser destravado. Imagine a potência da capacidade produtiva do nosso país.”
“A maioria das experiências do ISP com inclusão produtiva atua na melhoria da gestão de empreendimentos, com baixo conhecimento acumulado acerca das necessidades de transformação e conexão do ponto de vista das cadeias produtivas. O risco é que, muitas vezes, empreendimentos beneficiários dessas ações vão bem em um primeiro momento, alcançando uma situação de melhoria da renda. No entanto, sem uma inserção diferenciada nas cadeias produtivas, acabam sofrendo reveses cíclicos da economia e não conseguem obter resultados perenes.”
“A vivência escolar do século 21 precisa proporcionar aos adolescentes e jovens experiências educacionais de desenvolvimento integral, que os prepare para a vida produtiva, para si próprios e para a comunidade. Jovens querem muito mais do que cultura, esportes e lazer. Querem aprender matemática, finanças, línguas, pensamento computacional, empreendedorismo. Quantos projetos ou políticas estão investindo em iniciativas com este foco?”
“Com a pandemia, os recursos para investimento social se tornaram mais escassos e ‘concorridos’. Nosso grande desafio é: como priorizar a causa tão urgente da geração de trabalho e renda?”
“A inclusão produtiva tornou-se um dos temas prioritários no debate global. Seu enfrentamento requer a participação de múltiplos atores da sociedade, incluindo investidores sociais privados. A complexidade dos desafios demanda o estabelecimento de coalizões e redes colaborativas e a criação de uma agenda nacional.”
Em artigo, Ladislau Dowbor reflete sobre o conceito de economia à luz da convergência das crises evidenciada pela pandemia. Leia.
Diante da importância e urgência de pensar sobre a inclusão de populações em situação de maior vulnerabilidade no mundo do trabalho, Fundação Arymax e B3 Social lançaram este estudo no início de 2021. A publicação mantém o tema de sua primeira edição (Inclusão Produtiva no Brasil: evidências para impulsionar oportunidades de trabalho e renda), lançada em 2019, porém agora com foco na análise da pandemia de Covid-19 e seus efeitos. Acesse.
Conheça organizações, iniciativas e redes que se dedicam à promoção da inclusão produtiva no Brasil e dialogam com a perspectiva de uma nova economia mais inclusiva e menos desigual.
Leonardo Nunes
ASSISTÊNCIA DE COMUNICAÇÃO
Estúdio Cais
REPORTAGEM/TEXTO
Rogério Testa
INFOGRÁFICO
Marina Castilho
DESIGN & DESENVOLVIMENTO