Fundos patrimoniais e a sustentabilidade de organizações da sociedade civil

Por: GIFE| Notícias| 24/11/2014

Está em trâmite no Congresso Nacional um projeto de lei que regula a criação e a gestão de fundos patrimoniais. Para entender melhor o tema, o redeGIFE conversou com Paula Fabiani, presidente do IDIS, uma das organizações mais ativas na articulação do terceiro setor para o debate do tema. Confira:

1) Para começar, gostaria que a senhora definisse fundos patrimoniais e sua aplicação no contexto brasileiro?

Fundos patrimoniais (endowments) são estruturas que recebem e administram bens, majoritariamente recursos financeiros, que são investidos com os objetivos de preservar o valor do capital principal no longo prazo, inclusive contra perdas inflacionárias, e gerar resgates recorrentes e previsíveis para sustentar financeiramente um determinado propósito, uma causa ou uma entidade de interesse público ou coletivo, sem fins lucrativos.

Ao estruturar fundos desta natureza, as organizações se tornam menos dependentes de novas doações e patrocínios, alcançam maior estabilidade financeira e asseguram sua viabilidade operacional, permitindo que se organizem e cresçam de forma sustentável. Em países desenvolvidos, os endowments existem há mais de séculos, como o da University College de Oxford, estabelecido no ano de 1249. Dentre fundos patrimoniais conhecidos, com mais de 100 anos e impacto relevante na sociedade, encontramos o endowment da Rockefeller Foundation e o Carnegie Endowment for International Peace.

No Brasil, a criação de fundos patrimoniais é importante para promover a sustentabilidade no longo prazo das organizações da sociedade civil. Um dos obstáculos para a disseminação do endowment no Brasil, além de nossa pequena tradição em relação ao assunto, é a falta de uma legislação específica que facilite sua criação, e de incentivos fiscais.

A captação de recursos para endowments representa o mais alto grau de confiança entre uma organização e um doador, que não só quer eternizar uma causa, mas quer se ver eternizado nela. Assim, para que essa relação aconteça é necessário que haja transparência e um ambiente legal que traga segurança ao investidor social privado – o que não acontece no Brasil. Uma legislação específica para fundos patrimoniais amplificará o desenvolvimento desta estrutura e poderá influenciar positivamente a cultura de doação no país.

2) O IDIS liderou uma iniciativa de advocacy, trabalhando em rede para promover o desenvolvimento dos fundos patrimoniais no Brasil. Como foi esse trabalho?

O IDIS começou a debater o tema há alguns anos. Em 2011, realizamos um evento com especialistas e gestores de organizações com fundos patrimoniais que dividiram suas experiências e debateram a importância de uma legislação específica que promova a sustentabilidade do terceiro setor. A sistematização desses debates e de conhecimentos sobre o assunto estão no livro “Fundos Patrimoniais, criação e gestão no Brasil”, publicado pelo IDIS e único livro sobre o tema no país.

No final de 2012, a deputada Bruna Furlan entrou com um projeto de lei para a criação de fundos patrimoniais que beneficiaria apenas as universidades federais. Neste momento o IDIS e a Vérios Investimentos (atual denominação da Endowments do Brasil), que já vinham discutindo e disseminando a importância do tema por meio de artigos e debates, juntaram esforços para criar o Grupo de Estudos de Fundos Patrimoniais. Contaram com o apoio do GIFE e do Banco JP Morgan, que acreditaram na importância da iniciativa.

Este Grupo analisou o tema e elaborou uma nova proposta de projeto de lei para regulamentar a criação de fundos patrimoniais no Brasil que beneficiasse também as organizações da sociedade civil. O Grupo de Estudos contou com a participação de em torno de quarenta membros (dentre eles vários advogados) e noventa ouvintes, e se reuniu ao longo de quatorze meses, entre Dezembro/2012 e Janeiro/2014.

Em maio deste ano, para demonstrar a importância do projeto e o compromisso dos investidores sociais com o tema, o IDIS convocou um grupo de doadores, investidores sociais e colaboradores do Grupo de Estudos, todos diretamente interessados na aprovação do projeto de lei, devido a sua relevância para a promoção da atuação filantrópica no país, para reunião com o Ministro Gilberto Carvalho e apresentação da proposta.

Mais recentemente realizamos junto com o GIFE encontros com organizações da sociedade civil e investidores sociais para apresentar e debater o projeto de lei. As sugestões colhidas foram encaminhadas ao deputado Paulo Teixeira que acolheu o projeto e à equipe da Secretaria Geral da Presidência. Estas foram algumas das estratégias de advocacy e disseminação que trouxeram mais legitimidade e apoio à proposta.

3) Como se deu a articulação com a Secretaria-Geral da Presidência da República?

No final de 2012, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, participou do II Fórum de Filantropos e Investidores Sociais organizado pelo IDIS, onde se comprometeu a receber a proposta do Grupo de Estudos. Nesta ocasião apresentamos a necessidade da criação de uma legislação específica para os endowments, o que chamou a atenção do ministro e sua equipe, que reconheceram a importância do tema e nos apoiaram no encaminhamento da proposta ao Deputado Paulo Teixeira.

A proposta produzida pelo Grupo de Estudos foi encaminhada à Secretaria Geral da Presidência da República e à Câmara dos Deputados, onde foi recebida como a solução mais adequada e mais desenvolvida para o eixo estruturante da sustentabilidade das organizações do Terceiro Setor. Após análise e redefinição de alguns aspectos por parte da equipe do deputado Paulo Teixeira e do governo (equipe do Ministro Gilberto Carvalho), em julho deste ano foi protocolado na Comissão de Finanças e Tributação (CFT) da Câmara dos Deputados o projeto de lei em questão.

O documento foi protocolado como Substitutivo ao Projeto de Lei nº 4643/12 da deputada Bruna Furlan, que trata da criação de fundos patrimoniais apenas para universidades federais, ou seja, não beneficiaria as organizações da sociedade civil que tanto necessitam desse mecanismo de sustentabilidade.

4) O projeto de lei já tramitou no Congresso Nacional, certo? Em que momento estamos agora?

O Substitutivo do Projeto de Lei, que prevê a possibilidade de criação dos endowments para todas as organizações da sociedade civil (ampliando o projeto original, focado somente nas universidades federais), instituindo o fundo patrimonial vinculado como um novo tipo societário e criando incentivo fiscal correspondente, recebeu contribuições da Secretaria Geral da Presidência da República, e passou também a: (i) instituir incentivo fiscal para pessoas físicas que doem a organizações da sociedade civil em geral, desde que as donatárias estejam inscritas no Cadastro Nacional de Entidades Sociais do Ministério da Justiça, e (ii) revogar a Declaração de Utilidade Pública; duas demandas antigas do Terceiro Setor.

Nesse momento, o projeto está sob análise da Comissão de Finanças e Tributação e depois segue para a Comissão de Constituição e Justiça antes de ir ao Senado. Há cerca de um mês a CFT deu um parecer, mas a respeito do projeto original. Juntamente com a Vérios, a própria Secretaria Geral da Presidência e outros integrantes do Grupo de Estudos, estamos acompanhando o processo e trabalhando para a aprovação do projeto de lei e assim que os endowments se tornem uma realidade bem-sucedida e difundida no Brasil.

5) De que forma esse marco regulatório significa um importante passo para o fortalecimento do terceiro setor em nosso país?

Este projeto de lei beneficia não só as organizações receptoras de recursos para seus fundos patrimoniais, mas beneficia os investidores sociais, os financiadores. O Brasil teve uma geração de riqueza expressiva nas últimas décadas, mas não vimos o crescimento das doações na mesma proporção.

É importante melhorarmos o ambiente regulatório também para os doadores de recursos, criando mecanismos de financiamento de longo prazo para as organizações sociais. Este é um projeto que beneficiará tanto doadores como receptores de recursos, permitindo uma aproximação destes grupos.

Os beneficiários serão não só as instituições na área de educação, cultura, saúde, entre outros, mas o doador dos recursos que passa a contar com uma estrutura jurídica mais segura e perene. Além disso, a ampliação do incentivo fiscal para indivíduos poderá ser um grande passo para o fomento da cultura de doação no país, o que certamente fortalecerá nosso terceiro setor, que precisa de boas notícias para renovar sua perseverança.

6) A senhora acredita que as organizações sociais brasileiras, especialmente as de pequeno porte e as de base comunitária, têm maturidade institucional para usufruir dessa política pública? Qual é o próximo passo? Como mobilizar o setor para a aplicação da política?

Atualmente, nada impede uma organização de criar seu fundo patrimonial. A Fundação Maria Cecília Souto Vidigal é um dos exemplos que é possível termos a criação de endowments no Brasil. Mesmo sem a legislação, ela e outras organizações de tamanhos diversos como Fundação Bradesco; Instituto Unibanco; Fundação Banco do Brasil; Fundação Itaú Social; Instituto Alana; Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP); Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito da USP; Liga Solidária; Fundação Abrinq; Fundo Baobá; Fundo Elas; e Fundo Brasil de Direitos Humanos criaram seus fundos, mas não possuem a proteção que viria com uma legislação específica. Além disso, não há incentivo fiscal para doações a endowments.

Com base na legislação estadual, hoje, tanto o doador quanto a organização que recebe o dinheiro pagam impostos sobre o valor doado acima de um determinado valor. Em todo caso, é importante frisar que os endowments são mais uma alternativa para a captação de recursos, mas não resolvem a dificuldade de se captar recursos no Brasil. Com a aprovação da lei, não significa que todas as organizações devam aderir imediatamente ao novo sistema pois a lei requer regras de governança, transparência e prestação de contas específicas para o fundo patrimonial vinculado.

Para se tornar uma realidade amplamente difundida, os endowments precisarão principalmente de estímulos do poder público e de um esforço conjunto de atores da sociedade civil. Serão necessárias ações de disseminação dessa estrutura e de suas regras para estimular o surgimento e o desenvolvimento de fundos patrimoniais que fortaleçam o setor sem fins lucrativos no Brasil beneficiando um grupo amplo de organizações.

7) Que casos, olhando para o cenário mundial, podemos observar como modelos para o que queremos no Brasil?

Alguns dos maiores endowments do mundo estão sediados nos Estados Unidos, sendo dois bons exemplos conhecidos no Brasil como o da Fundação Bill & Melinda Gates e o da Fundação Rockefeller. Estas organizações investem em projetos nas mais diversas áreas provocando transformações sociais e liderando debates importantes. A Fundação Rockefeller já apoiou diversos indivíduos que ganharam o prêmio Nobel e a Fundação Bill & Melinda Gates se propôs a erradicar a pólio do mundo.

São exemplos de atuações ambiciosas e que buscam impactar significativamente o planeta em que vivemos. Na área de educação, os fundos patrimoniais são mais conhecidos por seu tamanho e gestão diferenciada, como é o caso dos fundos das universidades de Harvard e Yale (US$ 32,7 e 20,8 bilhões em 2013, respectivamente).

No caso das instituições de ensino, a existência dessa estrutura permite que a instituição invista em pesquisa, construa melhores instalações e busque excelência nas suas atividades. Aquelas que se utilizaram dessa estrutura ocupam atualmente posições de destaque nas suas áreas de atuação. Dentre as 10 melhores instituições de ensino do mundo, seis são dos Estados Unidos e quatro da Inglaterra e todas possuem endowments.

Estes são alguns exemplos que demonstram o potencial de uma organização que possui estabilidade financeira para investir em causas ou projetos que requerem um trabalho de mais longo prazo, mas que realmente são importantes para o desenvolvimento de um país ou do nosso planeta.

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