Especialistas debatem dificuldades e avanços da política de acolhimento familiar no Brasil

Por: Fundação FEAC| Notícias| 04/04/2022

Jane Valente foi secretária de Assistência Social e Segurança Alimentar da Prefeitura de Campinas. Claudia Vidigal é mestre em Psicologia Social e foi Secretária Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e presidente do Conanda

Jane Valente foi secretária de Assistência Social e Segurança Alimentar da Prefeitura de Campinas. Claudia Vidigal é mestre em Psicologia Social e foi Secretária Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e presidente do Conanda

Embora os serviços de acolhimento familiar estejam previstos desde a Constituição de 1988, só em 2004 o país começou a criar condições mínimas para a implementação desta política. Foi neste ano que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) lançou o estudo O Direito à Convivência Familiar e Comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil, que traz à tona um perfil das crianças e adolescentes em serviços de acolhimento.

O levantamento revelou que a maioria (86%) destes acolhidos no sistema tinha família e que 25% deles estavam lá por “carência de recursos materiais dos pais”, ou seja, por pobreza. A publicação do Ipea foi um marco e ajudou a redesenhar o futuro dos serviços de acolhimento no Brasil nas décadas seguintes.

A causa mobilizou muitos profissionais da Assistência Social, Educação, Psicologia, Pedagogia, Direito, todos engajados em promover maior bem-estar às crianças e adolescentes acolhidos em instituições e tornar realidade o acolhimento em famílias, ainda incipiente.

Impossível contar esta história sem falar de Jane Valente e Claudia Vidigal, duas lideranças que vêm dedicando suas vidas a construir uma rede de apoio a estas políticas e condições para implementá-las.

Mestre e doutora em Serviço Social, Jane Valente foi secretária de Assistência Social e Segurança Alimentar da Prefeitura de Campinas, entre 2013 e 2017, cidade que foi uma das pioneiras neste serviço (leia mais aqui). Publicou o livro Família acolhedora: as relações de cuidado e de proteção no serviço de acolhimento e é hoje uma das principais referências no assunto no Brasil.

Claudia Vidigal é mestre em Psicologia Social e foi Secretária Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e presidente do Conanda. Ela é fundadora do Instituto Fazendo História, de onde acompanha os avanços e desafios do direito à convivência familiar e comunitária e é a atual representante da Fundação Bernard van Leer no Brasil.

Na semana em que aconteceu, em Brasília, o Encontro Nacional de Acolhimento Familiar, nos dias 15 e 16 de março, também foi lançado o Guia de Acolhimento Familiar, que é composto por seis livros (on-line e físico) e foi escrito por muitas mãos, com a participação de ambas. Dias depois do encontro, Jane Valente e Claudia Vidigal concederam uma entrevista on-line à Fundação FEAC.

Leia abaixo os principais trechos do bate-papo.

Durante o Encontro Nacional, em Brasília, um gestor defendeu que o acolhimento familiar era bom para os municípios porque tinha menor custo. Isso é real?

Jane Valente – Sempre que vou falar sobre a vantagem do serviço de família acolhedora e do que as pesquisas mostram sobre o acolhimento institucional, eu gosto de colocar em primeiro lugar a vantagem para o ser humano. E cuidar do ser humano e gerir uma política de alta complexidade custa caro.

Por isso mesmo as políticas para primeira infância têm mostrado sempre a importância do investimento na prevenção. Estudo do James Heckman [ganhador do prêmio Nobel de 2000] mostra que a cada dólar investido numa área de prevenção você chega a ter sete a dez dólares de retorno na política pública.

Nós gostaríamos sim que as famílias acolhedoras tomassem o lugar do serviço de acolhimento institucional. E falamos isso com base em muitos estudos e vivências internacionais.

Eu tenho a impressão de que, muitas vezes, nesse momento em que estamos no Brasil, se recorre à questão do custo. E todas as vezes que a gente toca no assunto remuneração, gasto do gestor, cria-se um clima difícil ainda de se discutir.

Claudia Vidigal – A Jane fez um estudo de custo para mostrar para o gestor público que, além de todos os argumentos que temos, que são os mais importantes, os custos de acolhimento em família acolhedora são um pouco menores do que em abrigo institucional.

Não é o principal argumento, mas é também um que compõe. E não é apenas isso, o abrigo institucional rouba muito tempo. A gestão da casa, dos educadores, da tabela de horários. E tudo o mais que uma instituição gera de trabalho. Tudo é ruído e rouba tempo do trabalho técnico, tão necessário para melhor acolher e melhor reintegrar a criança à família.

Tanto é que o histórico de reintegração é muito maior nas famílias acolhedoras. Ainda não temos pesquisas, mas eu tenho uma hipótese de que nos serviços de acolhimento em família acolhedora a equipe técnica tem mais tempo para olhar para as crianças e para as famílias.

O ECA já previa esta modalidade de atendimento. O que avançou de lá para cá?

Jane Valente – Existe um grande marco no Brasil e ele é recente demais se a gente falar de um país continental como o nosso. 2004 é o ano em que a gente começa a saber quem são as crianças atendidas no sistema, onde elas estão e como elas estão.

 

“Somente em 2004 a gente começa a contar e saber onde estas crianças acolhidas estão. E sabe o que foi descoberto? Que metade das crianças estava nos abrigos sem conhecimento nem do juiz, que 86% tinham família e que 24% estavam lá por pobreza. E isso há menos de 20 anos. Eram crianças invisíveis e abandonadas”.

Jane Valente


 

A Constituição de 1988 já dizia que nenhuma criança poderia estar fora de uma família por pobreza, mas antes de 2004 não tivemos governos que trataram esta questão com a prioridade e destaque tão necessários.

Então, se olharmos para isso, somente em 2004 a gente começa a contar e saber onde estas crianças estão. E sabe o que foi descoberto? Que metade das crianças que estavam nos serviços de acolhimento estavam lá sem conhecimento nem do juiz.

As pesquisas mostraram que 86% tinham família e que 24% estavam lá por pobreza.  E isso há menos de 20 anos. Eram crianças invisíveis e abandonadas.

Foram avanços fundamentais. E como estamos hoje?

Jane Valente – Mais do que esclarecer o que é a família acolhedora, nós precisamos esclarecer por que estas crianças estão nesta situação. Quem são elas? Dar a atenção devida a tudo isso. E hoje você consegue saber isso ao abrir o Sistema Nacional de Acolhimento e Adoção (SNA). Há dois anos estamos com esse sistema do Conselho Nacional de Justiça.

Eu quero crer que daqui para frente nós teremos outras políticas. E vou te dizer, por experiência própria, que desde 2007, quando Campinas fez o seu reordenamento, até hoje, o número de crianças em acolhimento institucional caiu pela metade. De uma instituição com 180 crianças, hoje temos 10 instituições com 10 crianças em cada casa.

Não estamos saindo de uma invisibilidade diretamente para um leque de opções de bem cuidar de crianças e adolescentes, entre elas a família acolhedora. Não se pode desprezar este processo todo.

Quais as principais resistências?

Claudia Vidigal – Nós começamos a Coalizão pelo Acolhimento em Família Acolhedora (leia mais abaixo), em 2020, trabalhando com hipóteses de barreiras para o avanço do acolhimento familiar que se confirmaram em pesquisas e foram aprofundadas.

Entre as hipóteses confirmadas por nós, em todos os eventos que participamos, está uma pergunta, que sempre aparece: – Mas não vai se apegar? Depois não vai ser pior para a criança? Toda a vez que a gente for falar sobre família acolhedora vamos ter de enfrentar esta barreira.

 

“O apego é necessário e dentro da família acolhedora ele ocorre. A criança já foi separada dos pais. Isso não é possível mudar. Então, como a gente vai lidar com isso? Oferecendo o melhor cuidado. Vivência de afeto, de amor, de cuidado, de carinho, é algo que permanece, que nunca vai ser um malefício para o seu desenvolvimento”.

Claudia Vidigal


 

E a resposta é sim. Essa criança vai viver uma situação de apego e isso é bom. É constitutivo do sujeito, é importante. E é possível que haja ciclos de cuidado e afeto que tenham começo, meio e fim, com uma despedida. E isso não gera estresse tóxico. Despedidas podem gerar momentos em que você chora e sente falta, mas sentir o abandono e a negligência é diferente. É o que separa e compromete o desenvolvimento.

O apego é necessário e dentro da família acolhedora ele ocorre. A criança já foi separada dos pais, já é um ser que está vivendo uma situação de crise importante. Isso não é possível mudar. Então, como a gente vai lidar com isso? Oferecendo o melhor cuidado. Porque este é um patrimônio que fica com a criança para o resto da vida. Vivência de afeto, de amor, de cuidado, de carinho, é algo que permanece, que nunca vai ser um malefício para o seu desenvolvimento.

Agora, é claro, a gente precisa de acolhimento familiar bem-feito. Como diz a Jane, é um trabalho artesanal. É uma política pública, mas é uma política pública que não prescinde de um olhar singular, original, único para cada família, cada caso, cada situação. O que não difere do atendimento institucional. Mas nas famílias acolhedoras isso se faz mais óbvio, mais visível e muitas vezes, mais possível de ser realizado.

Uma segunda barreira é o sistema de Justiça, que tem um certo medo. E eu respeito este medo. É o medo do desconhecido. Eu vou tirar a criança de um abrigo que eu já trabalho há 20 anos, conheço a diretora, a técnica, conheço todo mundo, e vou mandar para uma família. Eu sei lá quem é essa família.

Estes receios todos do sistema de Justiça são pertinentes. Porque é preciso ter um processo muito cuidadoso de formar, recrutar, selecionar e supervisionar famílias. De fato, é uma transição que exige cuidados. É um processo de saída de uma zona de conforto. De uma zona de transição para entrar numa zona de melhores cuidados.

 

“Eu falo que existe um paradoxo bem interessante para ser conjugado que fala do apego. O adulto teme o que a criança mais necessita. Teme que se ele se apegar a criança vai se prejudicar. E, no entanto, se ele se apegar e permitir que a criança se apegue a ele, vai estar proporcionando a ela algo para o resto da vida.”

Jane Valente


 

Jane Valente – Eu falo que existe um paradoxo bem interessante para ser conjugado que fala do apego. O adulto teme o que a criança mais necessita. Teme que se ele se apegar a criança pode se prejudicar. E, no entanto, com este afeto ele estará proporcionando a ela algo para o resto de sua vida.

A criança a quem este apego é negado, vai buscá-lo sempre. Então nós estamos falando de princípios que mexem muito com o ser humano. E é o que rege a relação do acolhimento familiar e da família acolhedora. O mundo não está ainda muito preparado. Precisamos falar mais sobre isso.

O objetivo é conseguir substituir, na medida do possível, um serviço pelo outro?

Claudia Vidigal – Esta é nossa utopia. E sabemos que as utopias nunca são integralmente realizadas. Nós vamos continuar tendo instituições e casas lares e elas terão seu lugar de importância. A ideia, no entanto, é que este número seja muito menor, que seja inversa esta curva:  com 95% dos atendimentos em famílias acolhedoras e 5% em instituições.

 

“Nós temos uma rigidez nos serviços hoje no Brasil. Precisamos dessa rigidez para realizar um reordenamento histórico e ela nos deu alguns modelos: abrigo institucional, casa-lar, família acolhedora, república jovem. Porém, essa rigidez hoje não nos serve mais. Queremos novos serviços e novas alternativas”.

Claudia Vidigal


Nesse momento estamos falando em ampliar para 20% – esta é a meta da Coalizão. A ideia é ter uma composição de serviços, em que a família acolhedora seja a primeira alternativa e principal referência para o Judiciário encaminhar as crianças. E que tenhamos também casa lar e abrigo institucional.

Nós temos uma rigidez nos serviços hoje no Brasil. Isso foi necessário para realizar um reordenamento histórico e nos deu alguns modelos, como o abrigo institucional, a casa-lar, a família acolhedora e a república jovem. Porém, essa rigidez hoje não nos serve mais. Queremos novos serviços e novas alternativas.

Jane Valente – Nós gostaríamos de substituir a instituição pelo acolhimento familiar por conta do que sabemos hoje pelas pesquisas científicas, que mostram os malefícios, por exemplo, para um bebê que está dentro de uma instituição, de não ter um cuidador fixo. Ele está ali na fase mais importante de sua vida e desenvolvimento. Precisando da imagem e da expressão do outro para constituir a sua própria imagem.

Os estudos comprovam que esta não é a melhor forma de lidar, mas nós temos de trazer as pessoas junto conosco.  Às vezes, isso não acontece no tempo que a gente quer. No entanto, nós podemos ter abrigos e casas lares melhores, enquanto mudamos esta compreensão da sociedade sobre o que é ser uma família acolhedora.

O que é a Coalizão?

 

A Coalizão pelo Acolhimento em Família Acolhedora foi criada em julho de 2020, no auge da pandemia, quando muitos gestores, de diversas áreas, se preocupavam com a condição dos serviços de acolhimento no contexto de isolamento social imposto pela pandemia. Deste estado de alerta, que a crise sanitária agravou, nasceu a Coalizão, grupo formado por gestores, pesquisadores e lideranças nacionais no assunto, atores governamentais e não governamentais, todos unidos para promover a ampliação do acolhimento familiar no Brasil.

A meta da Coalizão é aumentar dos atuais 4,9% para pelo menos 20% de crianças e adolescentes acolhidos nesta modalidade até 2025.

Por Natália Rangel

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