Aceleração de impacto: que bicho é esse?
Por: GIFE| Notícias| 01/03/2021Pra começo de conversa
Há tempos venho acompanhado e apoiando programas de aceleração de negócios de impacto / empreendimentos socioambientais e também tenho procurado discutir esse assunto. Sem dúvida é um tema em alta que parece surfar uma boa onda, na esteira da popularização (e/ou banalização?) dos termos ‘impacto’ e ‘aceleração‘.
Embora os termos e o tema estejam em alta, o debate sobre eles parece seguir bem superficial e enviesado, infelizmente. Pouco se nota por aí discussões que tentam abordar questões fundamentais dentre estas:
- O que esses programas de ‘aceleração de negócios de impacto’, em geral, oferecem? A quem? E o que não oferecem?
- Eles têm conseguido endereçar as questões centrais dos negócios de impacto? De quais tipos de negócios de impacto? Quais outros tipos de negócios têm ficado à margem destes programas? (ex: há oferta de aceleração para OSCs com modelos de negócios e cooperativas?)
- O modelo de ‘aceleradora de impacto’ vem mudando ao longo do tempo? Segue sendo desafiador em termos de modelo de negócio?
São apenas algumas questões, dentre inúmeras outras, que poderiam ser mais discutidas. O que se nota é o crescente incômodo com o termo ‘aceleração’ (e aceleradora) no campo de impacto, seguido de esforços para a adoção de outros termos (‘dinamizadora’ é um que parece ser o mais ‘queridinho’, ao menos por enquanto). Eufemismos à parte, o ponto central a meu ver não é o termo, mas o que ele traz consigo.
Afinal, o que têm sido esses programas de aceleração de negócios de impacto? E o que eles não têm sido? O que poderiam ser?
Referências
Se quiser encontrar referências sobre o tema, deixo uma aqui que considero muito boa, embora focada no contexto europeu.
Outra referência sobre o tema, esta brasileira, é o Estudo da Aliança pelo Impacto que fez um balanço das Recomendações de 2015-2020. Nas págs. 15 e 16 é possível ter uma dimensão da situação das incubadoras e aceleradoras de impacto.
Quais são os ingredientes dos programas de aceleração?
Antes de nada, é preciso enfatizar que meu olhar é empírico e não acadêmico, de alguém que tem acompanhado, se envolvido e apoiado esse campo, sobretudo a partir do fortalecimento das chamadas organizações intermediárias deste ecossistema.
Se você não tem uma ideia mais elaborada do que são esses tais de ‘intermediários, recomendo muito a leitura deste material. Embora mais antigo (2015), ele nos ajuda a ter uma visão dos 4 tipos distintos de intermediários (pág 8). As chamadas incubadoras e aceleradoras são apenas um dos quatro tipos, convém lembrar, e será sobre elas, ou melhor, sobre os programas de aceleração que elas oferecem, o foco da discussão aqui.
Tenho acompanhado há algum tempo programas de aceleração de negócios de impacto e tenho visto neles pelo menos 3 grandes dimensões que têm sido trabalhadas, mais comumente em parte. É raro encontrar iniciativas que consigam endereçar as 3 dimensões, e convém lembrar cada uma procura oferecer o que tem de melhor, e o que faz mais sentido à sua missão institucional.
Foco no Negócio
O escopo aqui é apoiar o negócio a encontrar/potencializar seu modelo de negócio e de receita; ampliar suas vendas; turbinar seu mkt e superar momentos de crise financeira, como o momento em que estamos (pandemia).
Em geral a abordagem mais comumente utilizada é a oferta de algumas ferramentas para apoiar os empreendedores a lidar com essas questões. Modelo C + Canvas de modelo de negócio são bastante utilizados e têm sido uma boa mão na roda. Há muitas outras ferramentas, algumas úteis outras nem tanto, que são oferecidas (às vezes despejadas) aos empreendedores.
O ponto aqui, a meu ver, é encontrar o equilíbrio adequado entre a oferta de ferramentas que podem ajudar vs. qual é o maior desafio que o negócio enfrenta naquele momento. Além disso, terceirizar a oferta deste conteúdo ou internalizá-lo pela aceleradora é algo também presente na prática do setor. Aos que procuram receita de bolo já respondo: não há certo ou errado. Cabe à cada organização encontrar o que faz sentido para seu momento, sua estrutura e sua missão. Muitas vezes o negócio não tem clareza do sua real necessidade, ao se inscrever neste ou naquele programa de aceleração. Aos que não conhecem, vale destacar o Guia 2,5, que surgiu justamente com esse objetivo: apoiar os empreendedores de negócio de impacto a identificar a oferta de programas de apoio/aceleração.
Feita essa ressalva, às vezes fico com a sensação de que há um pout pourri de ferramentas que são despejadas sobre os empreendedores, com tarefas e prazos apertados, em uma frenesia que beira a insanidade. É algo como um programa acelerado de aceleração. Mas isso é tema pra outro papo.
Não tenho dúvidas de que esta primeira dimensão é a campeã de vendas nos programas de aceleração de impacto por aí. Pra não dizer que não falei das flores: sim, as ferramentas são importantes e ajudam aos empreendedores, mas tão importante quanto elas é o equilíbrio delas com a maneira como elas serão trabalhadas ao longo do programa de aceleração. Não basta ter uma caixa abarrotada de ferramentas; é preciso saber usá-las. Por outro lado não basta ter apenas um martelo e tentar usá-lo para todo e qualquer tipo de situação. Daí o mix adequado ser tão necessário. Parece que o canvas se tornou o martelo atual. Será?
Foco no(a) Empreendedor(a)
Se abundam ofertas de ferramentas, faltam divãs ou espaços de trocas/apoio emocional ao empreendedor. Em tempos de pandemia e crise advinda dela, esse tipo de apoio é ainda mais necessário. No entanto, segue escasso nos programas de aceleração por aí. O momento ‘ombro amigo’ tem até acontecido, mas em geral ele não foi pensado desta forma e não consta na agenda oficial do programa de aceleração. Que pena.
Aqui poderiam entrar aspectos como: liderança, relação entre sócios (não em termos jurídicos), aspectos emocionais, etc. A tônica seria o apoio ao empreendedor e não ao negócio; apoio à pessoa física que está na frente do negócio e não ao CNPJ, considerando os aspectos subjetivos e emocionais desta jornada que bem sabemos, é pesada.
Sim, tenho consciência de que se trata de uma dimensão nada trivial e que requer muita habilidade e experiência por parte da ‘aceleradora’. Além disso sabemos que esta não é sua praia habitual. Quais delas possuem em seus quadros psicólogos, por exemplo?
Em geral, essa dimensão tem sido deixada em segundo plano, seja pelo desafio da ‘aceleradora’ para endereçá-la, seja pela sua incapacidade de enxergá-la, seja pela sua não priorização na agenda do programa.
Convém lembrar que a maneira como esta dimensão será abordada é tão importante quanto aos aspectos que serão abordados. Convidar um especialista neste tema para uma palestra (ou roda de conversa/live) pode apenas destampar esse caldeirão de situações emocionais, podendo até mais atrapalhar do que ajudar e gerando expectativas nos empreendedores que possivelmente não serão atendidas. Portanto, se quiser mesmo endereçar essa dimensão, cerque-se de profissionais competentes para tal e pense nas melhoras maneiras de fazê-lo.
Foco no Impacto
A terceira dimensão tem como foco a mensuração do impacto socioambiental positivo que o negócio de impacto se propõe a gerar. Em menor ou maior grau e ao longo da sua jornada, o negócio precisará lidar com esse tema. O ‘lidar’ aqui pressupõe fazer a lição de casa (pra dentro) e oferecer pra fora uma narrativa condizente com esta realidade.
De que adianta o negócio ter uma linda narrativa de impacto se não consegue apresentar evidências de suas métricas? Por outro lado, de que adianta o negócio ter um sistema robusto de métricas se mal consegue comunicá-las de forma compreensível pra fora?
Portanto, essas questões são temas desta terceira dimensão, as quais são endereçadas também com ferramentas e sistemas de mensuração de impacto. Pra não soar que eu esteja propondo venda casada aqui, não recomendo nada além da boa e velha matriz lógica, tão utilizada em projetos socioambientais, com as devidas adpatações ao contexto do negócio. Essas devidas adaptações têm sido materializadas na chamada Teoria de Mudança. Essa tem sido a ferramenta mais amplamente utilizada nesta dimensão (e a da moda) e, ainda que eu goste dela, ela seria apenas um carro abre-alas para a matriz lógica.
Convém lembrar que a Teoria de Mudança ou a Matriz Logica (ou qualquer outra ferramenta) deverão apoiar o negócio a responder questões fundamentais como:
- Quais são os impactos que o negócio vai gerar? Como mensurá-lo? Quão profundo se deve ir? A quem reportar e como? Como pagar essa conta?
Há muitas outras perguntas a responder, mas essas já nos ajudam a dar o contorno desta dimensão e também de sinalizar a clara conexão dela com a primeira dimensão (negócio). Ambas têm relação direta e precisam ser trabalhadas de forma integrada.
Afinal, o negócio precisa parar de pé financeiramente e, ao mesmo tempo, gerar impacto positivo. Em outras palavras, o negócio parando de pé permitirá o alcance da sua missão que é gerar impacto positivo. Na medida em que ele derrape na sua dimensão de negócio, ele também esvaziará sua dimensão de impacto. Por isso, ambas devem andar juntas.
E o que tenho visto por aí?
- muita oferta de ‘aceleração’ focada na primeira dimensão (foco no negócio) com pitadas na terceira dimensão (foco no impacto) a partir de uma enxurrada de ferramentas e um certo fetiche pela abordagem ‘correria’ (prazos, entregas, tarefas, etc).
- em outras palavras, os programas de aceleração tem colocado mais pilha nos empreendedores e não necessariamente tem os feito refletir sobre o momento atual que enfrentam e o que precisa ser feito nesta situação. Talvez algumas destas ferramentas podem os ajudar, talvez não.
- pouco apoio em termos de saúde emocional do(a) empreendedor(a). A segunda dimensão segue sendo o ‘patinho feio’ nas acelerações por aí.
- oferta de conteúdos para mensurar impacto (terceira dimensão), mas girando ao sabor do que os investidores querem ver ou com enfoque mais superficial. Constrói-se uma bela teoria de mudança e uma narrativa decorre dela e é isso e nada mais, sob o argumento (equivocado) de que ou se para de pé financeiramente ou se mensura impacto.
- além disso, atenção às vendas casadas travestidas de parceria. Há muita gente tentando empurrar ferramentas e sistemas que supostamente vão ‘resolver todos os problemas’ do negócio, quando na realidade o que ele precisa naquele momento é poder desabafar com alguém e refletir junto sobre saídas possíveis. As ferramentas viriam apenas depois, como instrumentos que os ajudaria nesta saídas.
- mentorias têm sido um show de paraquedismo. Caem mentores de para-quedas para conversar (ou palestrar suas groselhas) com os empreendedores, mas sem grande esforço de gestão por parte da equipe da aceleradora. Sim, dá muito trabalho para a aceleradora gerenciar um pool de mentores e o que parecia algo custo-zero (mentores pro-bono) pode se transformar numa demanda gigantesca de gestão e tempo da equipe. Às vezes seria melhor não contar com ‘mentores-celebridades’ e sim ter ‘padrinhos-madrinhas’ da própria equipe da aceleradora que irá buscar apoio externo em aspectos específicos quando necessário. A refletir….
- sim, há boas relações entre mentores e empreendedores (eu mesmo tenho algumas boas histórias), mas há também relações bem ruins. Não basta apenas conectar um mentor que entende de um certo tema (que o negócio precisa) se o mentor não tem empatia com a agenda de impacto e com o momento do empreendor/negócio.
- por outro lado, é preciso também dosar o tempo do empreendedor para lidar com seus mentores: sessões de mentoria + tarefas, etc. Isso toma tempo tanto dos empreendedores quanto da aceleradora e, em geral, é subdimensionado. Às vezes há esforços de tornar esse processo mais efeciente o que pode torná-lo bastane engessado. Mentores tem que preencher planilhas com cada mentoria, tem que estabelecer metas, etc. No fim do dia, parece que o mentor está sendo acelerado ou que está se tornando um membro da equipe da aceleradora.
Alguns erros que tenho visto:
– excesso de conteúdo, encontros, palestras, ferramentas
– excesso de estímulos e de velocidade: programas de aceleração com cara de corrida de 100 metros quando poderiam ser uma meia maratona
– carência de conversas ‘ombro amigo’ (às vezes suprida por alguns mentores, mesmo sem ser este seu papel)
– mentorias caindo de para-quedas dando palestrinha
– falta de gestão de mentores/palestrantes
– inspirações em fontes equivocadas: startups convencionais. Seriam as aceleradoras ‘convencionais’ o modelo mais inspirador para as de impacto? Tenho lá minhas (muitas) dúvidas, mas isso é também tema pra outro papo.
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E você? O que tem visto por aí nesse mundo emergente chamado de ‘aceleração de impacto’?