A literatura em perigo!
Por: InstitutoEcofuturo| Notícias| 10/05/2016Por Christine Castilho Fontelles*
Recentemente assisti a uma saborosa palestra do escritor Cristovão Tezza cujo tema era “A literatura à deriva”. Perguntado sobre como promover ampliação da leitura literária nas escolas – assunto que tem sido o fundamento do meu trabalho há mais de 15 anos -, falou sobre a polêmica envolvendo seu romance “Aventuras provisórias”, indicado para as escolas de Santa Catarina e que foi considerado inadequado por uma auxiliar pedagógica por ter linguagem chula, discurso ao qual se somou o de alguns pais de alunos – fenômeno fácil de reconhecer nos dias atuais, quando qualquer indício de oposição ao o que quer que seja é seguido de uma feroz caça às bruxas que vai de impropérios disparados pelas redes sociais a agressões às vias de fato, agora também presentes nas melhores livrarias do país. O episódio o motivou a escrever em sua coluna na Gazeta do Povo, de Curitiba, um texto intitulado “Não me adotem”. Segundo Tezza, há um certo antagonismo entre o conservadorismo propagado nas escolas e o caráter libertário da literatura. Literatura é vida real e texto de escola tem os contornos do socialmente correto – termo que uma querida amiga, Silvia Catrillon, prefere substituir por “moralmente hipócrita”. Ora, banir das escolas a reflexão e o debate sobre temas que são eminentemente humanos é retirar da escola sua função de formar seres humanos integrais, aptos a viver em ambientes e situações que requererão dele conhecimentos, abertura e habilidades para viver em um mundo cada vez mais multi e intercultural.
Eu não li o livro, mas assusta a forma como o fato veiculou: um fragmento da obra foi retirado do contexto da narrativa e linchado na praça pública das mídias, como se fosse, palavras do autor, um hai kai.
Como se diz há muito tempo, não se julga um livro pela capa, embora ela possa, a capa, ser fator de escolha do livro, coisa que frequentador de livrarias e de antenadas bibliotecas conhece bem. E isso não é estratégia de país tido como pouco afeito à leitura – bibliotecas recém abertas estão sendo fechadas Brasil adentro, como é o caso das bibliotecas públicas no Rio de Janeiro, uma delas, a de Manguinhos, uma biblioteca Parque, inspirada no modelo da Colômbia, não por falta de leitor, mas por decisão da gestão pública sobre onde ela acha que é importante alocar recursos públicos. Recentemente estive num evento literário no Chile e conheci uma biblioteca em Kopenhagen que descarta anualmente 30% do seu acervo físico porque passam a ser encontrados em meiodigital e, assim, conseguem ter espaço para expor os livros com as capas de frente para os seus usuários e, assim, usar a capa do livro como estratégia para atrair leitor.
Pra que serve, então, a literatura? Vejamos como é tratada nas escolas. As escolas levam seus alunos à exposições de arte e não aplicam questionário, ensinam música e ao invés de transformar o aprendido em prova promovem, como deve ser, uma bela apresentação, sugerem filmes como outra linguagem para compreender fatos históricos e trocar ideias, levam ao teatro para oferecer acesso à cultura e em todos os casos como experiência estética. Mas a literatura, não!, à leitura literário são levados para fazer prova de entendimento de texto, de conferência para provar que leram, quando não seus fragmentos de literatura são usados para o ensino de gramática. Dá pra gostar? Dá para se envolver? Dá para querer mais? Ou seja: está condenada a não “servir” para nada.
Se não é para proporcionar experiência ética e estética, que passa inevitavelmente pela escola. Se não é para nos humanizar na medida em que, como ensina Albert Manguel, viabiliza nossas experiências no tempo e no espaço – uma vez que não podemos nos deslocar (ainda!) de volta ao passado ou visitar o futuro e nem estar pessoalmente em todos os lugares para provar das culturas e das geografias que banham este planeta! Que é, ou deveria ser, também missão realizada na escola.
Em “A literatura em perigo” Tzvetan Todorov fala sobre a importância de romper as amarras burocráticas do ensino de literatura para que seja possível incursionar pelo o que ela tem a dizer sobre o humano, para muito além das convenções sociais que sempre buscam silenciar tensões e distensões, colocando a sociedade no trilho do positivismo: ordem e progresso. Como se não falar do que aflige, encanta, amedronta, transcende, assombra, fosse garantia de uma vida plácida e sem conflitos.
Ainda outro dia tentaram banir das escolas brasileiras o livro de Monteiro Lobato, acusado de propagar racismo, alegando que os professores não tinham condições de lidar em sala de aula com resquícios literais e literários de uma sociedade de passado escravocrata e presente acintosamente preconceituoso e racista. Assim condena-se um grande escritor e se assume a pouca intimidade e o despreparo de professores com o uso do texto literário como condenação e resultado de geração espontânea, ao invés de oferecer as condições necessárias para garantir a formação leitora de qualidade para todos. E quem tem em mãos “Caçadas de Pedrinho”, edição atual, certamente encontra numa das primeiras páginas uma mensagem onde se diz que não se recomenda a caça de animais silvestres da fauna brasileira e aquela é apenas uma história de ficção!
Pra que serve a literatura? Para nada, dizia o poeta e querido amigo Bartolomeu Campos de Queirós, querendo dizer para tudo, para tudo que pode nos humanizar. Ele, um raro ser, que era poesia em movimento, capaz de nos apresentar a dor e a ausência em finas fatias de tomate servidas nas páginas do desconcertante “Vermelho Amargo”.
“O papel de um escritor não é dizer aquilo que todos somos capazes de dizer, mas sim aquilo que não somos capazes de dizer”, dizia a escritora Anais Min. Pilhar esta experiência que a literatura, e só ela proporciona, é praticamente pilhar de crianças e jovens desde muito cedo percepção e consciência de que somos seres de narrativas, que escrevemos para dizer quem somos e nos conectar, de uma forma íntima, com a teia da vida. Para muito, muito além dos limites de realidade traçados pela superficialidade ou banalidade dos textos que trafegam em larguíssima escala pelas mídias e redes sociais. Então, sim, nunca lemos tanto. Mas é preciso ler melhor, para melhor atendermos às demandas da vida e fazer deste lugar o melhor lugar do mundo para se viver, para todos!
E para quem acha que a literatura é um luxo imaterial, fica a pergunta: como a matéria pode ter criado algo tão imaterial quanto a consciência? E pra que serve mesmo a consciência?
http://promenino.org.br/noticias/colunistas/a-literatura-em-perigo
*Christine Castilho Fontelles é cientista social pela PUC-SP, possui MBA em Marketing pela FIA/FEA-USP, consultora de educação do Instituto Ecofuturo, conselheira da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e do Movimento por um Brasil Literário.