Mudança cultural é principal aspecto a ser trabalhado nas ações contra o trabalho infantil

Por: GIFE| Notícias| 02/05/2005

MÔNICA HERCULANO
Repórter do redeGIFE

Caiu 54% o número de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos envolvidos em casos de trabalho infantil doméstico no Brasil, entre 1992 e 2003, mostra levantamento da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Divulgado na última semana, o dado faz parte de um estudo baseado no cruzamento de resultados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (Pnad), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Ao expandir o escopo, a pesquisa identifica 2,7 milhões de crianças e adolescentes, na faixa dos 5 a 15 anos, trabalhando – seja dentro ou fora de casa. Esse contingente representa 7,46% da população nesta faixa etária. Em 1995, eram 5,1 milhões (13,74% da população nessa idade). Houve, portanto, uma redução de 47,5% do uso de mão-de-obra infantil neste período.

Proibido pela Constituição brasileira e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o trabalho de crianças até 16 anos é uma prática que tem sido combatida fortemente pelos órgãos governamentais e por grandes fundações empresariais, como Abrinq, BankBoston e Orsa. No entanto, ainda são necessárias muitas frentes de atuação.

“”O trabalho infantil tem múltiplos aspectos, entre eles a baixa renda da família e o pouco acesso dos adultos à terra nas áreas rurais e aos meios de produção. Há também um forte aspecto cultural de que o trabalho faz bem à criança ou de que há muitas gerações as crianças da família trabalham. Essa questão, portanto, aumenta nosso desafio de ampliar o poder de comunicação com a sociedade, buscando desconstruir os mitos sobre o trabalho infantil””, afirma Ruy Pavan, oficial de projetos do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e coordenador do escritório da organização em Salvador (BA).

Mas ele alerta que é preciso tomar cuidado para não atribuir à questão cultural um peso maior do que ela realmente tem. “”É necessário avançar também no plano econômico. Aí o ideal é o crescimento da economia, com uma divisão mais justa de oportunidades. Ou seja, emprego/trabalho/renda para que toda família tenha como criar e educar seus filhos.””

Enquanto isso não é possível, é preciso ampliar os programas de apoio às famílias, com ações para complementação de renda, associados à oferta de serviços públicos de qualidade. “”Muitas vezes pode parecer fácil responsabilizar as crianças ou as famílias porque os meninos não vão à escola. Aí vamos conhecer a escola: é um lugar abafado, apertado, não há livros, os banheiros estão quebrados. A escola ruim expulsa as crianças das salas de aula, com sua pedagogia não contextualizada e superada, sem as mínimas condições de infra-estrutura, os professores pouco ou mal formados.””

A Save the Children, organização não-governamental britânica especializada em direitos da criança, é parceira da OIT no Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil (Ipec). A instituição trabalha na qualificação dos espaços educacionais que recebem crianças que trabalham ou que estão em risco de trabalhar. Atualmente, a ONG atua em cinco estados: Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraíba e Maranhão – cada um deles com desafios diferentes. “”São culturas diferentes, mas em cada um percebemos que existem fatores específicos que interferem na permanência e na naturalização do trabalho infantil””, afirma Ana Dourado, consultora da entidade no Brasil.

Pesquisa da instituição apontou que, em certas comunidades rurais, por exemplo, o trabalho é um elemento aglutinador da família. Em outros locais, de característica mais urbana, além desse perfil de continuidade de um ciclo familiar, como é o caso dos calçadistas, o trabalho pode representar um espaço de formação importante para que a criança aprenda algo de valioso para a vida. Já no Nordeste do país, o trabalho agrícola não tem o mesmo sentido cultural do Rio Grande do Sul. “”A participação da criança e do adolescente no trabalho em propriedades rurais de terceiros é uma realidade mais presente no nordeste e, neste contexto, os mecanismos de exploração da mão-de-obra infantil são ainda mais nocivos””, explica Ana.

Trabalho rural – Foi exatamente na região Nordeste que a Fundação BankBoston desenvolveu o Projeto Russas, que retira crianças e adolescentes do trabalho em olarias no município cearense de Russas. Claudia Sintoni, coordenadora de mobilização social da fundação, concorda que ainda há dificuldades de entendimento em relação ao trabalho infantil, inclusive nas grandes cidades. “”Ainda nos deparamos com argumentos como o de que o trabalho afasta da marginalidade””, conta. Por isso, trabalhar a questão cultural foi um desafio desde o início.

Neste sentido, é necessário desenvolver ações que visem influenciar a opinião pública e fortalecer o investimento nas políticas que têm sido eficientes. “”O que temos feito para colaborar nessa transformação tem sido sistematizar experiências como a do Projeto Russas, influenciando o desenvolvimento de novas iniciativas pelo Brasil. Já levamos o projeto para o município de Ribeirão das Neves (MG) e lançamos uma publicação com o registro da iniciativa em um encontro da série Elos Sociais, onde foi realizado um debate sobre o tema erradicação do trabalho infantil””, explica Claudia.

Um outro ponto chave é a articulação em rede dos vários atores envolvidos no sistema de proteção à criança e ao adolescente. No caso do Russas, além do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) e da prefeitura municipal, que são os principais parceiros, o trabalho contou com a participação e o envolvimento das ONGs locais, de outros Conselhos, empresários (inclusive os ceramistas que costumavam explorar o trabalho das crianças), policiais, pais e familiares.

“”Nossa estratégia foi capacitar os educadores para receber e orientar os pais. Uma reunião mensal era realizada com os responsáveis pelas crianças, onde se discutiam as questões relativas ao trabalho realizado com elas, até que o espaço se tornou acolhedor e foi possível pensar com eles novas possibilidades de capacitação e geração de renda. Envolvê-los na rede liderada pelo CMDCA também foi importante para essa sensibilização””, conta Claudia.

Redes – O trabalho em rede também está presente no Projeto Catavento, da OIT, que em São Paulo é executado pela Fundação Orsa e conta com o apoio do Fórum Paulista de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. Lançada em outubro de 2004, a iniciativa é realizada, inicialmente, em quatro cidades: Campinas (com foco no trabalho infantil doméstico); na capital, no bairro de Pinheiros (enfocando crianças no trabalho informal urbano); Caraguatatuba e região (focalizando a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes); e Itapeva e região (voltado para o problema de crianças na agricultura familiar).

A meta é retirar cerca de mil crianças e adolescentes do trabalho, em um prazo de dois anos. Para isso, envolve ações como produção de um diagnóstico do problema nas cidades, inclusão das crianças em espaços educativos que atendam em horário alternado com o da escola, mobilização da sociedade para aplicação da Lei do Aprendiz (nº 10.097/2000) e trabalho com as famílias, de forma a incentivar a autonomia e a geração de renda.

Os projetos de atendimento direto que a Fundação Orsa executa desde seu surgimento nos municípios de Suzano e Carapicuíba, em São Paulo, também foram criados para retirar meninos e meninas do trabalho informal urbano, vendendo mercadorias, cuidando de carros ou nos lixões.

“”Na nossa sociedade o trabalho é visto como algo que dignifica o homem e, nesse sentido, ver uma criança vendendo algo no farol não é percebido como uma violação aos direitos humanos. O trabalho infantil não pode ser entendido como um resultado da pobreza, mas sim como uma questão de injustiça social. Se uma criança está trabalhando é porque os seus direitos à educação, lazer, cultura e saúde, entre outros, já foram violados há muito tempo””, alerta José Montagnana, diretor-presidente da Fundação Orsa.

Mariza Tardelli, coordenadora do Programa Empresa Amiga da Criança, da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente, acredita que, de forma geral, a população ainda tem dificuldade em entender o que é o trabalho infantil, assim como identificar os malefícios dessas atividades, que acabam por comprometer a integridade física, moral, psicossocial e educacional das crianças e dos adolescentes. “”Para que possamos modificar este quadro, é necessário garantir que o tema não seja invisível, que as ações desenvolvidas sejam divulgadas e que a população seja esclarecida sobre os direitos da criança e do adolescente.””

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