O porão não iluminado da saúde pública
Por: GIFE| Notícias| 17/06/2010Geraldinho Vieira*
Se é justo esperar que uma máquina nova não apresente problema, por que então uma criança fica doente?
A inquietude com esta questão fez a médica Vera Cordeiro, 59, descobrir que “a doença é na verdade o sintoma, pois a maior causa de doença em países em desenvolvimento é a miséria”. Mesmo nos melhores hospitais públicos, “o paciente é visto desde a perspectiva da doença, quer dizer, suas condições psicológicas e sociais são ignoradas”, diz Vera.
Ela é minha sexta convidada nesta série de breves diálogos com lideranças sociais para a série Eleições & Sociedade Civil.
Para ser ainda mais clara, Vera Cordeiro enfatiza: “Ao paciente abaixo da linha de pobreza não basta ser tratado como o rico é tratado, imaginando a melhor das hipóteses – a do pobre ser atendido por ótimos médicos e ter acesso a exames. O que, por exemplo, os ricos procuram nos tratamentos milenares? Os ricos também querem ser vistos como seres humanos por trás das doenças, porque suas condições de vida igualmente se tornaram insalubres, é verdade que por outras razões.”
Graduada pela UFRJ e com um ano em especialização em Nefrologia pelo Hospital São Francisco de Assis (RJ), Vera Cordeiro é nacional e internacionalmente uma das mais reconhecidas empreendedoras sociais. Fundadora e superintendente da Associação Saúde Criança, ela muitas vezes define a missão de seu trabalho com uma expressão de dar dor: “retirar pessoas da condição de miseráveis para lhes permitir a condição de pobres”.
É que Vera percebeu que a uma família pobre basta a doença atingir um de seus e o que já era frágil se rompe: a necessidade de quem cuide, a falta ao trabalho, os remédios, as passagens de ônibus para intermináveis idas aos hospitais…
Quero perguntar sobre o que ela espera do processo eleitoral, se temas como estes – uma virada cultural na gestão da saúde pública – tem espaço de debate em meio à guerra de estratégias de marketing político. Mas preciso contar um pouco mais sobre Vera e sobre este projeto. Mesmo que muito pouco.
Em 1979 Vera fundou o Setor de Medicina Psicossomática do Hospital da Lagoa (Rio), departamento que chefiou até fim de 1996. Alí iniciou o trabalho de assistência a crianças e adolescentes e a observar seus pacientes por uma visão mais completa: doença, condições sociais, econômicas e problemas psicológicos.
O projeto – cuja metodologia hoje está implantada (como uma franquia social) em 23 instituições em seis estados brasileiros e registra cerca de 36.000 pessoas atendidas – nasceu em 1991 em parceria com o próprio Hospital da Lagoa.
Em síntese, a criança que recebia alta era encaminhada ao Saúde Criança (antes chamava-se Renascer) e aí uma pequena legião de médicos e assistentes sociais, voluntários e profissionais, começavam a investigar as causas da doença. Claro, descobriam pais desempregados, casas sem um mínimo de ventilação e higiene, ambiente de violência e abuso, álcool, droga…
Começava o atendimento pós hospitalar: tratamento psicológico, engajamento dos adultos em atividade de profissionalização e geração de renda… Os casos de re-internação começaram a cair. Recentemente, Vera foi premiada pela Skoll Foundation (uma das mais rigorosas organizações mundiais quando se trata de reconhecer um empreendimento), por haver provado, com pesquisa de campo, uma queda real de nada menos que 60 % nas recaídas (re-internações).
Chefe da Pediatria nos últimos 16 anos do Hospital da Lagoa, o Dr. Odilon Arantes não precisava de pesquisa para comprovar: “Antes do Saúde Criança, o ato médico não fazia sentido, porque devolvíamos o paciente à situação que causara a doença. Muitas vezes a gente não dava alta ao paciente, esperava uma semana mais e isso tem um custo muito alto” – disse certa vez a Vera.
Para ela, “não é só para os políticos que este tema é obscuro. Este é o porão não iluminado da política em saúde pública. A alta médica/hospitalar é muitas vezes uma condenação de morte. O ato médico é trabalhoso, difícil, acompanho a dedicação e o talento de meus colegas médicos, mas enquanto não houver um diagnóstico multidimensional…”.
Pergunto sobre o SUS, e pergunto também sobre o candidato Serra, ex-Ministro da Saúde. “O SUS é uma boa idéia”, diz Vera, “mas carece de uma mudança de conceito. Todos sabemos que a medicina curativa é muito cara; mas a promoção da saúde, o trabalho preventivo do qual todos se dizem a favor, este nunca chega às políticas públicas na dimensão necessária”.
Quanto a José Serra, Vera Cordeiro reconhece a boa experiência no Ministério em temas tais como a Aids e quebra de patentes de medicamentos, mas alerta: “São atos elogiáveis sim, importantes, mas tem que ser complementados com uma visão abrangente sobre saúde pública, que realmente transforme a vida dos menos privilegiados”.
Premiada mundo afora, Vera emocionou-se (e viu maior esperança) meses atrás, quando foi considerada Médica do Ano pela Sociedade Brasileira de Medicina e Cirurgia – afinal, eram seus colegas médicos reconhecendo um novo paradigma em saúde… Ou talvez seja mais justo dizer: um paradigma já conhecido, agora com eficiência testada e comprovada em atendimento de escala, à revelia da inércia dos gestores públicos da saúde.
“Falta humildade aos políticos, em toda parte do mundo”, critica Vera. “Há trabalhos sociais de grande impacto, criados com a inteligência e a persistência de grupos da sociedade civil ao longo de períodos muito mais largos que os tempos de mandatos políticos, mas os políticos não ouvem estas experiências, não as transformam em políticas públicas”.
Não ouço resposta quando tento saber de Vera sobre as razões deste descompasso:
– “Eu mesma me pergunto sobre o por que desta surdez dos políticos e dos partidos. Pergunto-me também se não é nas consequências desta postura que está a razão para a descrença na política, num nível mais profundo do que pela existência de corrupção e outros problemas mais aparentes”.
Vera gostaria de ver temas como geração de renda e emprego (e os diferencia), além de educação (claro) mais presentes no debate eleitoral. E vê com espanto o fato de os políticos não trazerem para as propostas em saúde pública a necessidade de parcerias multisetoriais – governo, empresas, sociedade civil organizada e voluntariado. “Não podemos abrir mãos destes talentos”, decreta.
Ela mesmo, e sua rede Saúde Criança (www.saudecrianca.org.br), experimentam a fórmula da parceria.
De um lado, no diálogo com governos: avançam as ações-piloto de uso da metodologia em 26 centros de assistência social, os CRAS- Centro de Referência de Assistência Social de Belo Horizonte assim como um plano inicial com a Secretaria de Saúde do Município do Rio de Janeiro (que trabalha a idéia nas “Clinicas de Família”).
Por outra parte, Vera encontra na iniciativa privada apoio financeiro e também em gestão. Caminham ao lado de Vera, entre outros: o presidente da Firjan e esposa (Eduardo Eugênio e Cristina Gouvêa); o empresário Eike Baptista; o economista Armínio Fraga (ex-diretor do BC); e, entidades internacionais como Ashoka, Kinder, Avina, Skoll e Schwab Foundation (as quatro últimas de origem privada).
* Geraldinho Vieira é Consultor na área da comunicação para a transformação social, Geraldinho Vieira é vice-presidente da ANDI – Agência de Notícias dos Direitos da Infância, professor da Fundación Nuevo Periodista Iberoamericano (Colômbia), colaborador da Fundação Ford na área do Direito à Comunicação e conselheiro do projeto Saúde Criança.
**este texto foi originalmente publicado no Blog do Noblat.
http://oglobo.globo.com/pais/noblat
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