Tem um bode na sala: filantropia na berlinda

Por: Instituto Sabin| Notícias| 14/07/2016

Fábio Deboni[1]

 

Tenho ouvido muitos comentários ácidos sobre o papel da filantropia[2] no Brasil. Em geral, eles são feitos por colegas que também atuam na área socioambiental, mas que não necessariamente atuam em algum instituto ou fundação. Na medida em que me aproximo do campo do investimento de impacto, este tipo de percepção sobre o papel da filantropia parece aumentar. Em geral, paira no ar certa compreensão de que a filantropia é algo de cunho mais assistencialista e pontual. Será?

Para além de me contrapor a este tipo de entendimento, do qual discordo, tenho procurado fazer a autocrítica sobre quais seriam os motivos que poderiam alimentar este tipo de pensamento. Afinal, quais seriam os pontos de melhoria da filantropia frente a estas críticas sobre o seu papel e atuação? Afinal, nem a filantropia nem nenhum outro setor está isento de receber críticas e demandas por aprimorar seu desempenho. Isso deveria ser uma prática permanente em qualquer setor ou organização.

Quais seriam as principais questões que têm alimentado esta percepção sobre o papel da filantropia no país? O que tem levado as pessoas a tecerem estes comentários mais críticos sobre a filantropia por aqui?

Procurei refletir em profundidade para identificar dimensões e contextos destas leituras, a meu ver, equivocadas, da filantropia. Diante da diversidade e complexidade do setor, me detive no recorte mais vinculado à esfera de atuação de institutos e fundações (empresariais) como local de fala desta reflexão. Consegui elencar 7 aspectos que, a meu ver, contribuem para alimentar estas críticas sobre o setor. Estão longe de esgotar este debate, servindo apenas como ponto de partida para esta reflexão:

  1. Inacessibilidade de Institutos e Fundações
  2. Abertura ao risco
  3. Relação com mantenedores
  4. O “meu” projetinho
  5. Ouvindo o clamor das ruas
  6. Farol baixo / farol alto
  7. Assistencialismo

 

1. Inacessibilidade de Institutos e Fundações

É algo que tem se modificado recentemente, mas ainda “somos” pouco acessíveis a organizações da sociedade civil, empreendedores sociais e players afins. Para além de as informações estarem mais acessíveis nos sites de cada instituto e fundação[3], a aproximação de uma organização que não figura no arco de relacionamento de um instituto ou fundação empresarial não é tão simples assim.

De um lado, há muitos ruídos nesta aproximação. Da parte de quem bate à porta da fundação, em geral, a abordagem é por captação de recursos e, muitas vezes, feita de maneira afoita e pouco apropriada. Orientações sobre esta aproximação são facilmente encontradas na ABCR[4] e em cursos desta área. Talvez essa enxurrada de aproximações inadequadas tenha contribuído para criar barreiras de acesso destas organizações a institutos e fundações. Esta é uma realidade “ossos do ofício” de quem está do lado de cá do “balcão”, ainda que eu não goste deste tipo de ótica, afinal, recebemos um sem número de demandas e solicitações de apoio diariamente, muitas delas com erros (na forma e/ou no conteúdo).

Para além desta perspectiva é também interessante perceber o quanto institutos e fundações poderiam se mover mais em determinados setores, temas e contextos. O “mover-se mais” tem a ver com ir a eventos, procurar organizações afins, abrir espaços de diálogo sobre o tema em questão, buscar referências (aqui e de fora) sobre o assunto, enfim, como dizem, “sair do ar condicionado e ir à rua”.

 

2. Abertura ao risco

Espera-se que institutos e fundações estejam mais abertos e tolerantes a assumirem riscos, mas será que essa máxima é uma realidade? Será que estamos operando na capacidade máxima de assumir riscos?

Tenho minhas dúvidas sobre isso. Acho que a abertura ao risco está muito presente em nossa narrativa, mas poderia estar mais presente em nossa prática.

Se olharmos para os temas de atuação de associados GIFE, nota-se que as chamadas “bolas divididas”, ou seja, temas mais polêmicos e menos consensuais ainda são minoritários. Questões ligadas a cidadania LGBT, política, questões étnico-raciais, por exemplo, são ainda pouco abordados na estratégia de institutos e fundações. Portanto, o risco temático é ainda uma realidade que poderia evoluir bastante.

Além da dimensão temática, entra em cena a dimensão do modus operandi, afinal a forma como a fundação se relaciona com seus pares, com seus parceiros e com a sociedade é igualmente importante. Considerando seu aspecto de “investidor” e também de “implementador”, a fundação tem em mãos ótimas oportunidades de imprimir uma atuação mais ousada e, portanto, mais aberta ao risco. Significa experimentar novas formas de atuar, tanto internamente (ex: home office, coworking, etc) quanto externamente (ex: inspirada na enxurrada de “coisas” que emergem da economia colaborativa). Esse modus operandi desdobra muito além da “forma de atuar”, pois vai conectando a fundação a novos temas, novos atores e novos saberes. Isso, por sua vez, contribui para retroalimentar seu sistema de planejamento estratégico, ou, ao menos, deveria inspirar nesta direção.

 

3. Relação com mantenedores

Vivemos literalmente numa fronteira entre empresas e ONGs. Para além desta suposta dualidade entre estes dois mundos bem distintos entre si, atuar como meio de campo entre eles não é tão simples quanto parece. Este talvez seja um dos maiores legados de um profissional que atua num instituto ou fundação empresarial: precisa trocar rapidamente de boné e entender tanto da lógica dos negócios (profit) quanto do “social” (non-profit). Este cruzar cotidiano de fronteiras é muito desafiador e, ao mesmo tempo, uma jornada de intenso aprendizado; requer muita habilidade de atuar em diferentes setores e contextos e muito jogo de cintura. Neste aspecto, parte das críticas recebidas não é adequada, pois desconsideram esta árdua missão e, sobretudo, que muitas vezes os profissionais de institutos e fundações fazem a permanente defesa do “social” frente à visão “business” de suas mantenedoras.

A crítica neste ponto está mais vinculada ao fato de o instituto levar o nome da mesma empresa mantenedora (marca, recursos, peso institucional) poder torná-lo menos ágil e menos permeável ao contato com seu “cliente” (comunidades).

Por sua vez, esta relação com seu mantenedor traz diversos desafios ao instituto no que diz respeito à tão falada sustentabilidade. Na lógica da empresa mantenedora é “natural” que seu instituto tenha que buscar outras fontes de recursos para custear sua atuação. Isso, por sua vez, pode colocar o instituto em rota de colisão (e de competição) com organizações da sociedade civil com as quais ele já estabelece parceria (ou pode vir a estabelecer). Afinal, o instituto que até então era unicamente um “investidor” passa também a ser um “captador de recursos”. Além desta trajetória de um eminente conflito, há outras dimensões de ordem ideológica, ética e política que fica para outra conversa.

 

4. O “meu” projetinho

O desafio de construir uma atuação mais coletiva (e em rede) entre institutos e fundações é um ponto de atenção na atualidade. Tem se falado mais nesta questão ao percebermos que é preciso sair da nossa caixinha e construir ações mais coletivas. Isso requer inúmeras mudanças que não são triviais e simples de serem conduzidas.

Talvez uma saída viável e que vem ocorrendo na atualidade seja a criação de iniciativas que são co-financiadas por vários institutos e fundações e não estão, necessariamente, vinculadas a nenhum deles. Este tipo de coalizão pode ser um bom ponto de partida para ampliar as possibilidades de cada instituto sair do “seu” projeto para uma percepção mais focada em o que traria maior impacto (de forma mais eficiente) para o enfrentamento de determinadas causas relevantes para nossa atuação.

Esta mudança de mindset já vem sendo percebida[5] e trará boas transformações no interior de institutos e fundações. Não acredito que a era do “meu” projetinho irá acabar, mas passará a conviver com iniciativas menos autocentradas e mais direcionadas a causas bem delimitadas e a formas mais eficientes e inovadoras de enfrenta-las. Pode ser que o “meu” projetinho se encaixe nesta solução, com ou sem ajustes, ou pode ser que a gente tenha que pivotar[6].

 

5. Ouvindo o clamor das ruas

Será que estamos realmente abertos, atentos e permeáveis aos anseios dos nossos “clientes” e aos clamores das ruas? Será que estamos acompanhando as mudanças rápidas que nossa sociedade está vivendo? Temos conseguido incluir parte desta enxurrada de informações em nossa estratégia de atuação? Estamos antenados e participando do movimento da “inovação aberta” e seus desdobramentos?

Tenho minhas dúvidas se estamos conseguindo ser realmente um “radar de Inteligência social” da empresa (mantenedora) e se nosso radar está bem calibrado para captar estas tendências. Talvez sem nos darmos conta, ainda estejamos operando mais numa lógica analógica, de difusor de práticas, do que numa lógica de captar novas tendências para compreendê-las e trazê-las para dentro da casa para que façam sentido à nossa própria atuação.

Presenciamos no Brasil inúmeras manifestações de rua ao longo de 2013, que fizeram eclodir um sem número de demandas, vozes e anseios de diferentes perspectivas. Será que estas novas formas de a sociedade se manifestar estariam em sintonia com a ideologia e o funcionamento das nossas organizações?

Para além das “ruas”, estamos aqui falando do conjunto de stakeholders com os quais nos relacionamos. Do nosso Conselho até os beneficiários dos projetos, todos que se relacionam direta e indiretamente com nossa organização devem estar visíveis no nosso radar.

 

6. Farol baixo / farol alto

É possível atuar nestas duas perspectivas? Um olhar mais focado nas iniciativas de curto prazo – o seu planejamento estratégico aprovado pelo seu Conselho e vigente – e outro olhar mais atento a tendências e oportunidades num horizonte de médio e longo prazo. Temos conseguido pactuar compromissos de mais longo prazo ou ainda atuamos numa lógica anual? Temos conseguido convencer nossas mantenedoras sobre a relevância deste equilíbrio de curto e longo prazos?

Sinto que temos sido cada vez mais pressionados a entregar resultados de curto prazo e não temos tido a capacidade plena de construir estratégias de médio e longo prazo. Quando o fazemos, há ressonância positiva neste sentido[7].

Nosso desafio, portanto, é conseguir transitar nos 2 horizontes, dando conta das demandas de curto prazo sem perder de vista as reflexões mais de médio e longo prazo. Parece fácil, mas se trata de uma estratégia bastante complexa. Afinal, temos visto muito, sobretudo em temos de crise, junto a entidades sociais parceiras que com frequência precisam “vender o almoço para pagar a janta”. Isso revela a dificuldade real de sustentabilidade que o setor social enfrenta.

 

7. Assistencialismo

Uma crítica muito comum é quanto ao escopo de atuação da filantropia no Brasil. Em geral, o setor é visto como muito assistencialista, ainda que este termo necessite de uma abordagem mais profunda. A crítica ao “assistencialismo” que se ouve é muito ligada a iniciativas mais pontuais e que estão mais preocupadas em “dar o peixe” do que ensinar a pescar. Acredito que esta crítica seja a mais fácil de ser enfrentada, pois, felizmente este panorama parece estar sendo superado por boa parte de institutos e fundações. Lidar com demandas emergenciais e pontuais será sempre uma realidade; a questão é como lidar com elas sem concentrar boa parte da sua estratégia e operação nelas.

É importante salientar que é possível conciliar modos de atuação mais imediatos e pontuais com formas mais prolongadas e continuadas. Campanhas de mobilização de voluntários são práticas presentes em muitas empresas, institutos e fundações e precisam ser encaradas como passos relevantes em direção a práticas mais profundas e permanentes.

 

*  * *

 

É importante concluir que o campo emergente das finanças sociais / investimento de impacto está promovendo boas transformações na filantropia. Não se sabe ainda onde este entrecruzamento de áreas vai dar, mas é mais provável que a filantropia seja muito mais provocada a se reinventar[8]. Uma das preocupações que o campo filantrópico tem debatido é com relação aos vários problemas sociais que não são passíveis de serem enfrentados na lógica do mercado. Um exemplo é a área de garantia de direitos. Como o debate é ainda recente, parece que a filantropia tenderá a adotar uma atitude mais híbrida, passando a atuar mais na área de finanças sociais / impact investing e ao mesmo tempo redefinindo temas para uma atuação de cunho mais filantrópico (recursos de doação e/ou implementação de iniciativas sem desempenho financeiro). Certamente surgirão outros caminhos e escolhas, não necessariamente o modelo híbrido prevalecerá. É preciso acompanhar as transformações em curso para perceber com mais clareza estes movimentos.

Entendo que este modelo híbrido vai demandar muita conversa, reflexão e tentativa e erro. Talvez a palavra que faça mais sentido neste momento seja “resiliência”. É o que mais precisamos nesta fase de profundas transformações que estamos vivendo. O importante é permanecer resistentes e fortes frente às mudanças, mas sem nos deixar cristalizar nas certezas que ainda carregamos conosco. Afinal, como diz Edgar Morin[9]: “o mundo é um arquipélago de certezas frente a oceanos de incertezas”.

 

[1] Gerente Executivo do Instituto Sabin (www.institutosabin.org.br). Atualmente coordena duas Redes Temáticas no âmbito do Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) – Rede de Saúde e Rede de Negócios de Impacto Social, www.gife.org.br[email protected]

[2] Parto do entendimento do conceito de “investimento social privado”, compreendido pelo Gife como sendo o “repasse voluntário de recursos privados de forma planejada, monitorada e sistemática para projetos sociais, ambientais e culturais de interesse público”.

[3] Merece destaque a iniciativa louvável do Gife do Painel da Transparênia: https://gife.org.br/painel-gife-de-transparencia/o-painel/

[4] http://captadores.org.br/ – Associação brasileira de captadores de recursos.

[5] As Redes Temáticas e as Redes Regionais do Gife são exemplos destas iniciativas, mas há inúmeros outros.

[6] http://exame.abril.com.br/revista-exame-pme/edicoes/64/noticias/qual-o-significado-do-termo-pivotar

[7] Um exemplo bem interessante é o Visões+15, da Fundação Telefônica: http://www.fundacaotelefonica.org.br/tendencias15/

[8] Sugiro artigo que faz esta reflexão: http://technical.ly/baltimore/2016/05/12/impact-investing-changing-philanthropy/

[9] Morin, E.  Os setes saberes necessários à educação do futuro.  Editora Cortez.

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