90 anos de Ruth Cardoso: um olhar abrangente sobre o Terceiro Setor
Por: Fundação FHC| Notícias| 28/09/2020
Publicado por: Fundação FHC
No dia 19 de setembro, Ruth Cardoso, nascida em Araraquara em 1930, faria 90 anos. Sua trajetória profissional foi marcada pela dedicação e pelo rigor como antropóloga e professora universitária (ensino, pesquisa e orientação acadêmica). Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), com quem foi casada por 55 anos e teve um filho e duas filhas, criou o Programa Comunidade Solidária, que teve como objetivo eliminar o assistencialismo e o clientelismo por meio da corresponsabilização e cooperação entre Estado (em seus três níveis) e sociedade na área social.
Seu principal legado, construído durante mais de 50 anos de carreira reconhecida nacional e internacionalmente, foi o estudo e a atuação pelo desenvolvimento da sociedade civil no Brasil, que, desde a redemocratização (1985), teve um período de grande expansão, não sem dificuldades, com o surgimento de diversas organizações não governamentais e significativo aumento da participação social. O momento atual, no entanto, representa uma ameaça a essas conquistas e nos desafia a seguir avançando.
Estas foram as principais conclusões deste webinar que reuniu o economista e estatístico Ricardo Paes de Barros (ex-IPEA) e o escritor Augusto de Franco, especialista no estudo e formação de redes, com mediação de Simone Coelho, especialista em Terceiro Setor e ex-orientanda de Ruth Cardoso, e abertura do ex-presidente Fernando Henrique. O evento foi uma parceria entre a Fundação FHC e o Insper.
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“Ruth participou de importantes mudanças que aconteceram na política social do Brasil durante meio século e em muitos momentos foi protagonista delas”, disse o professor e pesquisador do Insper Ricardo Paes de Barros, que há décadas se dedica à identificação de desafios nacionais, formulação e avaliação de políticas públicas com base em evidências científicas e análises estatísticas.
“Ruth foi embora muito cedo e deixou saudade e memória: ela era uma pessoa que se doava aos outros com muita energia, tinha uma mistura muito positiva de intelectual respeitada por seus pares e capaz de conversar com as pessoas com simplicidade. Ela se preocupava verdadeiramente com o povo”, disse FHC ao abrir o evento.
“Era uma pessoa extremamente democrática, que abria espaço e dava importância a todos, e estimulava o exercício de um olhar atento para a realidade”, lembrou Simone Coelho, mestre e doutora em Ciência Política pela USP, sob orientação da Profa. Ruth Cardoso. Autora da tese o “Terceiro Setor: um estudo comparado Brasil e Estados Unidos” (lançada em livro pela Editora Senac SP), Simone destacou o interesse da antropóloga pelo estudo dos movimentos sociais e sua relação com o Estado.
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‘Política social é assunto de todos’
Segundo Augusto de Franco, uma “janela de inovação social se abriu no mundo” a partir dos anos 1980, com a expansão democrática ocorrida em todo o mundo e com a popularização da internet. No Brasil, uma nova Constituição, apelidada de “Constituição Cidadã” por Ulysses Guimarães (presidente da Assembleia Constituinte), foi promulgada em 1988 e, no ano seguinte, o país voltou a eleger seus presidentes diretamente.
“Aquele conjunto de novidades nacionais e internacionais resultou na vigorosa ascensão do terceiro setor e em um ambiente de experimentação que gerou uma nova geração de políticas sociais baseadas na indução do desenvolvimento a partir do investimento em capital social”, afirmou o criador e membro da Escola-de-Redes – que conecta cerca de 13.500 pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e à criação e transferência de tecnologias de netweaving.
Anteriormente, as discussões sobre como elaborar e implementar políticas sociais era dificultado por ideias e escolhas que pareciam contraditórias, mas, a partir de então, percebeu-se que era possível avançar de forma integrada e concomitantemente em diversas dimensões e direções:
1. O dever do Estado e a responsabilidade do cidadão;
2. Políticas públicas e fortalecimento de dinâmicas comunitárias;
3. Políticas de alcance universal e focalizadas;
4. Políticas assistenciais e de indução ao desenvolvimento;
5. Políticas econômica e social; e
6. O compartilhamento com a sociedade tanto da operação quanto da formulação de uma estratégia de atuação social.
O Programa Comunidade Solidária foi criado nesse contexto, em 1995 (primeiro mandato de FHC), com o objetivo de combater a pobreza no Brasil, investindo recursos federais, bem como captados no mercado e na sociedade civil, em algumas áreas definidas como prioritárias: saúde, alimentação e nutrição; emprego e renda; acesso a direitos; desenvolvimento urbano e rural.
Segundo Simone Coelho, o Comunidade Solidária colocou em prática (e deu escala a) algo que Ruth já investigava e propunha há vários anos: “A consolidação de um espaço de colaboração onde deveriam estar presentes duas lógicas: a do Estado, que tem a obrigação de garantir direitos universais a todos os seus cidadãos, e a da sociedade civil, marcada por interesses específicos que precisam ser direcionados para fins comuns”, explicou a pesquisadora. O programa – idealizado por Ruth e implementado por uma rede de profissionais e organizações de diversas áreas – destinou recursos públicos para financiar iniciativas em comunidades com grande concentração de pobreza, tendo como premissa a exigência de participação do terceiro setor e da população local na elaboração e implementação das propostas.
Para Augusto de Franco, membro do Comitê Executivo do Conselho da Comunidade Solidária entre 1995 e 2002, o programa partia do pressuposto de que a política social não serve apenas para resolver um problema emergencial de sobrevivência de parte da sociedade, mas é necessária para o desenvolvimento de todos, sobretudo em contextos de muita desigualdade como no Brasil (de renda, riqueza, conhecimento e poder). “A pobreza não pode ser transformada em beneficiária passiva e permanente do Estado, os mais pobres precisam ter condições de traçar seus próprios caminhos”, lembrou.
“Ruth não só incentivou a participação de organizações da sociedade civil como das empresas (grandes e pequenas) e soube acomodá-las em um ambiente muitas vezes hostil à sua participação. Possibilitou a conversa entre atores com interesses por vezes antagônicos, trabalhadores, empresários e ativistas sociais”, disse Paes de Barros, que foi subsecretário de Ações Estratégicas da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (Governo Dilma Rousseff).
Não apenas no governo FHC mas também nos que vieram em seguida (Lula e Dilma), assim como em diversas administrações estaduais e municipais, os espaços de participação da sociedade na definição das políticas sociais brasileiras foram progressivamente ampliados, com a criação de conselhos participativos, conferências (municipais, estaduais e nacionais) e ampliação de institutos e associações sem fins lucrativos. As empresas privadas também passaram a participar da definição de prioridades e dos gastos na área social, que representam hoje cerca de 25% do PIB. Como exemplo, ele citou o Grupo de Instituições Fundações e Empresas (GIFE), que investe entre R$ 3 bilhões e R$ 4 bilhões por ano na área social.
Conheça mais sobre a trajetória de Ruth Cardoso:
https://fundacaofhc.org.br/ruth-e-fhc/ruth-cardoso
‘Espaço de experimentação’
Segundo Paes de Barros, a adesão dos diversos atores públicos e privados à nova proposta defendida por Ruth Cardoso nos anos 1990 não ocorreu de forma automática: “Ela sempre afirmava sua preocupação de que os conselhos não estavam sendo ocupados com o profissionalismo e a eficiência necessários.”
Outro ponto apontado pelo professor é o mau uso crônico dos recursos públicos: “Apesar de o Brasil ter aumentado muito os gastos sociais, os indicadores sociais não estão melhorando significativamente”, afirmou. Segundo ele, a participação da sociedade civil é essencial para melhorar a qualidade desses investimentos, apontando, sempre com base em dados e evidências, áreas e temas essenciais a serem priorizados e locais e públicos a serem atendidos.
“A sociedade civil tem que trabalhar em parceria e não em substituição ou em paralelo ao setor público. O Estado (União, Estados e Municípios) também deve buscar sinergia com a sociedade civil e as empresas”, disse o engenheiro formado pelo ITA, mestre em estatística pelo IMPA e doutor em economia pela Universidade de Chicago.
Segundo Paes de Barros, a sociedade civil, por meio de suas organizações e das próprias comunidades, também deve atuar na fiscalização do Estado e agir como seu braço operacional para a implementação de políticas sociais. Ao exercer esta última função, enfrenta o desafio de manter sua autonomia, posta em risco quando o Estado é seu principal financiador, o que não é recomendável.
O terceiro setor tem outro papel importante para a produção de políticas públicas: a experimentação. Segundo o professor do Insper, essas organizações estão mais distantes das pressões governamentais e devem testar inovações sociais. Podem também documentar boas práticas do próprio governo, que não tem tempo para fazê-lo, e garantir que o conhecimento adquirido nas experiências passadas seja utilizado no futuro.
“Na visão de Ruth, se tivermos um terceiro setor que trabalhe próximo ao setor público, mas de maneira independente e articulada, é possível atingir o objetivo de fazer com que os investimentos sociais públicos e privados cheguem de fato a quem mais precisa, com eficiência e transparência”, concluiu.
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‘Democracia é convivência’
A principal dificuldade de engajar mais atores sociais no ciclo de implementação das políticas públicas é produzir consensos. “Este é um dilema que faz parte da democracia”, disse Augusto de Franco, autor de vários livros sobre desenvolvimento local, capital social, democracia e redes sociais.
Segundo o consultor, na época em que trabalhou junto a Ruth Cardoso, a interlocução era um processo complexo e demorado e, no início das discussões, dificilmente havia consenso. A concretização de novas legislações, políticas e programas só foi possível após muito debate e permanentes ajustes e adaptações. Como exemplo, ele citou a Lei das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), cuja redação exigiu 20 meses de intenso diálogo com o terceiro setor e foi sancionada pelo presidente FHC em 1999 (Lei 9.790).
Para o co-fundador da Comunitas, está mais difícil chegar a entendimentos comuns nos dias que correm. “O período que estamos vivendo é inédito porque a sociedade está polarizada na sua base. A democracia não é tão minimalista a ponto de ser definida como troca de governos sem derramamento de sangue. Democracia é convivência”, afirmou.
Segundo Franco, a polarização chegou a um nível extremo em que parte da sociedade acredita que aqueles que pensam de maneira diferente são seus inimigos e não têm legitimidade. “Temos que ter tolerância para construir consensos, mas isso é quase impossível atualmente”, continuou.
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Paes de Barros concordou: “É fácil ser aberto e escutar quando estamos entre pessoas que pensam parecido, o difícil é fazer isso em ambientes cada vez mais polarizados”. Segundo ele, o exemplo de Ruth Cardoso na condução do Comunidade Solidária é um caminho a ser resgatado: “Um bom árbitro, que saiba ouvir em situações difíceis e polarizadas, faz a diferença. Além disso, é importante se basear sempre em evidências”, concluiu, lembrando outra obsessão de Ruth Cardoso.
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Beatriz Kipnis, bacharel e mestre em Administração Pública e Governo (FGV-SP), é assistente de coordenação de estudos e debates da Fundação Fernando Henrique Cardoso.