Filantropia comunitária é estratégia de resistência e auxílio no Brasil desde o século XIX

Apesar de pouco explorada, a filantropia comunitária é uma estratégia usada há pelo menos dois séculos no país. O Especial redeGIFE deste mês traz apontamentos sobre o tema, ouvindo especialistas e pessoas que atuam na área. Mergulhamos ainda na experiência secular de filantropia comunitária da Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD) de Salvador (BA), a primeira Organização Social Civil de Negros do Brasil, que em 2022  completa 190 anos.

“Quem consegue pensar o lugar é quem toca o chão do lugar”, é assim que Diane Sousa, presidente do Instituto Comunitário Baixada Maranhense (ICBM), define a filantropia comunitária. Para a gestora é melhor identificar as urgências de uma comunidade a partir das percepções internas. “Na filantropia comunitária, as pessoas estão criando seus métodos e nós, como organização, estamos buscando formas de potencializá-los.”

“É uma filantropia feita com e para a comunidade, afirma Pamela Ribeiro, coordenadora de projetos especiais do GIFE. Assim, é possível solucionar vulnerabilidades com uma perspectiva de quem está na vivência. De acordo com a coordenadora, apesar de ser uma abordagem que já existe há muitos anos, ainda é uma estratégia invisibilizada no campo do investimento social do país

Pensando nisso, a Rede de Filantropia para Justiça Social, referência no tema há 10 anos, está desenvolvendo uma série de levantamentos de dados, com foco nos associados do GIFE, para analisar o modelo no país. O ICBM é um dos fundos que integra a Rede.  Neste tempo do projeto, Graciela Hopstein, coordenadora executiva, tem identificado cada vez mais a criação de fundos comunitários. Porém, a maioria dos recursos mobilizados não são locais, vêm da cooperação internacional.

“O ISP [Investimento Social Privado] mobilizou em 2020, R$5,3 bilhões, mas esses recursos não chegam na ponta. O que precisamos é fazer a ponte com o ISP, que é o setor que mais mobiliza recursos para o campo social no Brasil”, avalia Graciela.

Sociedade Protetora dos Desvalidos pratica filantropia comunitária desde o século XIX

A Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD) criada no ano de 1832 em Salvador (BA) por 19 homens negros libertos é a primeira Organização Social Civil de Negros do Brasil que se tem registros. Num Brasil colonial, onde a escravização era fonte de renda de muitas famílias da alta sociedade, o grupo possuía estratégias de atuação para defesa de pessoas negras escravizadas ou ex-escravizadas.

Para se manterem, adquiriam imóveis com doações de sócios mais abastados usando os aluguéis e mensalidades para pagamento de auxílios como: funeral, pensão aos órfãos, viúvas e enfermos, projetos de alfabetização, entre outros.

Para a presidenta da Assembleia da SPD, Ligia Margarida de Jesus, desde a criação, a associação teve o foco voltado para a garantia de direitos da população afrodescendente no país.

“Os objetivos eram resgatar os negros e negras escravizados através da compra de cartas de alforrias. Mas, a SPD se preocupa com a alfabetização naquele momento em que o Brasil proibia negros de ir à escola. Outra coisa que a SPD fez como pioneira foi apoiar empreendedores negros com pequenos empréstimos”, explica Ligia.

Pela primeira vez na história, a SPD conta com duas presidentas representando a instituição. Além da Ligia Margarida, Regina Célia Rocha ocupa a presidência do administrativo. Ambas fazem questão de ressaltar que nos 190 anos de entidades os estatutos passaram por reforma, mas sempre mantiveram o caráter de apoio às pessoas negras como auxílio aos órfãos, viúvas e viúvos de ex-associados.

“Aqui é um local de ajuda social. Doamos cestas básicas para Salvador e quilombos na Bahia. Tem o apoio às ambulantes do Pelourinho, roda terapêutica para mulheres negras, visita a quilombos nacionais e internacionais onde fortalecemos nossa identidade. Além do auxílio para estudantes quilombolas e africanos”, diz Regina Célia.

A entidade busca parcerias para projetos, como a digitalização de documentos antigos que já rendeu à SPD o prêmio de Memória do Mundo da Unesco por um manuscrito de 1832 a 1847. “Conservar e digitalizar esse material tem alto custo. Algumas digitalizações foram feitas através de edital, mas buscamos outros para continuarmos”, diz Regina Célia com a esperança que documentos de 1920 até este século também sejam restaurados e digitalizados.

Outro projeto em curso é o documentário sobre os 190 anos da organização. A SPD lançou em abril um financiamento coletivo para angariar recursos. Mas, apesar das dificuldades, Regina Célia avalia avanços com a gestão liderada por mulheres e acredita que o cenário pode ser positivo para que a ajuda chegue a mais comunidades que precisam.

Linha do Tempo

Sociedade Protetora dos Desvalidos

É exemplo centenário de Filantropia Comunitária e Negra no Brasil

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Em 16 de setembro de 1832 foi criada a Irmandade de Nossa Senhora da Soledade Amparo dos Desvalidos. Neste mesmo ano a entidade constituiu o primeiro estatuto.

Com a criação de uma nova Legislação, a Sociedade assumiu definitivamente a sua situação de Sociedade Civil, mudando de nome para Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD).

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A lei dos entraves, estabelecia uma política econômica restritiva.

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A SPD passou a ser a primeira associação civil negra no Brasil, regulamentada como um montepio pelo Estado, através da Lei dos Entraves.

A SPD começa a se estruturar e inicia o processo para auxiliar com pensões viúvas de associados.

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Reforma do estatuto trazendo a criação do auxílio-enfermidade, pensão por invalidez, pensão às viúvas e órfãos motivada pela morte do associado, auxílio funeral e auxílio reclusão.

A entidade adquire a sede, instalada em um prédio próprio no Largo Cruzeiro de São Francisco, número 82, em Salvador.

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ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA

PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA

18 10
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SPD cria salas de aula primária noturna para os sócios e seus filhos.

SPD sedia as reuniões iniciais da Frente Negra Brasileira na Bahia.

19 10
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Durante a ditadura militar a SPD é proibida de envolvimento com questões sociais e políticas, mas nunca deixou de fazê-lo.

Documento que reúne registros de 1832 a 1847 é reconhecido pelo Programa Memória do Mundo, da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco).

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Esses documentos estão disponíveis no casarão até hoje.

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Pela primeira vez duas mulheres ocupam as presidências do Administrativo e da Assembleia da SPD.

190
anos da Sociedade Protetora dos Desvalidos.
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Foi iniciado o processo para conseguir produzir o filme sobre a Sociedade Protetora dos Desvalidos

Shift the power

Apesar da filantropia comunitária ser uma estratégia antiga, a visibilidade é mais recente. Pode ser percebido quando o campo da filantropia começa a se apropriar de movimentos como o shift the power, que pode ser traduzido como transferência de poder.

Para Pamela Ribeiro, o grande desafio é sua  implementação. De acordo com ela, é preciso superar o fato de que a filantropia brasileira ainda é muito mais executora dos seus próprios projetos do que doadora. Enquanto que a filantropia comunitária propõe uma estratégia de grantmaking. Para desenvolvê-la no Brasil, acredita, é preciso disposição em desafiar o status quo

“Essa forma de fazer filantropia mexe com as relações de poder. Normalmente quem tem dinheiro tem poder”, concorda Graciela  Hopstein.

Para Diane Sousa, expandir essa visão para os financiadores é o maior desafio.

“A filantropia comunitária traz a articulação da comunidade para pensar o seu lugar a partir da sua escassez. Mas, sempre entendendo que é possível chegar dentro do próprio território na abundância”, afirma Diane Souza

Um dos resultados é o fortalecimento das comunidades, territórios e organizações de base. 

“É um recurso que gera resultados, produz impacto, mas também fortalece o ecossistema que faz parte daquela comunidade” , finaliza Pamela Ribeiro.

O levantamento realizado pela Rede de Filantropia para Justiça Social mostra que existe um terreno fértil na área. A ideia não é apresentar um diagnóstico acabado, mas completá-lo a partir da reação e comentários dos fundos integrantes da oficina em relação a ele. 

“Na Rede pensamos numa filantropia articulada com os movimentos sociais”, destaca Graciela. “Até porque a maioria desses fundos foram criados por ativistas, pessoas que conhecem muito bem o campo e estão muito articuladas com as redes porque conhecem bem os territórios.”

A Rede prevê uma agenda possível com os investidores sociais, que incorpore elementos e dinâmicas da filantropia comunitária, como o incentivo à prática do grantmaking e ter mais contato direto com a comunidade beneficiada. Por fim, o trabalho deve ser divulgado em  doses “homeopáticas” ainda neste ano, apresentando alguns achados e tendências e publicado em sua versão final em 2023.

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