Ações da FEAC buscam fortalecer vínculos e formar mulheres em situação de rua

Por: Fundação FEAC| Notícias| 26/06/2023
Ações da FEAC buscam fortalecer vínculos e formar mulheres em situação de rua

A população em situação de rua no Brasil cresceu quase 40% entre 2019 e 2022, atingindo mais de 280 mil pessoas, informa levantamento mais recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Deste total, é expressivo o aumento do número de mulheres e de famílias inteiras nas ruas, com crianças e bebês, o que acionou um alerta na assistência social de diversas capitais, como São Paulo, Belo Horizonte, Recife, entre outras. A feminização deste público também traz novos desafios para projetos e políticas públicas, como a violência de gênero, maternidade e empregabilidade.

“Esse aumento se acentuou com a pandemia e, muitas vezes, elas estão em um contexto de vulnerabilidade bem maior”, aponta Juliana Reimberg, pesquisadora júnior do Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (USP). Juliana é autora do estudo “A situação de rua feminina na cidade de São Paulo: análise de um centro de acolhida especial a partir de narrativas individuais”, da FGV (leia entrevista com ela no quadro abaixo).

Em Campinas 16% de pessoas em situação de rua são mulheres

Segundo o último censo de população em situação de rua realizado pela prefeitura de Campinas, divulgado em dezembro de 2021, o número de pessoas nessa situação aumentou 13,4% em dois anos. Em relação ao gênero, 16,2% autodeclaram-se mulheres (aumento de 1,2% em dois anos).

Projeto Brinca comigo, da FEAC, apoia mães e filhos

E é para essa população, mulheres em situação de rua, acolhidas temporariamente na Casa da Gestante, que o projeto Brinca Comigo, foi desenhado.

Mulheres grávidas ou puérperas em situação de rua chegam à Casa da Gestante encaminhadas por serviços da prefeitura de Campinas, como centros de saúde, maternidades, Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) ou consultórios de rua. Lá, elas podem levar outros filhos de até oito anos e permanecer no serviço por até um ano e meio.

A casa tem o objetivo de oferecer acolhimento e cuidados contínuos de saúde para a mulher e as crianças. Atuando com essas mulheres, a coordenadora Vanessa Gaspar observa que um dos desafios da casa é fortalecer o vínculo da mãe com seus filhos.

“A partir de rodas de conversa que tivemos com as moradoras, pensamos em atividades para fortalecimento de vínculos entre mães e filhos e resgate de momentos lúdicos”, conta Isabela Dellacruci, assistente social da casa. Assim, foi idealizado o Brinca Comigo, projeto da Casa da Gestante em parceria com a Fundação FEAC.

O projeto iniciou-se em março de 2022 e está em fase final de execução. A proposta incluiu uma qualificação dos espaços da casa para melhor acolhimento de mães e seus filhos, além de atividades artísticas e lúdicas com o objetivo de fortalecer os vínculos. Dentre as atividades realizadas, a oficina de grafite está entre as preferidas das moradoras que, além de desfrutarem do benefício da atividade em si, deixaram as paredes da casa mais bonitas e com a “assinatura” das próprias mulheres que ali moram. Outra atividade que chamou atenção foram as oficinas com ecobrinquedistas, em que todas as participantes produziram brinquedos e jogos a partir de materiais reciclados, que foram agregados ao ateliê da casa.

O ateliê, inclusive, foi um dos espaços que passou pela qualificação e recebeu novos móveis e materiais de artesanato. É neste espaço que elas realizam atividades manuais, como a produção de velas, sabonetes, bijuterias e decoração para aniversários que são comercializadas depois.

Outro espaço pensado a partir do projeto Brinca Comigo foi o espaço de brincar ao ar livre. Criado com o recurso financeiro do projeto, o espaço ocupa a área da frente da casa, um espaço inutilizado anteriormente. Hoje, as mulheres passam ali alguns momentos de seu dia, conversando e observando seus filhos brincarem nos brinquedos feitos em madeira.

A coordenadora Vanessa observa que o estímulo aos momentos lúdicos, tanto para as mulheres quanto para as crianças, é capaz de trazer transformações na rotina da casa. “Ter um espaço diferenciado fez com que elas saíssem mais do quarto e ficassem mais nas áreas comuns, em grupo, para a troca de ideias, além de estarem mais próximas da equipe e das crianças.”

Outro trabalho realizado pela Casa da Gestante é o apoio no retorno dessas mulheres ao mundo do trabalho. Os profissionais da casa ficam responsáveis pelos cuidados das crianças e dos bebês para que elas possam sair para estudar ou trabalhar.

Inclusão produtiva para evitar institucionalização

O reingresso ao mundo do trabalho é um dos principais desafios enfrentados por mulheres em situação de rua estando, ou não, nos serviços de acolhimento temporários. Para aquelas que estão grávidas ou já têm filhos, o desafio costuma ser maior, uma vez que carecem de uma rede de apoio para exercerem atividades para além da maternidade.

Iniciativas de inclusão produtiva são uma das portas de saída dos serviços de acolhimento para população em situação de rua, oferecendo alternativas financeiras para a mulher começar a criar sua autonomia. “Um dos nossos projetos caminha para a construção de alternativas à vida na rua e, também, à institucionalização, buscando efetivar o caráter temporário dos serviços de acolhida”, explica Juliana Di Thomazo, coordenadora do Programa Acolhimento Afetivo, da Fundação FEAC.

Trata-se do projeto Qualifica: da Cabeça aos Pés, criado em 2022 pela Associação Casa de Apoio Santa Clara e apoiado pela Fundação FEAC. O projeto oferece formação profissional em manicure e pedicure para mulheres que estavam em situação de rua e foram recebidas pelos serviços de acolhimento de Campinas.

“O projeto chegou na minha vida na melhor hora porque eu estava precisando muito ocupar minha mente e aprender uma profissão. Eu já atendi algumas clientes”, relata Renata Banhara Francisco Marianno, 43 anos, acolhida no abrigo Santa Dulce. Ela é uma das cinco mulheres que se formou na primeira turma do Qualifica. Agora, uma nova turma com 22 mulheres está em formação.

Um diferencial do Qualifica é que, além das aulas, o projeto disponibiliza um salão para as alunas já começarem a atender. O salão foi alugado no final do ano passado, na região central de Campinas, especialmente para as mulheres do projeto.

Um desafio apontado por Elania Fátima Souza Alves, coordenadora executiva do Qualifica, é a captação de clientes após a formação. Um plano para as próximas formações é pensar em novas estratégias de marketing. “Pela própria vivência dessas mulheres, elas têm dificuldade de captar clientes. São muitas situações de vulnerabilidade, rejeição e preconceito, então elas não se sentem tão capazes.”

Além das aulas, o Qualifica oferece uma bolsa-auxílio de R$300 e atendimento com uma psicóloga. A equipe trabalha para que as mulheres não desistam do curso, o que é recorrente devido às questões de vulnerabilidade. “A gente não olha só para a geração de renda, mas também investe bastante nessa mulher, não desiste dela nas primeiras faltas”, diz Elania.

Após participar do Qualifica, Renata não parou: agora, ela não tem muito tempo para atender no salão porque está participando do Mão Amiga, projeto da prefeitura de Campinas, que também é voltado para a inclusão produtiva de pessoas em situação de rua, além de ter retomado os estudos pela Educação de Jovens e Adultos (EJA). “Agora, estou prestes a sair do abrigo e alugar um canto pra mim, pra eu poder ter minhas coisinhas”, planeja.

Casos assim trazem esperança a situações sociais tão complexas. Porém, ainda há muito trabalho pela frente, como reforça Juliana Di Thomazo, da Fundação FEAC: “Precisamos considerar a complexidade da situação para não cairmos na armadilha de achar que os projetos podem trazer soluções simplistas e isoladas. Mulheres que tiveram vivências em situação de rua trazem marcas profundas pelas condições que as levaram às ruas e, posteriormente, marcas da própria vivência nas ruas.”

“Hoje existem famílias inteiras em situação de rua. E mais mulheres”

“Por mais que as mulheres ainda sejam minoria na população em situação de rua, esse número aumentou expressivamente com a pandemia. Muitas vezes, elas estão em um contexto de vulnerabilidade até maior”, aponta Juliana Reimberg, pesquisadora júnior do Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (USP).

Juliana é autora do estudo “A situação de rua feminina na cidade de São Paulo: análise de um centro de acolhida especial a partir de narrativas individuais”, apresentada à Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EAESP FGV).

No trabalho, ela observa que a situação de mulheres na rua ou em serviços de acolhimento costuma decorrer não apenas da pobreza, falta de moradia adequada e fragilidade de vínculos familiares – fatores comuns às pessoas nessas condições –, mas é agravada por violências de gênero, sobretudo a violência doméstica. Leia a seguir entrevista com ela:

Nos últimos anos, é notável aumento de pessoas em situação de rua em grandes centros urbanos, inclusive mulheres. O que contribui para esse crescimento?

Juliana Reimberg – É impossível falar desse aumento sem mencionar a pandemia, que teve como efeito um crescimento acelerado dessa população. Muitas pessoas perderam o emprego – tanto formal quanto informal – e, consequentemente, acabou tendo uma influência muito grande na inadimplência dos aluguéis. Isso trouxe, sobretudo, um aumento das famílias inteiras em situação de rua, incluindo mais mulheres. Outro ponto é que, no contexto da pandemia, houve um aumento da convivência familiar e muitas mulheres em situação de rua ou em serviços de acolhimento são vítimas de violência doméstica.

Se as mulheres são minoria em situação de rua (em Campinas, são cerca de 16%), por que é importante pensar em políticas específicas para esse público?

Juliana Reimberg – Por mais que as mulheres sejam minorias da população em situação de rua, muitas vezes elas estão em um contexto de vulnerabilidade maior. E as políticas para a população de rua eram pensadas muito no perfil masculino: homens de meia-idade e sozinhos. Mas as mulheres têm particularidades que precisam ser consideradas. Por exemplo: nos centros de acolhida masculino não podem entrar crianças, como uma forma de evitar abusos. Então, a responsabilidade de cuidar daquelas crianças recai sobre a mulher, reproduzindo a divisão sexual do trabalho. Assim, fica mais difícil para ela criar autonomia e sair dessa situação.

Como a gravidez impacta a situação de vulnerabilidade dessas mulheres em situação de rua?

Juliana Reimberg – Primeiro que muitas vezes a mulher que está em situação de rua vai ser mais vulnerável a uma gravidez indesejada. Inclusive, eu conversei com muitas mulheres que passaram por episódios de violência sexual em suas casas. Esse foi um dos motivos de irem para rua. Uma vez que estão grávidas, existe um grande desafio para acessar o cuidado pré-natal.

Quando o bebê nasce, muitas vezes a mulher em situação de rua não têm o local de acolhimento necessário para exercer a maternidade. Então, são comuns relatos de mulheres que ficam sem acolhida e esse filho já começa a ser criado nas ruas. A realidade também é que grande parte dessas mulheres são mães solos, então fica toda essa responsabilidade em cima delas. Nesse contexto, percebemos também a importância de políticas de educação que olhem para essa população.

Segundo dados dos serviços de acolhida de Campinas, a maioria das mulheres nessa situação faz uso abusivo de substâncias. Quais são os fatores sociais envolvidos nessa questão?

Juliana Reimberg – Se a gente olhar os censos de população de rua, existe uma parte da população [tanto masculina quanto feminina] que vai para situação de rua devido ao uso abusivo de substâncias. A maioria dos casos, entretanto, é por causa do desemprego, ausência de uma moradia convencional e vínculos familiares rompidos. O que acontece é que, muitas vezes, essas pessoas não faziam uso abusivo de substâncias e começaram a partir do momento que se encontram em situação de rua. Com isso, novamente vemos o desafio e a importância da intersetorialidade, de oferecer equipes de saúde, incluindo profissionais de saúde mental, para o atendimento dessas pessoas.  

Por Laíza Castanhari

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