O especial redeGIFE deste mês reflete sobre os desafios e caminhos para uma atuação aprofundada da filantropia e do investimento social privado brasileiros na promoção da equidade racial.
Diante do assassinato público de João Alberto Freitas, na última quinta-feira, dedicamos esta edição a ele e a todos/as que sofrem a expressão da mesma violência no cotidiano, e renovamos nosso compromisso com a ação contínua para a superação do racismo em todas as suas dimensões no país.
São certamente muitos os desafios do Brasil. Todos/as que nos dedicamos à ação cidadã no dia a dia nele sabemos das múltiplas tarefas que nos convocam nas frentes econômica, social e ambiental, assim como na promoção da ética, da justiça e da qualidade da nossa vida pública e democrática.
Há no entanto certos parâmetros de equidade e humanidade sem os quais sequer é possível dar início a avanços em qualquer dimensão como sociedade e nação. A cena do assassinato público de João Alberto Freitas na unidade do Carrefour, em Porto Alegre, que testemunhamos na última quinta-feira reafirma com a mais dramática crueza a distância que segue separando-nos desses fundamentos mais elementares para a existência coletiva.
Dizemos “reafirma” pela consciência da tragédia não representar um caso isolado ou extremo no cotidiano do país, mas antes a expressão visível e particularmente cruel de uma realidade fundante de iniquidades, que expõe pessoas como João Alberto – ou o Beto, da torcida do São José, das suas vizinhanças no Passo d’Areia e no Humaitá e da sua família em Porto Alegre – ao medo e intimidação constantes, a incontáveis restrições de acesso nos universos escolares, do trabalho e dos espaços públicos em geral e, sim, à perda tão brutal quanto recorrente de vidas para a pobreza, a violência e para pandemias e outras mazelas da saúde pública, evitáveis em outro contexto.
E dizemos iniquidades porque elas são múltiplas e interligadas, mas em uma sociedade forjada na escravidão e que convive até hoje com padrões de segregação nos mesmos ambientes escolares, do trabalho e de convívio público evidentes para qualquer observador/a sincero/a, para não falar dos espaços de poder e debate público, sua substância é também inequivocamente racial. O que a morte mais do que gratuita de João Alberto, como a de dezenas de milhares de outras pessoas todos os anos no país, nos lembra em pleno Dia da Consciência Negra, criado em perversa ironia nesse caso justamente para lembrar-nos disso, é que não haverá hipótese de êxito ou dignidade para a sociedade brasileira enquanto não pudermos encarar de frente e superar as expressões do racismo e das desigualdades que nos constituem e atravessam cada aspecto do nosso cotidiano.
Como todo traço impregnado na cultura, ninguém está acima dele. Importa assim sempre e cada vez mais reconhecer o desafio e comprometer-se com ele no esforço atento, humilde e determinado de todos os dias. Porque em contextos assim o primeiro passo é sempre saber que casos emblemáticos não são acidentes ou pontos fora da curva, mas expressão última do que naturalizamos e ao fazê-lo negligenciamos na prática individual e coletiva regular: da pequena (para quem pratica) discriminação ou “viés inconsciente” nas atitudes diferenciadas segundo a cor da pele do/a interlocutor/a no dia a dia ao convívio indiferente com estatísticas de injustiças profundas ou perdas massivas de vidas nas múltiplas dimensões da vida pública. E se é assim, a tarefa seguinte e ainda mais primordial é a da conversão em mudança efetiva e concreta de práticas daquilo que se expressa na consciência e no discurso: buscar em cada microdimensão do cotidiano a expressão das incontáveis inércias que definem e perpetuam a clivagem racial entre nós e mobilizar com sinceridade e o senso de urgência que dedicamos ao que se confere relevância a energia para desfazê-las, integralmente – sob pena de precisar alegar íntima ou publicamente inverossímil surpresa diante da recorrência de testemunhos brutais como o da semana passada.
Esse é o compromisso do GIFE e o que buscamos mover com a mesma humildade, resolução e clareza da insuficiência cotidiana no dia a dia da nossa atuação e junto à nossa rede de associados e parceiros para uma filantropia, um investimento social e um universo de ação cidadã mais efetivos, universais e sintonizados com os desafios fundamentais do país. Também no marco das duras simultaneidades desses dias, este especial do redeGIFE já estava pronto quando testemunhamos as cenas de quinta-feira à noite, como parte do esforço em buscar contribuir para a reflexão e ação adensadas diante da tarefa na sociedade brasileira. Como não pode deixar de ser, fica aqui sua edição então como uma singela homenagem adicional a João Alberto e a todos/as os/as cidadãos/ãs vitimados/as pela expressão da mesma violência na nossa experiência histórica e presente.
Poderia ser, em lugar disso, como celebração da nova camada de afirmação tardia mas vital que o tema encontrou este ano na agenda pública do país. Na maneira como, nesse contexto, ele logra ganhar terreno também nos compromissos e práticas empresariais e do setor privado em geral. Nas conquistas de representatividade nos espaços da política expostas pelas eleições municipais, também há apenas alguns dias. Mas o fato da última quinta-feira nos recorda da forma mais nítida que qualquer avanço será sempre apenas um modesto início, de largo percurso a demandar-nos toda resolução e determinação. Que seja assim pela reafirmação devida e renovada dessa ciência e compromisso por parte de todos/as no país, sem esmorecer em nenhum momento na centralidade da tarefa para nosso destino comum.
O racismo é um processo histórico que modela a sociedade brasileira – e não só – até hoje. Uma prova disso é que, enquanto a maior parte dos habitantes é negra (54%), essa parcela corresponde a 70% das pessoas que vivem em situação de extrema pobreza, 71% das vítimas de homicídio e 61% da população carcerária. Um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos no país, enquanto 65,3% das mulheres assassinadas vítimas de agressão são negras.
Outras evidências do racismo que estrutura a sociedade brasileira passam pela baixa representatividade de negros nos espaços de poder; menores expectativas e estímulos para alunos negros ao longo do percurso educacional; falta de recursos destinados a iniciativas de jovens negros nas periferias, onde é mais alta a parcela da população negra; encarceramento em massa; e dificuldades de acesso e desenvolvimento no mercado de trabalho.
Esses e outros dados estão reunidos no guia O que o investimento social privado pode fazer por Equidade Racial ?.
A publicação é parte da série O que o ISP pode fazer por…?, do GIFE, que aborda agendas brasileiras nas quais a atuação do setor ainda é tímida com a perspectiva de orientar e incentivar a aproximação dos investidores.
O guia foi o pontapé inicial de um bate papo com Maíra Souza, líder de portfólio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal; Michel Chagas, gestor de Ciência do Instituto Serrapilheira; e Mohara Valle, gestora de conteúdo do Instituto Ibirapitanga.
A convite do redeGIFE, os três se reuniram para analisar e repercutir essas evidências, além de apontar caminhos e inspirar ações por meio do que tem sido realizado em suas próprias organizações e no campo do investimento social e da filantropia de modo mais amplo.
São iniciativas que visam mitigar os impactos sobre as populações negras e fortalecer as resistências ao racismo, especialmente aquelas oriundas do movimento negro brasileiro, por meio do apoio a ações afirmativas e à representação simbólica e política dessas populações, entre outras oportunidades compartilhadas pelos entrevistados e também apontadas no guia.
O resultado dessa conversa você pode conferir no segundo episódio da série Especial redeGIFE, do Podcast GIFE.
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Vozes
do campo
“Nesse momento específico da história, o setor do investimento social privado tem uma grande responsabilidade e tem tido um papel muito importante até porque tem uma entrada privilegiada na sala de jantar dos que mandam que estão nas empresas e nas famílias. Temos um sentido não de urgência, mas de emergência.”
Atila Roque, diretor da Fundação Ford no Brasil
“Todos os indicadores demonstram que a desigualdade racial organiza o padrão de desigualdade do país como um todo. Pesquisa recente do Instituto Ethos revela que mais de 80% das empresas declaram não ter estratégias específicas para inclusão da população negra dentro de seus quadros de colaboradores. O investimento social privado pode ser um vetor não só de reconhecimento dos desafios, mas de proposição de agendas pelas empresas e sobretudo pela sociedade que valorizem o tema da equidade racial e proponham modos mais consistentes e adequados para o avanço da civilização brasileira em direção a uma maior harmonia.”
Ricardo Henriques, superintende do Instituto Unibanco
“Vejo no investimento social privado uma excelente oportunidade de trabalhar para a promoção da democracia a partir da população negra no Brasil. Nesse sentido, é fundamental que as organizações considerem avaliar e executar ações afirmativas dentro das suas práticas e respectivas áreas de atuação. Hoje, ser racista não basta, é necessário ser antirracista. Como sociedade, precisamos aplicar ações em prol de uma construção mais democrática, inclusiva e equânime para todos, não apenas para uma parte da população, dado que vivemos em um país no qual 54% da população é negra e majoritariamente excluída.”
Selma Moreira, diretora executiva do Fundo Baobá
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ISP
na prática
Branquitude:
racismo e antirracismo
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Uma realização do Instituto Ibirapitanga, o encontro foi um convite à reflexão sobre as relações raciais no Brasil a partir da compreensão de que desconstruir o racismo é responsabilidade do conjunto da sociedade – incluindo indivíduos brancos e instituições que reproduzem a lógica racista – e do chamado a assumir uma postura ética e responsável orientada à ação – de questionamento ao privilégio branco e enfrentamento ao racismo estrutural. Todos os debates realizados durante os três dias de evento estão disponíveis no canal do Instituto Ibirapitanga no YouTube. Acesse.
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