Qualidade do ambiente legal para atuação da sociedade civil é tema de debate

Por: GIFE| Notícias| 13/11/2019

Foto: Ricardo Lisboa - Yantra Imagens

Foto: Ricardo Lisboa – Yantra Imagens

Durante o Seminário Internacional: Espaço Cívico e Fortalecimento da Sociedade Civil, especialistas avaliaram o ambiente legal e apontaram as principais barreiras e como as organizações têm resistido.

Um ambiente legal favorável à atuação das organizações da sociedade civil (OSCs) passa pela garantia da liberdade de atuação, acesso a recursos, existência de instituições que garantam a transparência das ações governamentais e mecanismos de participação e de controle social. Ao mesmo tempo em que estabelece certas obrigações, o ordenamento jurídico também garante às organizações a possibilidade de atuarem de forma independente e autônoma.

O painel “Ambiente legal para atuação da sociedade civil” reuniu atores, nacionais e internacional, da sociedade civil e também do investimento social privado (ISP), para debater a qualidade do ambiente legal de atuação das OSCs, propondo um diagnóstico sobre o Brasil e outros países acerca das oportunidades e dos principais desafios para seu aprimoramento. Diante dos desafios,  analisaram como organizações da sociedade civil e gestores públicos têm agido e como o direito têm sido mobilizado para garantir a atuação das organizações.

A atividade integrou a programação do Seminário Internacional: Espaço Cívico e Fortalecimento da Sociedade Civil, realizado nos dias 30 e 31 de outubro, em São Paulo, uma iniciativa do GIFE em parceria com a WINGS e a FGV Direito SP. O evento reuniu organizações da sociedade civil, representantes do investimento social privado, pesquisadores e interessados em geral para debater o ambiente de atuação da sociedade civil organizada, além de partilhar os acúmulos e reflexões produzidas no âmbito do projeto Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil (Sustenta OSC), por meio do lançamento de dois livros: “Incentivos regulatórios à filantropia individual no Brasil” e “Fundos Patrimoniais e organizações da sociedade civil”.

Barreiras e restrições

Segundo especialistas, a constante criação de burocracias, barreiras para o financiamento das OSC, restrições ao ingresso de ajuda internacional e campanhas difamatórias contra as organizações se configuram como uma forma de restrição do espaço de atuação do setor. Legislações e medidas governamentais têm sido usadas, muitas vezes, para justificar restrições ao espaço cívico ou ainda possuem este efeito, ainda que não tenham surgido com esta primeira motivação. Foi o caso das recomendações do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI/FATF).

Periodicamente, o GAFI avalia os países membros no que se refere à implementação de medidas de prevenção e combate nessas áreas. As 40 recomendações do GAFI se constituem em um guia para que os países adotem padrões e promovam a efetiva implementação de medidas legais, regulatórias e operacionais para combater a lavagem de dinheiro, o financiamento do terrorismo, além de outras ameaças à integridade do sistema financeiro. Atualmente, esses padrões são adotados por mais de 180 países, inclusive o Brasil.

Os padrões do GAFI intensificam as exigências em situações de maior risco ou naquelas em que a implementação pode ser melhorada. Tais exigências foram expandidas para incluir novas ameaças, como o financiamento da proliferação de armas de destruição em massa, além de se tornarem mais claras com relação à transparência e mais rígidas contra a corrupção.

Jocelyn Nieva, do International Center for Not-for-Profit Law (ICNL), observa que o campo da sociedade civil ao ter sido considerado até 2016 como um ambiente de alta vulnerabilidade foi e ainda está sendo especialmente prejudicado por essa medida.

“Governos levam a sério essas avaliações e parâmetros do GAFI, pois elas influenciam investimentos e escalas de classificações do país, especialmente no Brasil, onde as escalas são fracas e, portanto, há avaliações regulares que oferecem incentivo para os governos demonstrarem que estão levando a sério o combate à lavagem de dinheiro e o terrorismo. Mas, muitos governos usam isso como pretexto para restringir a atuação da sociedade civil”, alerta.

Desde 2016, é necessário que os Governos identifiquem as OSC vulneráveis ao financiamento terrorista e, de maneira focada e proporcional, deve então proteger as OSC do abuso de financiamento terrorista. Trata-se de uma mudança extremamente relevante com relação à recomendação anterior e que precisa ser conhecida pelos governos e OSC. Para subsidiar a sociedade civil de informações claras acerca de seus direitos e contribuir com o fomento a um ambiente legal para sua atuação, o ICNL monitora o tema, a fim de produzir ferramentas para que governos possam se atualizar com relação às mudanças ocorridas e para que as organizações possam se fortalecer diante de ofensivas injustificadas. “Essa avaliação de risco tem que ser produzida junto com o setor das OSC”, defende a especialista.

Retrospectiva histórica

Paulo Hauss, advogado especialista em terceiro setor e representante da Confederação Brasileira de Fundações (Cebraf), teceu uma retrospectiva histórica dos marcos legais que regeram até hoje as relações entre as organizações sem fins lucrativos e o Estado e como isso, muitas vezes, interferiu e ainda interfere na autonomia das organizações.

Contou que, por exemplo, que de 1500 até 1808 era proibido abrir uma associação. Após 1808 foi necessário pedir permissão para um delegado de polícia para abrir uma associação que então deveria submeter o Estatuto Social para o então Imperador. De 1891 até 1935 o Estado desfez o controle sobre as OSC e, logo após de 1935 até 1988 entramos em um ciclo no qual o Estado começou a certificar as organizações, de interesse público, de assistência social e, a partir das certificações, passou a conceder algum tipo de tratamento diferenciado, seja no regime tributário, seja para a celebração de parceiras. Esse tipo de mentalidade, infelizmente, não foi superada, apesar da autonomia das organizações prevista na Constituição Federal de 1988.

Comparando com outros países que mantiveram o mesmo racional, Paulo ressaltou a importância de respeito à autonomia da sociedade civil para a democracia.

Trincheiras

Para Juliana Vieira dos Santos, as formas veladas de restrição também preocupam. A advogada é uma das fundadoras da rede Aliança, formada por advogados, defensores públicos, promotores, procuradores e entidades da sociedade civil com o propósito de combater de modo amplo violações de liberdades individuais e direitos básicos no Brasil.

“Lançamos essa rede pro bono para ajudar pessoas físicas e também as organizações a resistirem às violações e a identificarem essas tentativas de minar o ambiente democrático”, explicou.

Citando o livro Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, Juliana apontou que um dos principais inimigos da democracia é a polarização política extrema.

“Opiniões divergentes não só são saudáveis como fundamentais. Numa conjuntura de polarização extrema, a tendência é a criação de um ambiente de intolerância. A sociedade civil começa a soar como inimiga do Estado porque tem outras opiniões, projetos e ideias para o desenvolvimento do país”, observou.

Nesse sentido, para a advogada, os poderes legislativo e judiciário são ‘trincheiras’ que precisam ser ocupadas para resistência.

“O enfraquecimento da democracia se dá não só pela existência de autocratas nas esferas do poder executivo, mas também por pessoas que percorrem caminhos institucionais – não só políticos, mas dos órgãos de controle em geral, que possuem o manto da legalidade e da legitimidade – e corroem por dentro a essência do ambiente democrático.”

Aline Gonçalves de Souza, pesquisadora da Coordenadoria de Pesquisa Jurídica Aplicada da FGV Direito SP, que mediou o debate entre os palestrantes deste painel, ressaltou que, assim como há diversidade no campo das organizações, também há na administração pública e nos órgãos de controle. Aline contou sobre a iniciativa que existe há mais de 4 anos na escola, denominada “Diálogo Paulista entre órgãos de controle e organizações da sociedade civil”. Organizado pela CPJA da FGV Direito SP, pela Associação Paulista de Fundações e pelo Conselho Nacional de Controle Interno, trata-se de um fórum plural que reúne gestores públicos e privados em um ambiente propositivo para gerar uma melhor ambiência para a atuação das organizações e de suas parcerias com o Estado.

Debate além das normas

Para Daniel Teixeira, do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), a discussão acerca do ambiente legal impõe um debate que vai além desses marcos: “O que vemos é que, na prática, as narrativas tem valido mais do que as próprias leis”, esclareceu.

“A sociedade civil não é homogênea. De que sociedade civil estamos falando, principalmente quando falamos de sustentabilidade e exposição a essas ações persecutórias? Esse é um debate, por exemplo, que precisa considerar o genocídio de jovens negros no Brasil – para mim, a violação mais grave do país, sobre a qual não se discute justamente porque se tratam de jovens negros. Sobre quem esse peso está sendo constantemente empregado? Fazer esse debate é fundamental para pensar o fortalecimento do ambiente legal para a atuação da sociedade civil brasileira”.

Daniel deu exemplos de utilização de instrumentos jurídicos que podem auxiliar para garantir os direitos civis, com é o caso de Ação Civil Pública, Ação Popular e outras.

 

 


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