Conseqüências não intencionais da filantropia internacional

Por: GIFE| Notícias| 11/06/2007

*Perry Gottesfeld

Projetos internacionais de desenvolvimento financiados com recursos de fundações e do setor público têm, nos últimos anos, estado cada vez mais sujeitos a métricas e ferramentas de avaliação empíricas. Um novo rigor foi inserido nesse campo e tanto os grandes quanto os pequenos financiadores têm notado isso. No entanto, é notável a falta de um esforço sistemático de avaliar os impactos indiretos e não intencionais sobre a saúde humana e o meio ambiente, seja antes do início dos projetos, seja após a sua conclusão. Uma avaliação formal durante os estágios de planejamento de projetos de desenvolvimento pode identificar e ajudar a evitar esses resultados indesejáveis.

Talvez o exemplo mais conhecido de ajuda internacional que produziu conseqüências danosas não intencionais seja o esforço da Unicef na década de 70 para fornecer água limpa em Bangladesh perfurando poços profundos. Na época, nenhum esforço foi feito para testar se os aqüíferos continham contaminantes, como metais pesados. Foi apenas no início da década de 90 que um homem visitando sua família em Bangladesh se preocupou com a crescente freqüência de lesões na pele e outros problemas de saúde em sua cidade natal. Ele mandou testar a existência de metais pesados na água e descobriu altos níveis de arsênico.

As autoridades de Bangladesh e das áreas vizinhas da Índia estão se esforçando para desenvolver sistemas adequados de filtragem da água para remover arsênico de milhares de poços, mas milhões de pessoas continuam bebendo água com níveis inseguros.

Mesmo hoje, algumas das mais respeitadas instituições ignoram os pontos negativos potenciais dos seus programas. A Gates Foundation, a Organização Mundial de Saúde e Unicef, por exemplo, estão fornecendo bilhões de vacinas anualmente em países em desenvolvimento. No entanto, o projeto depende de seringas descartáveis de plástico que são queimadas em pequenas fornalhas, liberando uma mistura de gases carcinogênicos e outros gases tóxicos. Apenas recentemente esses programas começaram a explorar alternativas para a coleta e o descarte desses produtos.

Sem cuidados apropriados, mesmo tecnologias aparentemente benéficas, como a energia solar, podem vir com um alto custo para a saúde e o meio ambiente. O Programa Ambiental das Nações Unidas (UNEP), em parceria com a Fundação ONU e o Banco Mundial, vem implantando projetos de energia solar fotovoltaica de pequeno porte em vilas na Ásia e na África. Com o objetivo de reduzir a emissão global de carbono e fornecer energia sustentável a um custo razoável, o programa facilita empréstimo a juros baixos para compras de equipamentos de subsidiárias da Shell, BP e outras empresas. O problema? Todos esses sistemas dependem de baterias de chumbo para armazenamento.

Dependendo de tecnologia de baterias do século XIX, esses programas estão contribuindo para uma epidemia de envenenamento global por chumbo, porque estão deixando de planejar a coleta das baterias usadas de vilas remotas e seu transporte para usinas de reciclagem seguras para o ambiente. Como resultado, essa autoproclamada tecnologia sustentável contribuirá ainda mais para uma crise de saúde pública que já afeta três vezes mais pessoas do que o HIV/AIDS.

Prevenção através de projeto

As avaliações de impacto ambiental são feitas rotineiramente pelos governos para programas domésticos e por financiadores internacionais para grandes projetos de infra-estrutura, para identificar e eliminar danos ambientais antes que os projetos sejam iniciados, mas poucos programas públicos ou privados de ajuda avaliam as propostas dessa maneira. Por exemplo, instituições de microcrédito que fornecem pequenos empréstimos para microempreendedores não têm ferramentas para avaliar impactos ambientais e sociais (que podem ser significativos em atividades como agricultura com uso intensivo de defensivos, consertos de automóveis e mineração em pequena escala).

Além disso, esforços atuais para levar computadores e a Internet para países em desenvolvimento dependem de energia de baterias de automóveis feitas de chumbo, sem levar em conta como elas são produzidas ou recicladas.

Muitos desses resultados danosos poderiam ser previstos e a maioria pode ser removida ou evitada. Entre as ferramentas potenciais para isso estão:
 avaliações de impacto ambiental;
 avaliações de impacto para a saúde;
 avaliações de impacto integrado;
 avaliações de ciclo de vida.

Enquanto as avaliações de impacto ambiental e para a saúde se concentram em resultados específicos, os modelos integrados consideram todos os fatores sociais, econômicos, ambientais, de saúde e outros fatores de qualidade de vida. A avaliação de ciclo de vida tem um objetivo mais estreito, examinando as matérias primas, o consumo de energia, a reutilização e o descarte de um dado produto. Esse exercício pode facilitar a seleção de computadores, carros, equipamentos de saúde e outros produtos mais vantajosos para o meio ambiente. Todos esses enfoques dependem do escrutínio multidisciplinar que requer que opiniões de especialistas sejam integradas ao envolvimento das partes interessadas e da comunidade.

Certamente, o Banco Mundial e outras instituições têm usado avaliações de impacto ambiental no estágio de definição de projetos de infra-estrutura, levando em conta os aspectos de ar, água, terra, saúde humana, segurança e até mesmo sociais. No entanto, o Banco delega a responsabilidade de preparar as avaliações de impacto ambiental aos emprestadores governamentais, em vez de a uma entidade neutra, e fornece supervisão e revisão apenas depois da conclusão do relatório de impacto ambiental. Geralmente, os candidatos do banco têm maior interesse em ver os empréstimos aprovados e os projetos construídos do que em lidar com preocupações que podem atrasar ou cancelar os esforços.

Embora poucas fundações tenham um processo de investigação de rotina para avaliar especificamente os resultados ambientais, sociais e para a saúde, a avaliação de impacto ambiental pode ser facilmente adaptada e feita por consultores independentes ou por uma equipe trabalhando diretamente em nome do doador. Eles podem ser usados para projetar estratégias para reduzir alguns ou todos os resultados negativos potenciais e podem ser personalizados para o tamanho, o escopo e a natureza de uma proposta de desenvolvimento.

Instituições financeiras também desenvolveram padrões gerais para avaliar decisões de investimentos com base em critérios sociais e ambientais. Os Princípios do Equador fornecem algumas orientações mínimas para o investimento privado, e a International Finance Corporation desenvolveu recomendações mais abrangentes e específicas para meio ambiente, saúde e segurança que incluem objetivos de desempenho. Embora esses programas não sejam diretamente aplicáveis à maioria dos doadores, eles fornecem modelos úteis para o desenvolvimento de ferramentas de avaliação de impacto.

Os doadores podem também influenciar positivamente a qualidade do meio ambiente com programas de compras verdes e outras compensações. Alguns governos começaram a basear as decisões de compra em critérios ambientais, como conteúdo de materiais reciclados, eficiência energética e menor uso de ingredientes químicos perigosos. Critérios simples podem incluir a verificação do consumo de combustível e das emissões de gases das frotas de veículos. Um exemplo de uma compensação seria preservar florestas localizadas apropriadamente para compensar as emissões de carbono de um dado projeto.

Outro enfoque para a redução do impacto é exigir que todas as compras na cadeia de suprimentos de um projeto obtenham certificação ambiental e/ou social através de um padrão existente, como o SA 8000 ou o critério do Forest Stewardship Council (FSC) para produtos de madeira, onde estiverem disponíveis. Essas medidas incluem supervisão independente e garante a conformidade mínima com um código básico de práticas.

Um juramento de Hipócrates para a filantropia

Nenhum filantropo distribui intencionalmente materiais perigosos nem espera que seu trabalho tenha um efeito negativo para a saúde e o meio ambiente, embora, sem um planejamento e um escrutínio cuidadosos, isso possa ocorrer até mesmo em projetos de desenvolvimento aparentemente inócuos.

A filantropia pode desempenhar um papel de liderança na reversão das tendências que estão criando um ambiente insalubre em todo o mundo desenvolvido. Todas as agências de financiamento podem começar se comprometendo, como o juramento de Hipócrates obriga os médicos, a “”não causar danos”” e tomar algumas medidas concretas para integrar a proteção à saúde, as preocupações comunitárias e o meio ambiente em projetos de desenvolvimento.

Existe um reconhecimento crescente da necessidade desse tipo de enfoque de prevenção no design. Meio ambiente, saúde e preocupação social não podem ser comprometidos por esforços filantrópicos mal planejados.

Comentário de Rayna Gavrilova**

Muitas vezes discuti a necessidade das agências de assistência prestarem atenção especial ao desenvolvimento posterior das iniciativas que apóiam, fazendo a analogia de que nenhum investidor em sã consciência investiria seu dinheiro e se esqueceria dele no momento em que foi gasto. O artigo de Perry Gottesfeld me atinge como outro exemplo de como algo que é óbvio, do senso comum, e que as pessoas praticam constantemente em suas vidas diárias, pode ser desconsiderado por doadores com as mais nobres das intenções.

Nenhuma família compraria uma lavadora de louças sem avaliar como a sua presença afetaria o uso de espaço e a conta de eletricidade. Infelizmente, temos visto, ao longo do tempo, muitos casos de boas idéias resultando em conseqüências não intencionais, talvez não tão devastadoras, como o fornecimento de poços envenenados por arsênico, mas, mesmo assim, os danos para a percepção pública e para o capital social podem ser extremamente difíceis de neutralizar.

Infelizmente, essa prática não se limita aos doadores, ela também afeta as legislações e obras públicas gigantescas. A exigência de avaliações de impacto ambiental tem disciplinado muitas instituições públicas, mas o conceito de avaliação de impacto integrado parece ser a ordem do dia para as doações responsáveis. A comunidade de doadores/entidades sem fins lucrativos deve assumir uma posição de liderança nesta responsabilidade auto-imposta. “”Fazer o bem”” é o primeiro mandamento do livro das instituições de caridade e das organizações internacionais de ajuda. O segundo deve ser “”Não causar danos””. A avaliação racional de conseqüências previstas não deve ser tão difícil.

*Perry Gottesfeld é Diretor Executivo da Occupational Knowledge International, São Francisco. Email: [email protected]
**Rayna Gavrilova é diretora executiva da organização The Trust for Civil Society in Central and Eastern Europe.

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