Alterações no Código Civil flexibilizam regras para instituições do terceiro setor

Por: GIFE| Notícias| 18/07/2005

LAÍS VANESSA C. DE FIGUEIRÊDO LOPES E PAULA RACCANELLO STORTO
Advogadas e integrantes do Núcleo de Estudos Avançados do Terceiro Setor (Neats) da PUC/SP, onde coordenam grupo de estudos sobre “”Direito e Legislação Aplicada ao Terceiro Setor””.

Uma nova lei acaba de ser aprovada no Congresso Nacional, impactando diretamente as entidades do terceiro setor. Trata-se da Lei nº 11.127, de 28 de junho de 2005, que trouxe modificações ao texto do novo Código Civil em relação às associações. Neste pequeno ensaio, abordaremos breve histórico e as principais disposições da legislação vigente e do processo legislativo que culminou na aprovação desta norma, introduzida em nosso ordenamento jurídico.

Breve histórico das proposições de alteração do novo Código Civil

O Código Civil (Lei nº 10.406/02), publicado em janeiro de 2002, teve um período de vacatio legis de um ano. Quando efetivamente entrou em vigor em janeiro de 2003, passou a classificar as pessoas jurídicas de direito privado em associações, sociedades e fundações. Após, a Lei nº 10.825/03 acrescentou na categorização as organizações religiosas e partidos políticos como tipos societários.

O prazo para adaptação dos contratos e estatutos sociais ao novo modelo era de um ano após a entrada em vigor do Código Civil, ou seja, em janeiro de 2004. Ocorre que a Lei nº 10.838/04 prorrogou este prazo para janeiro de 2005. No início do ano, foi editada a Medida Provisória nº 234/05, que estendeu ainda mais este prazo para janeiro de 2006. E, no final de junho de 2005, a Medida Provisória nº 234/05, convertida na Lei nº 11.127/05, alterou novamente o prazo de adaptação dos estatutos sociais, dessa vez para janeiro de 2007.

Logo na época da edição do Código, as duas grandes polêmicas geradas em relação às entidades do Terceiro Setor (associações e fundações) foram (i) a inclusão da expressão “”sem fins econômicos”” na definição de associação (art. 53, CC), o que poderia gerar interpretação errônea de que às associações é vedado o exercício de atividade econômica, quando na verdade o Código Civil limitou a finalidade e não a atividade econômica; e (ii) a restrição dos objetivos sociais das fundações, na medida em que apôs que estas somente poderão “”constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência”” (art. 62, CC).

Outras discussões foram relativas às normas que dispunham sobre o funcionamento interno das associações. É que o Código Civil padronizou um conjunto de regras básicas (algumas regras, especialmente as que exigem a identificação da pessoa jurídica, já eram obrigatórias pela Lei de Registros Públicos – Lei nº 6.015/73) que devem constar necessariamente no estatuto social de uma organização constituída sob essa forma. Entre as principais inovações nas previsões estatutárias, tem-se a obrigatoriedade da existência de uma Assembléia Geral, com competências privativas de eleger e destituir administradores, aprovar as contas e alterar o Estatuto Social, além de prever quoruns específicos para a tomada de determinadas decisões (art. 59, CC). Este ponto também causou polêmica na área por interferir diretamente na auto-gestão das entidades.

As inovações da Lei nº 11.127/05

As primeiras polêmicas apontadas têm sido pacificadas pela interpretação que os doutrinadores e o Poder Judiciário vêm dando aos dispositivos, mas ainda merecem ser regulamentadas de forma diversa na lei. No entanto, foi sobre as outras discussões relacionadas a liberdade de auto-organização que recentemente tratou a Lei nº 11.127/05.

A redação do artigo 54, que trata das disposições obrigatórias do estatuto social, foi alterada para retirar a obrigatoriedade de dispor sobre a constituição e funcionamento dos órgãos administrativos (inciso V), restando apenas os deliberativos; tendo acrescido também o inciso VII, que tornou obrigatório que no estatuto social das associações conste a forma de gestão administrativa e de aprovação das contas. Confira o texto legal abaixo:

“”Art. 54. Sob pena de nulidade, o estatuto das associações conterá:

V – o modo de constituição e de funcionamento dos órgãos deliberativos; (Redação dada pela Lei nº 11.127, de 2005)

VII – a forma de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas. (Incluído pela Lei nº 11.127, de 2005)””

A nova redação permite que os estatutos sociais apenas prevejam a forma pela qual se dará a gestão da associação pelos seus órgãos deliberativos, ao contrário da regra anterior que estabelecia a necessidade de versar sobre os órgãos administrativos também. Agora, quando uma entidade resolver criar uma nova instância administrativa, não haverá necessidade desta ser disciplinada pelo estatuto, exceto se tiver caráter deliberativo.

A grande novidade na mudança deste artigo é a obrigação de que os estatutos sociais passem a dispor sobre a forma da aprovação das contas das associações, o que antes não era exigido. Com a nova regra, as entidades poderão se auto-organizar, observando sempre que a documentação formal guarde consonância com as práticas das organizações. A lei não determinou qual deverá ser a forma, mas estabeleceu que o estatuto deve trazer estas informações.

Ressalte-se que a aprovação de contas já era matéria obrigatória de deliberação das associações, de competência privativa da Assembléia. O que a nova disposição introduz é a necessidade de descrição do processo de gestão e tomada de decisão em relação às contas das associações, o que é fundamental quando nos referimos a entidades sem fins lucrativos, que têm o dever de prestar contas, no mínimo, aos seus associados e doadores. Esta inovação vem ao encontro das boas práticas de governança que pressupõe princípios de transparência, publicidade, accountability, entre outros.

O segundo artigo alterado foi o 57, que estabelece que o procedimento para a exclusão de associado só pode ocorrer em caso de justa causa e deve assegurar o direito de defesa e de recurso. Foi excluída da redação do artigo a obrigatoriedade de que eventual recurso fosse apreciado pela Assembléia Geral, bem como a necessidade de que houvesse “”motivos graves”” para exclusão de associado em caso de omissão do estatuto sobre o tema. Veja o que diz a redação alterada:

“”Art. 57. A exclusão do associado só é admissível havendo justa causa, assim reconhecida em procedimento que assegure direito de defesa e de recurso, nos termos previstos no estatuto. (Redação dada pela Lei nº 11.127, de 2005)””.

Neste artigo há a previsão de princípios jurídicos consagrados tais como o devido processo, a ampla defesa e a liberdade de auto-organização das associações. Na hipótese de exclusão de associado, aquele que se sentir lesado por eventual decisão que o tenha excluído dos quadros da associação terá assegurado o direito de defesa e de que a referida decisão seja revista no âmbito interno da entidade. Em última instância, caso estes princípios não sejam respeitados, é possível exigi-los judicialmente.

Ao mesmo tempo em que esta alteração pode ser vista como benéfica por facultar o modo de tomada de decisão do processo de exclusão de associados, pode ser também entendida como um retrocesso uma vez que, ao deixar de garantir que a fase recursal seja feita em sede de Assembléia Geral, poderá ocasionar o afastamento dos demais associados do processo, não permitindo que estes se manifestem.

Outro artigo alterado foi o que dispunha sobre a competência privativa da Assembléia. Esta é a inovação mais importante trazida pela nova Lei, pois retira a obrigatoriedade de que a Assembléia Geral eleja os administradores da entidade e seja o órgão responsável pela aprovação das contas. Exclui, também, a exigência de quorum mínimo para instauração da Assembléia Geral convocada para alterar o Estatuto. Abaixo, segue o artigo alterado.

“”Art. 59. Compete privativamente à assembléia geral:

I – destituir os administradores;
III – alterar o estatuto.
Parágrafo único. Para as deliberações a que se referem os incisos I e II deste artigo é exigido deliberação da assembléia especialmente convocada para esse fim, cujo quorum será o estabelecido no estatuto, bem como os critérios de eleição dos administradores. (Redação dada pela Lei nº 11.127, de 2005)””

O artigo 5º da Constituição Federal veda a interferência estatal no funcionamento das associações, como direito e garantia fundamental, nos seguintes termos:

“”Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:(…)
XVIII – a criação de associação e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento.””

Não cabe ao Estado, portanto, interferir na forma de organização institucional de entidades privadas, especialmente das associações.

Referida alteração põe fim às principais controvérsias na reforma e adaptação dos estatutos das entidades do Terceiro Setor. Isto porque, a lei reconheceu que a Assembléia Geral é soberana para aprovar o estatuto social que melhor convier de maneira concreta à administração da entidade. A Lei nº 11.127/05 constitui importante passo no sentido de aperfeiçoar o Marco Legal do Terceiro Setor no Brasil, afastando texto legislativo manifestamente contrário ao princípio constitucional que garante a estas entidades privadas o direito de se auto-organizarem, de acordo com a vontade de seus associados.

Por óbvio, o texto legal não exclui a possibilidade da Assembléia aprovar contas ou eleger diretores. Apenas e tão somente possibilita que a entidade estabeleça a sua própria forma de funcionamento, o que nos parece absolutamente legítimo a entidades que se propõem a experimentar formas alternativas de representatividade e cooperação.

O quarto artigo alterado ampliou o poder de 1/5 (um quinto) dos associados para convocação de quaisquer órgãos de deliberação das associações. Segue o art. 60:

“”Art. 60. A convocação dos órgãos deliberativos far-se-á na forma do estatuto, garantido a 1/5 (um quinto) dos associados o direito de promovê-la. (Redação dada pela Lei nº 11.127, de 2005)””.

O fato de conferir aos associados o direito de promover a convocação de qualquer órgão da associação, inclusive a Assembléia Geral, amplia a possibilidade dos associados participarem do controle e da tomada de decisões nas associações.

A quinta e última das alterações relativas às associações é justamente o que propunha a MP n.º 234/05: mais uma prorrogação do prazo para as sociedades, associações e fundações se adaptarem às disposições do Novo Código Civil. Confira:

“”Art. 2.031. As associações, sociedades e fundações, constituídas na forma das leis anteriores, bem como os empresários, deverão se adaptar às disposições deste Código até 11 de janeiro de 2007. (Redação dada pela Lei nº 11.127, de 2005)

Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica às organizações religiosas nem aos partidos políticos””.

O processo legislativo

Note-se que esta Lei é fruto da conversão de uma Medida Provisória (MP), espécie de norma de competência exclusiva do Poder Executivo, que somente pode – ou deveria poder – ser editada em caso de relevância e urgência, devidamente fundamentadas. Após sua edição, a MP deve passar pela aprovação do Poder Legislativo para ser convertida em Lei.

A MP propunha apenas a prorrogação do prazo de adaptação dos estatutos e contratos sociais ao novo Código Civil pelas associações, sociedades e fundações constituídas na forma da legislação anterior. Não obstante, na data da sua votação em plenário pela Câmara dos Deputados, ela ganhou novo escopo alterando algumas regras importantes para o Terceiro Setor, além de uma disposição da Lei de Falências (Lei nº 11.101/05). Ocorre que ao acrescentar no projeto de lei de conversão da MP proposta matérias não previamente discutidas, a edição desta lei, apesar de ter respeitado o processo legislativo, não garantiu o debate democrático dos temas. As entidades do Terceiro Setor têm um papel importante no monitoramento pró-ativo do processo de edição de normas e por isso chamamos atenção para o modo como algumas disposições entram em vigor no nosso ordenamento jurídico.

Há várias formas de regulamentar o modus operandi das entidades do Terceiro Setor. As leis constituem o marco regulatório para direcionar como se darão as regras. No entanto, especialmente por se tratarem de entidades de direito privado, é fundamental que haja autonomia e decisão entre pares sobre a forma desejada para o funcionamento e a gestão da entidade.

O estatuto social de uma organização faz lei entre as partes. Na redação, deve-se considerar o que diz a legislação civil, além das legislações específicas sobre as titulações e registros que se pretende obter. O complemento que torna uma entidade diferente da outra é justamente a parcela característica de peculiaridades dos membros e instituidores. Se as leis forem muito rígidas, não permitirão que as pessoas imprimam suas marcas de artesãos. Se as leis forem muito flexíveis, não garantirão um mínimo de padrão de governança necessário para sustentabilidade do Terceiro Setor. O meio termo entre um e outro é a construção de regras baseadas em princípios gerais dos quais decorrem as leis e na vontade dos envolvidos na organização expressa no estatuto social acordado.

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