Participação e advocacy da sociedade civil em tempos de deliberação remota
Por: GIFE| Notícias| 28/05/2020
Segundo a Constituição Federal de 1988, em seu Art. 58, parágrafo 2, comissões permanentes e temporárias do Congresso Nacional e suas Casas devem realizar audiências públicas com organizações da sociedade civil (OSCs). Essa é uma das formas de garantir a participação social em decisões de interesse público.
Em um contexto normal, representantes de OSCs, líderes de movimentos e profissionais de relações governamentais usam os corredores do Congresso Nacional, em Brasília (DF), para encontrar parlamentares e assessores, além de visitas a gabinetes para apresentação de ofícios, facilitando conversas e ações de advocacy em torno de causas diversas.
Com a adoção do distanciamento social para frear a disseminação do novo coronavírus, todos esses movimentos foram paralisados e grande parte migrou para ambientes virtuais. Em março, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal inauguraram o Sistema de Deliberação Remota (SDR), criado pela Secretaria-Geral da Mesa (SGM) em parceria com a Secretaria de Tecnologia da Informação (Prodasen). Trata-se de uma combinação de tecnologias para que os parlamentares possam dar continuidade à votações como faziam presencialmente.
Houve, inclusive, a criação de um manual com orientações para implementação e operação do SDR que, em sua introdução, afirma que o “funcionamento normal do Parlamento é o mais evidente e indispensável elemento, junto com as eleições universais e periódicas, da natureza democrática de uma Nação”.
Assuntos de emergência
O texto introdutório do manual, elaborado pelo Senado, reforça que o SDR foi criado para funcionar em situação de emergência – guerra, desastre natural ou pandemia -, quando a reunião presencial na sua sede se mostra inviável e, por isso, “só se recomenda utilizar essa ferramenta para deliberar matérias que tenham pertinência temática com a situação de emergência ou que não possam aguardar a normalização da situação na localidade.”
Apesar de o documento determinar o uso do SDR apenas se a “matéria for de fato urgente e relativa ao estado de emergência” e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ter afirmado que serão votadas somente propostas relacionadas a medidas de combate ao coronavírus, movimentos em outras direções têm sido notados, como a autorização, por parte do ministro Alexandre de Moraes, de alteração da tramitação de medidas provisórias pelo Congresso sem o parecer das comissões mistas.
Para Glaucia Barros, diretora programática da Fundação Avina e integrante da Rede Advocacy Colaborativo (RAC), a suspensão dos trabalhos em comissões, que constituíam o principal foco de incidência do trabalho de advocacy das organizações da sociedade civil, merece atenção. “Havia o estabelecimento de canais de participação e diálogo da sociedade com o parlamento, que se fundamentava nos ritos que, normalmente, constituem o dia a dia no trabalho do Congresso. Se no início houve a questão da exclusividade da pauta para o enfrentamento da emergência, mesmo que nos últimos dias isso tenha sido flexibilizado, houve alterações no funcionamento e na dinâmica dos trâmites.”
A importância de garantir a participação social
No paper Participação e controle sociais nos espaços de deliberação legislativa remota, apresentado à Fundação Getulio Vargas São Paulo, Melissa Terni Mestriner, mestre e bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), pontua que, apesar de a adoção do sistema de deliberação remota pelo Legislativo brasileiro (nas Assembleias Legislativas de São Paulo (ALESP), do Rio de Janeiro (ALERJ), de Minas Gerais (ALMG), do Ceará e de Alagoas), não há referência expressa às formas de participação e controle social por meio desse sistema. No caso dos atos constitutivos do SDR da Câmara e do Senado, não há nenhuma referência à ferramentas de participação social, mesmo que as duas Casas já contem com tecnologia para isso.
Glaucia observa que a realização de audiências públicas, pauta antiga das OSCs, é passível de acontecer de forma online e ressalta a necessidade de escuta da sociedade em um momento de importantes decisões sendo deliberadas.
“Para que isso seja feito de uma forma mais sistemática, regular e ordenada a partir da casa legislativa, várias organizações e espaços de articulação da sociedade civil além da Rede de Advocacy Colaborativo (RAC) têm provocado essas conversas. Vários campos da sociedade civil aos quais a Fundação Avina está ligada defendem que, seja presencial ou virtual, o debate sempre deve ocorrer de forma pública e publicizável, ou seja, que possa ser gravado ou transmitido, e que não fique restrito a conversas bilaterais.”
Segundo a diretora, é fundamental que o jogo democrático seja composto por vozes diversas, inclusive de posicionamentos divergentes. “Queremos que todos que desejam participar possam ter uma expressão, especialmente em um momento em que o Legislativo tem um papel fundamental na tomada de decisões mais próxima dos interesses da sociedade”, afirma.
O que acontece na prática
José Antonio Moroni, integrante do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), explica que, mesmo antes da pandemia, já havia um processo de ‘fechamento’ das instituições democráticas, dificultando a participação social. “Se há alguns anos tínhamos acesso para participar de audiências públicas, que são os espaços de participação social, nos últimos anos, isso foi mudando, com um processo de isolamento físico do parlamento. O acesso ao espaço já estava bastante restrito antes da pandemia”, pontua, ao reforçar que a crise da Covid-19 serviu para acentuar ainda mais o movimento de isolamento da incidência política de organizações da sociedade civil.
A migração do meio físico para o digital traz consequências em diferentes frentes. Uma delas é a falta de clareza sobre a definição das pautas a serem votadas. Outra é o rompimento total de ações de advocacy que eram feitas presencialmente em Brasília. “Se antes abordávamos algum parlamentar ou líder no corredor ou na entrada de uma sala de reunião para entregar um documento, falar alguma coisa ou dizer que estávamos ali para apoiá-los em suas decisões, ou até mesmo criticar, isso não existe mais e não foram criados mecanismos para substituir esse processo.”
Para José Antonio, esse cenário é preocupante, pois não há mais possibilidade de incidência da sociedade civil na definição das pautas, a não ser em casos onde se conheça o líder da pauta, o que contribui para reforçar uma prática política que as organizações desejam evitar, afirma.
Além disso, a criação de um sistema e metodologia de votações remotas para o período de pandemia sem um debate que considere as contribuições da sociedade mostra que as instituições tidas como democráticas não valorizam e consideram essa participação. “Outro agravante na questão é que a votação remota não impossibilita, mas dificulta bastante os instrumentos que a oposição tem de prolongar o debate, de obstruir – que é um princípio democrático -, ou de provocar questões”, problematiza.
Dificuldades técnicas e adaptação
A migração do ambiente físico para o online, entretanto, não foi intuitiva. Glaucia explica que, com todas as decisões sendo tomadas via deliberação remota, processos prévios como acordos e construção de pautas com as lideranças partidárias também precisaram ser adaptados. “Em um primeiro momento, essa construção conjunta não estava muito clara. Durante o segundo WebRAC, o senador que participou do debate mencionou que também havia um certo grau de dificuldade com parlamentares que não tinham o hábito de usar ferramentas tecnológicas e, por isso, há um esforço de técnicos e profissionais das duas casas legislativas para ajudar os parlamentares a transitar por esses meios.”
Em um cenário de indefinições de processos, a diretora explica que muitas organizações e grupos como a RAC investiram na produção de notas, posicionamentos e requerimentos de informações e conversas com técnicos e pessoas que trabalham nas duas casas para aprimorar o diálogo e articulação com a sociedade civil e até mesmo apresentar ferramentas criadas por essa para fazer monitoramento do parlamento e manter o debate.
“Nas duas últimas semanas, houve várias alterações no próprio sistema de funcionamento político e isso se refletiu nas dinâmicas processuais das duas casas legislativas, especialmente na Câmara dos Deputados. No final da semana passada, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, atendeu a um requerimento da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Democracia e dos Direitos Humanos, da qual algumas organizações da RAC fazem parte, no sentido de mudar o dia da reunião de líderes. Há um movimento de criar uma sistemática, em que pelo menos fique mais claro para as lideranças partidárias qual é o processo de construção da pauta, para que as lideranças possam escutar previamente os interesses, as pautas que estão no eixo de atenção da sociedade civil e possam tentar fazer essa representação que, ao final do dia, é o papel do parlamentar”, exemplifica a diretora. Para ela, o processo começa a ser melhorado a partir das requisições organizadas que a sociedade civil está realizando.
Além disso, deve-se considerar que, apesar de comissões, por exemplo, possibilitarem melhor interação entre congresso e sociedade civil, a tecnologia, se usada de forma correta, pode ajudar no processo durante o período em que vigorar o distanciamento social. “Eu acredito que bastaria fazer um ajuste das várias ferramentas que já existem, ampliando, ordenando e tornando seu uso oficial.”
Nesse sentido, a diretora também reforça a importância de as próprias organizações da sociedade civil se adaptarem aos novos mecanismos de diálogo e processos. Como exemplo, cita os WebRAC, uma série de dez webinares com objetivo de informar, posicionar e construir conhecimentos sobre formas de assegurar a colaboração entre a sociedade civil e o parlamento. As cinco transmissões realizadas estão disponíveis no canal do YouTube do Politize!.
Além dos webinars, outras estratégias têm sido colocadas em prática, como o chamado cyber advocacy, uma combinação de inteligência artificial com comunicação articulada entre as organizações para produção de campanhas dirigidas a parlamentares estratégicos para as pautas de interesse da RAC. Se antes muitas conversas aconteciam no corredor, Glaucia aponta que, hoje, adianta nada ou pouco ter pessoas presencialmente em Brasília.
“O meio virtual é a forma que temos de fazer aproximações e defesas, inclusive técnicas, junto a parlamentares. O Twitter é a rede social que mais tem sido usada, mas também há o Facebook e Instagram. Além disso, não estamos apenas fazendo monitoramento de narrativas dos parlamentares, mas também somos ativos na busca pelo diálogo com eles”, explica Glaucia.
Projeto Sustenta OSC
O projeto Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil é realizado pelo GIFE e pela Coordenadoria de Pesquisa Jurídica Aplicada (CPJA) da FGV Direito São Paulo, em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e com apoio de União Europeia, Laudes Foundation, ICE, Instituto Arapyaú e Fundação Lemann.