Investimento social privado pode potencializar papel transformador do esporte no Brasil

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Início dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 e com eles a esperança de medalhas para atletas brasileiras/os. No entanto, quando se reflete sobre o investimento em esportes no país, o cenário é desanimador. Organizações sofrem com a falta de recursos, tanto públicos quanto privados. O especial redeGIFE de julho foi em busca de quem vivencia este contexto para entender os caminhos possíveis para reverter a atual realidade.

O povoado Angico dos Dias, localizado na cidade de Campo Alegre de Lourdes (BA), tem pouco mais de mil habitantes. A história da comunidade foi transformada pelo esporte. Em 2022, num terreno onde a comunidade descartava lixo, surgiu um campinho improvisado e o projeto Jovem Feliz, que tinha como objetivo reunir crianças e adolescentes do povoado.

“A ideia era ter aulas de futebol no tempo livre dessas crianças e jovens para evitar que se envolvessem com drogas. A gente tinha carência de engajar a comunidade no esporte. De início eram 50 inscritos, dos quais apenas sete eram meninas”, explica Rani Farias, de 24 anos, nascida e criada no povoado e uma das idealizadoras do projeto. 

Pouco depois de criado o projeto, ele foi aprovado em um edital do Instituto Lina Galvani. “Esse apoio foi de grande importância porque o que a gente tinha era uma bola e um sonho. Conseguimos equipar o time com uniforme, comprar material para os treinos e palestras. Hoje o projeto atende 80 pessoas.”

Rani Farias conta ainda que, quando iniciou o projeto de futebol feminino, havia pouquíssimas meninas, o que gerou descrédito de alguns. “Foi bem complicado, bem difícil mesmo, a gente recebeu várias piadinhas machistas durante os treinos e isso foi sendo trabalhado, tanto em conversas dentro do projeto, como durante os treinos. E aí o nosso time hoje conta com 22 meninas de Angico dos Dias e mais algumas outras das comunidades que são próximas.”

Para além do esporte, o Jovem Feliz realizou mutirões de limpeza, o espaço deixou de ser local de descarte de resíduos e a comunidade passou a ter coleta de lixo. Rodrigo Kuyumjian, que atua no Instituto Lina Galvani, afirma que foi doada uma casa para funcionar como espaço para debates comunitários, batizada de Casa de Diálogo.

“O que o futebol tem a ver com isso? É uma maneira de aproximar esses jovens e mobilizar a formação de novas lideranças comunitárias. Eles frequentam a Casa de Diálogo, porque daqui alguns anos serão os adultos dessa comunidade”, explica.

Quem acessa o esporte no Brasil?

No entanto, infelizmente, a história de Angico dos Dias não é a regra. Na periferia de Salvador (BA) vivem os irmãos Esther Victória e Márcio Silva, de 10 e 13 anos. Eles estão em busca de financiamento para a ida ao Campeonato Sul-Americano de Karatê, que acontece em dezembro deste ano, no Chile. Atletas do Centro Social Urbano de Castelo Branco (CSU), Esther e Márcio foram às redes sociais pedir apoio para conseguirem participar da competição. Criada em janeiro de 2024, a vaquinha online tem como meta o valor de R$15 mil. Até o fechamento desta reportagem, ainda não havia sido arrecadado nenhum recurso pela plataforma. Caso consigam, serão os únicos atletas autistas baianos no campeonato. 

As dificuldades para angariar os recursos necessários apontam um cenário comum a diversos atletas brasileiros, que, em meio à falta de incentivo, veem oportunidades sendo perdidas.  

No vídeo publicado no Instagram, os irmãos aparecem carregando no pescoço medalhas que conquistaram nos campeonatos Norte-Nordeste, Baiano, Brasileiro, Pan-Americano e no Mundial de Karatê. Apesar da pouca idade, os dois têm trilhado caminhos vitoriosos, que demonstram o poder transformador do esporte, como destaca Itamar Judson, professor de Esther e Márcio, no CSU – espaço que se mantém com o trabalho voluntário de professores.

“Quanto mais se investe no esporte, no social, mais jovens têm oportunidade. Além de estarem envolvidos com atividades que somam no crescimento enquanto cidadãos,  ampliam as chances para que se afastem da vulnerabilidade social”

ITAMAR JUDSON, professor no Centro Social Urbano de Castelo Branco (BA)

Nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021, um levantamento do DNA do Time Brasil fez o raio-x da realidade dos atletas brasileiros: dos 309 que competiram, 131 não tinham patrocínio algum, 36 realizaram permutas, 41 fizeram vaquinhas e 33 conciliavam o esporte com outros empregos. Na delegação brasileira, 78 sequer estavam incluídos no Bolsa Atleta, que chegou a ter seu orçamento cortado quase pela metade, em 2018.  

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

As Olimpíadas também repetem um perfil já conhecido entre os atletas que compõem a delegação brasileira: maioria significativa de homens e sudestinos. Em 2016, o Sudeste chegou a contar com 288 atletas nos jogos, em comparação a apenas oito na região Norte. Apenas este ano, em Paris, passado mais de um século, mulheres serão a maioria na delegação brasileira (55%) pela primeira vez na história

Nuala Costa, surfista de Maracaípe, litoral sul de Pernambuco, conhece essa realidade de perto. A organização que dirige desde 2015, TPM – Todas Para o Mar, atende 80 crianças e  125 mulheres negras. Apesar do esforço para fazer do projeto, ao entrar na aba patrocinadores do site, o espaço está em branco. “A TPM tem cinco crianças pretas na equipe pernambucana de surf que compete o brasileiro sub-16. Apenas um tem patrocínio. Eles surfam, conseguem as vagas, mas param na hora de competir.” 

O projeto sobrevive do voluntariado, vaquinhas e editais pontuais. Nuala Costa, surfa desde os 16 anos, foi a primeira mulher negra a representar Pernambuco em uma competição nacional.

“O fato do surf agora estar nas Olimpíadas, esse boom do esporte, não chega nas minhas crianças de Maracaípe. As melhores surfistas do Brasil são mulheres negras, mas elas não têm patrocínio. Continua sendo um esporte classista, segregador e racista. Jovens pretas não estão nessas Olimpíadas e não estarão nas próximas.”

NUALA COSTA, surfista e diretora da TPM – Todas Para o Mar

Na opinião de Jeff Quirino, surfista e fundador do projeto Favela Radical, que funciona na favela de Turano, no Rio de Janeiro (RJ), o perfil de atletas que têm oportunidade de treinar em alto rendimento é muito específico. E isso está atrelado à imagem de “país no futebol”, modalidade na qual a seleção masculina nem se classificou para as Olimpíadas 2024.

“O Brasil ser o país do futebol influencia todas as modalidades, com limitação de investimento, escassez de publicidade, falta de referências que inspirem. Os investimentos do Brasil são no futebol, especificamente no masculino”

JEFF QUIRINO, surfista e fundador do projeto Favela Radical (RJ)

Dentro desse quadro, existe ainda outra peneira observada por Jeff Quirino: as pessoas que de fato conseguem estabelecer uma carreira no esporte. “São pessoas muito específicas. Ou eles têm estímulo de parentes próximos que são atletas ou têm acesso a algum projeto de grande expressão que trabalha como celeiro.”

Diante da falta de apoio, organizações menores fazem um trabalho mais “preventivo do que de formação”, afirma o surfista. Ou seja, o esporte se torna um espaço para afastar os jovens da possibilidade de imersão no uso de drogas ou na criminalidade. Foi o que aconteceu com o próprio Jeff, que na adolescência sofreu com a dependência química e passagens pelo sistema socioeducativo.

“Eu cheguei no fundo do poço. O Favela Radical surge da provocação de que as histórias de superação da favela fossem outras: do moleque ou da menina que precisou treinar surf ou ginástica horas por dia para participar de um campeonato”, conta Jeff. O projeto também atua na ressocialização de adolescentes que cumprem medidas socioeducativas.

Investimento social privado pode mais

A estratégia adotada pelo Favela Radical e pelo CSU não são exceções. Muitos projetos e iniciativas comunitárias são criadas para democratizar o acesso ao esporte, promover inclusão social, desenvolvimento comunitário e combater desigualdades. Perspectiva transformadora que não é acompanhada pelos setores que têm potencial de investimento na área.

Segundo o Censo GIFE 2022-2023, apenas 20% das 137 organizações respondentes atuam com a categoria Esporte e Lazer no Brasil. Nenhuma delas indicou o esporte como foco prioritário.  O apoio à área entre as organizações aparece prioritariamente nos incentivos fiscais. A Lei de Incentivo ao Esporte foi a segunda mais utilizada tanto no caso das federais, quanto nas estaduais.

Foto: Favela Radical

Foto: Favela Radical

Foto: Favela Radical

“O apoio ao esporte sempre foi difícil. É um privilégio”, desabafa o capoeirista Renato Santana, conhecido como Mestre Alicate, que desde 2008 mantém o projeto Capoeira Cultura em Ação, em Luís Eduardo Magalhães (BA), mas recebeu o primeiro apoio apenas em 2017, também através do Instituto Lina Galvani. “A gente já estava cansado, desanimado, nunca chegava apoio. Depois do primeiro, foi abrindo as portas, a gente começou a acreditar. Sem captação de recursos fica impossível levar o trabalho, é um desgaste gigantesco.”

Camila Valverde, diretora superintendente da Fundação ArcelorMittal que apoia projetos na área, acredita que o investimento social privado (ISP) pode fazer mais pelo setor esportivo, através de uma dinâmica que conecta negócios à sociedade. “Isso pode ocorrer direcionando da melhor forma os investimentos sociais e atuando como catalisador do desenvolvimento social.

“Por meio do ISP, podemos contribuir para ampliar o acesso à prática esportiva, a partir do financiamento de projetos de aulas gratuitas nas comunidades e o apoio à formação de novos atletas”

CAMILA VALVERDE, diretora superintendente da Fundação ArcelorMittal

Por outro lado, Jeff Quirino, aponta que muitos investidores privados ainda consideram “iniciativas sociais como custos e não investimento.” E se essa iniciativa tem origem na periferia, ele explica que o esforço para se tornar atrativo para investidores é ainda maior, porque precisam provar que são confiáveis. “Nos juntamos a redes potentes para atrair parceiros e investidores, para que eles tivessem segurança na favela, o que não é fácil.”

Para mitigar tais relações de exclusão, Camila Valverde aposta na troca de experiências. “Nesse sentido, o fortalecimento do trabalho em rede também é importante. As diferentes instituições podem apresentar suas visões e trocar soluções para dificuldades muitas vezes similares. Podem ainda unir forças e recursos para promover ações com maior impacto. Em um ambiente de cooperação, todos temos a ganhar.”

Entrevistados

Camila Valverde

Fundação ArcelorMittal

Itamar Judson

professor no Centro Social Urbano de Castelo Branco (BA)

Jeff Quirino

fundador do projeto Favela Radical

Rani Farias

idealizadora do projeto Jovem Feliz

Renato Santana

mestre Alicate, e do projeto Capoeira Cultura em Ação

Rodrigo Kuyumjian

Instituto Lina Galvani

Expediente

Natália Passafaro
COORDENAÇÃO DE COMUNICAÇÃO

Geovana Miranda
ANALISTA DE COMUNICAÇÃO

Afirmativa
REPORTAGEM/TEXTO

Marina Castilho
DESIGN & DESENVOLVIMENTO


Apoio institucional