A posição do Japão em um mundo cada vez mais incerto
Por: Fundação FHC| Notícias| 04/11/2024Aerial view of Tokyo cityscape with Fuji mountain in Japan.
Nos últimos três anos, o Japão tem observado com crescente preocupação a aproximação da China de países como China, Rússia, Coreia do Norte e Irã, que, segundo a percepção majoritária no governo e também na sociedade japonesa, ameaçam a paz e a estabilidade da ordem internacional.
Por outro lado, Tóquio também está apreensivo com a possibilidade de Washington adotar medidas cada vez mais protecionistas, devido à crescente rivalidade comercial, diplomática e, principalmente, tecnológica com a China. O protecionismo americano pode afetar indiretamente o Japão, que tem com a China o seu maior fluxo de investimento e comércio.
Tatsumi chamou atenção para a decisão de Tóquio de revitalizar a indústria bélica japonesa, para fins de defesa do arquipélago em caso de ameaça externa. “Para atingirmos esse objetivo, precisaremos estabelecer parcerias com aliados estratégicos nos EUA, na Europa e em outras regiões do mundo. Se os EUA decidirem impor cada vez mais restrições nas áreas tecnológica e militar, a implementação da nova estratégia de defesa do Japão pode enfrentar dificuldades”, explicou.
Este é o quadro complexo no qual opera a política externa japonesa, segundo a descrição feita pela especialista em assuntos de defesa e geopolítica Yuki Tatsumi, diretora do Programa Japão no Stimson Center, think tank apartidário e sem fins lucrativos que analisa questões relacionadas à paz global, neste webinar realizado pela Fundação FHC e a Japan House São Paulo.
“Nas últimas décadas, e diante da miraculosa ascensão econômica e comercial chinesa, na posição oficial do Japão a China era um dos países mais importantes do mundo, com o qual Tóquio deveria construir uma relação bilateral construtiva. No entanto, na nova Estratégia de Segurança Nacional, divulgada em dezembro de 2022, o Japão define a China como sua maior preocupação na área de segurança no futuro previsível”, disse a assistente especial para assuntos políticos na Embaixada do Japão em Washington.
Segundo a palestrante, esta mudança de visão em relação a Beijing teve duas razões principais. Em primeiro lugar, a postura agressiva adotada pela China nas áreas marítimas próximas a seu território. A Marinha e a Guarda Costeira chinesas, assim como de navios de pesca e de pesquisa, têm agido de modo incompatível com o direito internacional em águas marítimas não apenas ao redor do Japão e no Estreito de Taiwan, mas também em áreas do Oceano Pacífico próximas às águas territoriais das Filipinas e do Vietnã.
“Não são apenas os recorrentes exercícios militares chineses no Estreito de Taiwan que preocupam. Temos recebido relatos de navios chineses assediando embarcações da Guarda Costeira e barcos de pesca em águas sob disputa próximas às Filipinas e ao Vietnã. Não há problema em haver diferentes entendimentos sobre soberania marítima, mas quando se tenta impor uma situação pelo uso da força, como a China tem ensaiado fazer recentemente, isso passa a ser motivo de crescente preocupação no Japão”, explicou Tatsumi.
A segunda razão pela qual o Japão mudou sua percepção sobre a China é a aproximação entre ela e a Rússia, que em conjunto põem em xeque a hegemonia americana. As relações entre os dois países é regida atualmente pela “Abrangente Estratégia de Cooperação para uma Nova Era”, nome pomposo de uma parceria, anunciada em 2023, que os governos de ambos os países declaram se estender aos campos tecnológico e militar, passando pelo comércio e pelo investimento. A “nova era” faz clara alusão a um mundo não mais sob hegemonia do Ocidente.
Nem mesmo a invasão unilateral da Ucrânia pelo Exército russo em fevereiro de 2022 — “um exemplo do que acontece quando um país busca resolver um desentendimento internacional com o uso da força militar”, ressaltou a palestrante — foi condenada por Beijing, o que acendeu a luz amarela em Tóquio.
“Há cinco ou sete anos, havia vozes relevantes no Japão que defendiam maior cooperação com a China, mas desde então o governo japonês e a população do país têm identificado algumas decisões políticas feitas por Beijing que não necessariamente contribuem para a paz e uma ordem internacional estável”, disse. Como exemplo, a palestrante citou a aproximação de Beijing com países disruptivos como Rússia, Coreia do Norte e até mesmo o Irã.
Há cerca de 12 anos, o então premiê do Japão, Shinzo Abe, defendeu publicamente que o Japão deveria ser uma das principais vozes na comunidade internacional em defesa da ordem internacional fundada após a Segunda Guerra Mundial, sob a liderança dos Estados Unidos da América. “O governo japonês tem buscado colocar em prática esta visão do ex-premiê, por acreditar que esse conjunto de regras e normas internacionais beneficiou a maioria dos países e suas populações”, disse Tatsumi.
Entretanto, diante da crescente ameaça à ordem mundial que prevaleceu durante toda a segunda metade do século 20, sobretudo após o fim da Guerra Fria, o Japão chegou à conclusão de que não pode mais depender dos EUA para a defesa do arquipélago. “Esse conjunto de coisas levou a uma tomada de consciência por parte do establishment político, econômico, diplomático e militar e também da população de que o Japão precisa investir em sua própria capacidade de defesa, assim como reforçar as relações do país com parceiros de segurança e amigos ao redor do mundo, incluindo o Brasil”, disse a especialista.
Kamala Harris ou Trump? Como o Japão vê as eleições nos EUA
Não é somente Beijing que preocupa Tóquio. A reação de Washington ao crescente poderio chinês, que se traduz em medidas protecionistas em várias áreas, principalmente nas áreas tecnológicas e de defesa, e a própria dinâmica interna da política norte-americana, têm sido acompanhadas de perto pelas autoridades japonesas.
“Enquanto a China aumenta seu poder, inclusive militarmente, e começa a olhar mais para fora, os Estados Unidos parecem olhar cada vez mais para dentro. Esta tendência vem ganhando terreno desde a primeira administração Trump (2017-2021), quando o ex-presidente republicano, ao implementar a política America First, seu principal slogan de campanha, colocou em segundo plano parcerias estratégicas com aliados históricos, entre eles o Japão”, disse Tatsumi.
Mesmo na atual administração Biden — que não é isolacionista e defende que os EUA devem reforçar os laços com seus aliados na Europa, na Ásia e em outras partes do mundo —, há uma tendência de adotar medidas econômicas, comerciais e tarifárias protecionistas, que podem ter impacto negativo em outros países.
“O que acontecerá com a ordem econômica mundial se os EUA tentarem progressivamente separar suas cadeias de suprimentos e de produção da China, com o objetivo de reduzir a interdependência entre as economias norte-americana e chinesa? E se Washington aumentar a pressão sobre seus parceiros e aliados para que sigam essa política, iniciada no governo Trump, mas de certa forma mantida no governo Biden?”, perguntou.
De acordo com a palestrante, nem a economia japonesa nem a brasileira são grandes e fortes o suficiente para dar esse passo de se distanciar da China, seja nas trocas comerciais ou no que diz respeito a investimentos: “A economia japonesa continua a ter muita interdependência com a chinesa, a China é um grande exportador e investidor global, e os negócios brasileiros e japoneses são influenciados pelo estado da economia chinesa.”
“Kamala Harris ou Trump? A vitória de qual dos dois candidatos à Casa Branca nas eleições de 5 de novembro é vista com melhores olhos em Tóquio?”, perguntou o cientista político Sergio Fausto, diretor geral da Fundação FHC.
“Se olharmos apenas para a questão da ordem global, o respeito às atuais normas e regras internacionais e o compromisso com o multilateralismo, Kamala Harris fica bem à frente de Trump. Nesse sentido, Tóquio se sentirá mais confortável se a democrata vencer a disputa”, respondeu Tatsumi.
“Mas, no âmbito das políticas econômica, comercial e de exportações, é possível que uma administração Harris seja menos flexível do que um segundo governo Trump, porque, apesar de seu discurso protecionista, o republicano é pragmático. Uma coisa é certa: o impacto da rivalidade sino-americana ainda não foi devidamente sentido no Japão, mas será nos próximos anos, não há dúvida”, continuou.
Antes, a Coreia do Norte era a maior ameaça. Hoje, é a China
Segundo a especialista, até recentemente a ameaça mais imediata à segurança do Japão vinha da Coreia do Norte, devido ao programa nuclear clandestino e aos mísseis balísticos capazes de atingir o arquipélago japonês.
A ameaça norte-coreana não diminuiu, pelo contrário: o país, um dos mais fechados do mundo, já é considerado hoje uma potência nuclear.
Mas o comportamento mais agressivo da China na defesa de seus interesses no Mar da China Oriental (área do Pacífico em frente à China) e a aproximação de Beijing com Moscou e outros regimes que desafiam a ordem internacional fez com que Tóquio passasse a vê-la como ameaça mais imediata. “Temos essa grande nação vizinha e, embora exista um mar entre o Japão e a China, vemos com preocupação o aumento da tensão no Estreito de Taiwan e em outras áreas do Oceano Pacífico”, disse.
A palestrante evitou falar da possibilidade de um conflito militar no Leste Asiático provocado por uma eventual invasão de Taiwan pelas Forças Armadas da China, mas, ao ser questionada pelo moderador sobre qual seria a reação de Tóquio, ela foi clara: “O Japão não teria alternativa a não ser auxiliar os Estados Unidos em seu esforço militar para defender Taiwan.”
“Na sua visão, até onde vai a China com essa relativamente nova “diplomacia guerreira” (warrior diplomacy)?”, perguntou Fausto. “Vai piorar antes de melhorar”, respondeu Tatsumi, para quem o regime de Beijing tende a adotar uma política externa mais agressiva e competitiva para desviar a atenção da população de uma série de problemas internos que o país já enfrenta e que podem se agravar nos próximos anos.
“O sucesso econômico e comercial da China é inegável, assim como seu impressionante desenvolvimento nas últimas décadas. Mas o país enfrenta graves problemas estruturais, como o início de um processo de diminuição da população, questões econômicas e movimentos separatistas, entre outros. Espero que isso não ocorra, pois seria um cenário de pesadelo para o Japão, mas se o descontentamento na China aumentar a ponto do regime implodir, o impacto seria gigantesco não apenas na Ásia, mas em todo o mundo”, concluiu.