México: Claudia Sheinbaum será uma extensão de Andrés Manuel López Obrador?
Por: Fundação FHC| Notícias| 21/10/2024A nova presidente do México, Claudia Sheinbaum, primeira mulher a governar o país, terá o desafio de se manter leal ao ex-presidente Andrés Manuel López Obrador — principal responsável por sua impressionante vitória com 59,7% dos votos válidos em 2 de junho de 2024 — e, ao mesmo tempo, afirmar sua liderança política e imprimir características próprias às ações e políticas públicas de seu governo, inaugurado em 1º de outubro.
“Os críticos de AMLO (como é chamado o ex-presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador) exigem o tempo todo que Sheinbaum se diferencie dele, em vários sentidos, mas os dois compartem muitos valores e prioridades e são parte do mesmo movimento político. O eixo vertebral do governo AMLO foi a ideia de que o governo federal deve favorecer os setores da população que mais necessitam, que estiveram em uma situação de invisibilidade por muito tempo e que, no passado, não foram atendidos em suas demandas. Isto não vai mudar com Claudia na Presidência da República”, disse a cientista política Blanca Heredia, diretora do Centro de Investigación y Docencia Económicas (CIDE).
“No entanto, no sentido político, não tanto no ideológico, a pergunta se a presidente recém-empossada conseguirá se descolar de AMLO é crucial. Se Claudia não conseguir imprimir um rumo próprio a seu governo e a suas ações e políticas, se não estabelecer uma margem de manobra e recursos de poder próprios dela, será difícil administrar um país tão complexo como o México”, continuou Heredia.
“A grande pergunta é: o que vai acontecer quando Sheinbaum chegar à conclusão de que precisa mudar algumas direções estabelecidas pelo governo anterior, como todo presidente mais cedo ou mais tarde necessita fazer? Nesse momento, ela terá que provar sua capacidade de adaptação, habilidade e liderança política. São características, no entanto, que devem ser construídas com o tempo”, disse Luis Rubio, presidente do México Evalúa, um think tank focado no monitoramento e avaliação de políticas públicas.
Segundo Rubio, os dois desafios imediatos da nova líder mexicana serão justamente lidar com seu poderoso antecessor — o primeiro presidente de esquerda da história do México, frequentemente comparado a Lula — e com o movimento político de ambos, o Movimiento Regeneración Nacional (Morena), fundado por AMLO em 2011, um ano antes de sua primeira tentativa de chegar à Presidência do México.
“AMLO sempre foi a única fonte de coesão e contenção dentro do partido. Ao término de seu mandato presidencial (de seis anos, sem reeleição), ele colocou fim à sua militância, deixando seu filho como dirigente do partido e uma aliada confiável à frente do governo. Entretanto, diferentemente dos partidos tradicionais, o Morena não conta com estruturas de controle e disciplina e pode se fragmentar sem a presença dele. Quem exercerá a liderança política no México a partir de agora? A presidente ou o movimento? Ao iniciar seu mandato subordinando seu projeto ao de AMLO, ela transmite certa debilidade. Mas isso não precisa continuar assim. Qual será a capacidade política de Sheinbaum de marcar um caminho próprio?”, disse Rubio.
“Sheinbaum compartilha dos objetivos e meios de AMLO ou estava sendo estratégica diante da relevância e da transcendência do personagem? Os discursos que fez no dia de sua posse indicam que sim, a nova chefe de Estado não só compartilha das ideias do ex-presidente, como está comprometida em seguir na mesma direção. No entanto, creio que algumas abordagens de Sheinbaum para problemas importantes do México são distintas e, na minha visão, incompatíveis com as de López Obrador”, afirmou Rubio.
Como exemplo, ele citou a importância do país elevar significativamente sua taxa de crescimento econômico: “Sheinbaum reconhece que um crescimento econômico mais robusto e sustentável é um imperativo para que o país consiga de fato reduzir a pobreza e a desigualdade. O que ela não reconhece, ao menos publicamente, é que o projeto de AMLO era incompatível com essa necessidade. O êxito do governo AMLO dependeu, em grande medida, do aumento dos programas e benefícios sociais, mas nos últimos anos o investimento privado nacional e estrangeiro caiu e prejudicou o crescimento do PIB.”
“Quando foi chefe de governo da Cidade do México, na mesma época em que AMLO estava na Presidência, Claudia teve as mesmas orientações em políticas públicas, priorizando os mais necessitados, e nunca adotou uma atitude confrontacional em relação a AMLO, mas em algumas áreas soube adotar estratégias diferentes, mais adequadas à sua maneira de pensar e agir”, disse Heredia.
Como exemplo, ela citou a segurança pública, um dos maiores problemas do país: “No governo federal, AMLO priorizou o uso da força militar contra o crime organizado. No governo da Cidade do México, Claudia priorizou ações de investigação e inteligência policial e cooperação estreita com a Procuradoria Geral de Justiça. Os resultados da capital foram melhores do que a nível federal”, explicou a pesquisadora.
“Sheinbaum é uma política muito organizada, que planeja e presta atenção nos detalhes. Espero maiores diferenças em temas como segurança pública, meio ambiente e energia, saúde, educação, ciências e, claro, nas políticas voltadas para as mulheres. Ela já sinalizou isso em seu discurso de posse ao dizer que, junto com ela, todas as mulheres chegavam à Presidência. Enfatizar o fato de ser uma mulher presidente é uma estratégia eficiente de estabelecer de cara uma diferenciação de AMLO”, disse Heredia.
Segundo Rubio, as características do combate à criminalidade na Cidade do México não se aplicam a outras partes do país, onde o crime organizado controla amplos territórios. “O problema do México hoje não é tanto o narcotráfico, como foi há alguns anos, mas o crime organizado em geral, que controla diversos setores da economia, pratica extorsão, venda de proteção e sequestros. É necessária uma mudança de estratégia na segurança pública, que deve começar de baixo para cima, com o objetivo de estabilizar a sociedade”, disse.
Nova presidente mexicana é cientista respeitada e gestora experiente
Heredia e Rubio participaram deste webinar realizado pela Fundação FHC apenas dois dias após a posse de Claudia Sheinbaum no Palácio Nacional, sede do Poder Executivo mexicano situado em uma das extremidades da Plaza de la Constitución, conhecida como Zócalo, no coração da Cidade do México. Apesar das diferenças de visão sobre o atual momento político do México, os dois palestrantes concordam que a nova presidente tem formação acadêmica, experiência administrativa e diversas outras qualidades para exercer o cargo máximo do país. E que a distinguem de López Obrador.
“AMLO foi um presidente em muitos sentidos populista, que utilizava um discurso e uma narrativa potentes para se conectar ao povo de forma emotiva. Claudia é uma mulher sóbria, com grande capacidade analítica e muito mais técnica. Construiu sua carreira política em cargos executivos, como o de chefe de governo da Cidade do México, mas não tem nenhuma experiência parlamentar. Por não ter surgido das fileiras da política eleitoral, ela terá de se acostumar com esse novo ambiente em que agora terá de navegar”, disse Heredia.
“AMLO é um político inegavelmente bem sucedido, como mostra o impressionante triunfo eleitoral de sua indicada, mas Sheinbaum tem uma coerência de visão que a diferencia do ex-presidente. Ela tem objetivos claros, ordenados, bem fundamentados e baseados em dados estatísticos e análises consistentes. Sabe administrar e operar no governo. Veremos que habilidades políticas desenvolverá nos próximos anos”, disse Rubio.
Formada em física na Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), é mestre e doutora em engenharia de energia e autora de artigos e livros sobre energia, meio ambiente e desenvolvimento sustentável. Como cientista, contribuiu para o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU, que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2007. Na política, atuou como secretária do Meio Ambiente da Cidade do México, prefeita do distrito de Tlalpan e chefe de governo da Cidade do México (equivalente a governadora), cargo ao qual renunciou em 2023 para se candidatar à Presidência da República. Em 2018, ela foi listada como uma das 100 Mulheres mais influentes do mundo pela BBC.
Implementação de Reforma Judicial pode ser primeiro teste do novo governo
Além de ter sido eleita com folga, Sheinberg chega à Presidência do México com uma impressionante base parlamentar. Em 23 de agosto, o Instituto Nacional Electoral (INE) confirmou que a coalizão liderada pelo Morena terá 364 cadeiras na Câmara dos Deputados, bem acima da supermaioria de 334 cadeiras necessária para alterar a Constituição mexicana. No Senado, a coalizão governista terá 83 das 128 cadeiras, apenas duas a menos do que as 85 cadeiras necessárias para caracterizar uma supermaioria.
No apagar das luzes de seu governo, AMLO propôs um pacote de 18 reformas constitucionais que, segundo críticos, visam concentrar ainda mais poder nas mãos de seu grupo político. Ele já havia tentado realizar algumas dessas reformas anteriormente, mas não tinha maioria para tanto. Após as eleições de junho, passou a ter e não perdeu tempo: em 11 de setembro o Congresso recém-empossado aprovou uma Reforma Judicial que, entre outros aspectos, determinou que quase 7.000 juízes do país passarão a ser escolhidos pelo voto popular.
“Esta é uma reforma refundacional, que altera a raiz do Poder Judiciário mexicano. É fato que o sistema judicial nunca garantiu o acesso da maioria da população à justiça, mas nas últimas décadas (desde a redemocratização, iniciada em 2000) foi se criando, sobretudo a nível federal, um Poder Judiciário cada vez mais profissional, com algumas ilhas de independência, como a Suprema Corte de Justiça. Não é à toa que AMLO teve vários confrontos com a Suprema Corte durante seu governo”, explicou Blanca Heredia.
“Com a reforma, todos os juízes federais, inclusive dos órgãos superiores, assim como os juízes locais serão eleitos. Se isso resultar que pessoas próximas ao Morena passem a ocupar diversas posições importantes no Judiciário, este perderia a independência que duramente conquistou, o que seria gravíssimo. Esta foi uma reforma sem precedentes no mundo e é difícil até imaginar como colocá-la em prática”, disse a palestrante.
Segundo Heredia, Sheinbaum — já eleita, mas ainda não empossada quando a reforma foi aprovada — avalizou a mudança levada a cabo por AMLO e a coligação liderada pelo Morena. “Ela propôs alguns matizes, mas não se opôs ao conjunto da obra. Nas próximas semanas, o Congresso discutirá a legislação ordinária relacionada à reforma, quando alguns de seus aspectos mais perniciosos poderão ser revistos. Ela enviou alguns sinais de que quer fazer ajustes, vamos ver como vai atuar.”
Ao comentar a reforma judicial, Luis Rubio foi mais enfático: “Creio que esta reforma provocará um grande choque no que tange ao Estado Democrático de Direito. É verdade que historicamente o México tem um severo problema de justiça, mas subordinar o Judiciário não contribuiria para o aprofundamento da democracia e a segurança jurídica. Também não ajudaria o país a atrair os investimentos estrangeiros de que necessita para acelerar o crescimento econômico e reduzir a desigualdade.”
“Creio que a nova presidente, mais cedo ou mais tarde, vai reconhecer a importância de rever essa reforma, mas se for tarde demais pode ser irreversível. Com a Reforma Judicial, e outras que podem vir por aí, a incerteza voltou ao México e este é um mal endêmico difícil de erradicar”, afirmou Rubio.
O palestrante foi além em sua crítica: “Não creio que o México esteja experimentando o início de um novo regime político, como AMLO e Morena afirmam. Na verdade, estamos voltando ao velho sistema do PRI, em que um só partido, controlado por líderes políticos fortes, verdadeiros caudilhos, muitos deles corruptos, mandava no país. Que hegemonia é esta que o Morena deseja implementar?”, perguntou.
Segundo Rubio, nas últimas eleições o Morena estabeleceu uma hegemonia parlamentar, que poderá utilizar para fazer reformas constitucionais e concentrar ainda mais poder a nível federal. “Chegou a hora de discutirmos seriamente o que é hegemonia, para que serve e quais seus impactos na democracia e no Estado de Direito”, disse.
O palestrante lembrou que, ao longo do século 20, a única instituição funcional que permitiu estabilidade, continuidade de poder e controle político foi o Partido Revolucionario Institucional (PRI), que teve o poder hegemônico no México entre 1929 até 2000, período em que todos os presidentes mexicanos foram do partido. O desgaste desse sistema hegemônico nos anos 1980/90, devido à corrupção e à crise econômica, entre outros problemas, abriu caminho para a eleição de Vicente Fox Quesada, candidato do Partido Acción Nacional (PAN), centro-direita) em 2000, dando início à transição democrática, caracterizada por diversas reformas políticas e institucionais e reformas econômicas liberalizantes.
“Imaginávamos que as novas instituições da era democrática substituiriam o PRI em sua função de garantir estabilidade política e organização social. Hoje vemos que isso não frutificou como o esperado, e o que estava funcionando foi deteriorado por AMLO. Devido à sua extraordinária habilidade política e narrativa, AMLO criou uma espécie de auréola de estabilidade durante os seis anos em que ocupou a Presidência, mas isso pode começar a erodir mais rapidamente do que se imagina se as instituições forem irremediavelmente comprometidas”, alertou.
Cenário internacional favorece México, que precisa saber aproveitar o momento
De acordo com Luis Rubio, que foi presidente do Consejo Mexicano de Asuntos Internacionales (COMEXI), o cenário internacional, caracterizado pela crescente rivalidade entre os Estados Unidos e a China e a ascensão da Ásia como novo polo econômico/comercial, favorece o México, que é membro do Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), vizinho dos EUA e, ao mesmo tempo, tem uma localização geográfica privilegiada para fazer comércio com a Ásia por estar no hemisfério norte e ter uma ampla costa no Oceano Pacífico.
“Desde a fundação do Nafta, em 1994, o México precisou abrir sua economia para o mundo, processo que também teve aspectos internos com as reformas liberais a partir dos anos 2000. Temos hoje uma das economias mais abertas da América Latina e que já pagou os custos desse ajuste. Estamos, portanto, em condições de atrair investimentos produtivos estrangeiros em quantidades nunca antes imaginadas. Mas, para não perder essa onda favorável, o governo precisa agir de forma consistente”, disse.
“Para atrair e integrar os investimentos estrangeiros, é preciso uma grande evolução em diversas áreas, como infraestrutura, energia elétrica, educação, saúde e segurança pública. Nada disso é novidade, mas não vejo um estado de ânimo da presidente Claudia Sheinbaum no sentido de liderar esse processo e eliminar as amarras que impedem um crescimento econômico consistente, de longo prazo e integrado à nova realidade mundial”, concluiu.
Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.