As fundações têm mais poder hoje em dia?

Por: GIFE| Notícias| 16/10/2013

Em 8 de julho os membros do Grupo de Trabalho sobre Justiça Social e Paz organizaram um seminário virtual para falar sobre poder e filantropia. Ao que parece, esse assunto não é muito discutido. “A questão do poder na filantropia parece um elefante branco” disse um dos participantes. “Nós falamos muito pouco sobre poder na filantropia” disse outro. Uma questão particularmente interessante que foi levantada foi a relação entre poder e visibilidade: a maior visibilidade das fundações significa mais poder? Ou o maior poder vem de uma queda relativa no poder das outras instituições? Esse artigo não é um artigo pronto com começo, meio e fim, mas sim alguns trechos de uma conversa fascinante entre um grupo de pessoas que se conhecem bem e pensam muito sobre esse assunto.

Chegando ao fim de sua vida de trabalho, disse Stephen Pittam, que se aposentou recentemente do fundo filantrópico Joseph Rowntree Charitable Trust (JCRT), dando início à conversa, ele “se sentia menos à vontade de estar envolvido com filantropia”. Ao começar, na década de 1980, ele disse, o poder da filantropia não era conhecido. Embora doadores como o JRCT sempre fossem transparentes sobre suas doações, eles não necessariamente buscavam o reconhecimento público de seu papel. “Nós publicávamos informações sobre todas as doações””, ele disse, “”mas poucos beneficiários sabiam de onde o dinheiro vinha. Não esperávamos que soubessem e eles raramente sabiam. Eram as pessoas que financiávamos que sabiam o que precisava acontecer, mostravam suas perspectivas e lutavam pela mudança e o que importava não era o dinheiro. Quando eu saí, todos queriam usar a marca da fundação que os apoiava, quase que para dar credibilidade ao trabalho. Eu me sentia cada vez mais desconfortável com aquilo – o poder do dinheiro tinha virado o mais importante”.

A maior visibilidade significa maior poder?
A discussão deixou claro que há outras interpretações sobre o porquê de as fundações terem se tornado mais visíveis como instituições. O mais óbvio tem a ver com a prestação de contas e o crescente desafio para a filantropia se tornar mais visível, de modo que a sociedade possa entender para onde vai todo esse dinheiro. Para enfrentar esse desafio, as fundações precisam ter maior visibilidade em relação o que estão financiando e por que estão financiando isso. Outra explicação possível para a maior visibilidade é a forma como as fundações tendem a funcionar hoje que, de muitas formas, é bastante diferente de como funcionavan nos anos 1980. Essa diferença inclui a mudança para a filantropia corporativa (venture philanthropy), filantropia estratégica, filantropia catalisadora e assim por diante, todas envolvendo um papel para o financiador maior do que aquele do doador tradicional.

Atallah Kuttab da SAANED para Aconselhamento Filantrópico foi um que viu um estreito vínculo entre visibilidade e prestação de contas. Ele disse que, como doador, sempre viu a visibilidade com bons olhos. Ele “nunca se sentiu à vontade em dar dinheiro e ficar às escondidas. A visibilidade significava que eu faço parte da agenda, eu estou em campo, é uma parceria, é uma colaboração. Se isso é poder, então que seja. Eu usava o poder da doação para influenciar as agendas sociais nas sociedades onde eu trabalhava”.

Halima Mahomed da TrustAfrica tem outra interpretação de visibilidade considerando-a, pelo menos em alguns casos, tão relacionada ao uso de marcas quanto à prestação de contas e transparência. “Nós diferentes tipos de instituições filantrópicas começarem a ter necessidade de criar e desenvolver uma marca – e a forma como isso tem sido feito nem sempre tem consequências positivas”. Ela considera isso como “quase uma corporização da filantropia”.

Ana Criquillion, fundadora do Fundo das Mulheres Centro-Americanas, na Nicarágua, enfatizou as diferenças entre as fundações privadas e as públicas. “Como uma fundação pública, quando você precisa levantar fundos para sua doação você precisa compartilhar o poder com os outros, com seus doadores. Isso não significa necessariamente que você terá que prestar mais contas, mas muito provavelmente terá. E a questão do poder ainda persiste em termos de participação na tomada de decisões: até que ponto você pode e deve permitir que seus parceiros beneficiários e os movimentos sociais que você apoia tomem decisões sobre o tipo de programa que você deve desenvolver e o tipo de doação que você deve fazer é um desafio para essa relação de poder. Eu acho que as fundações privadas enfrentam mais dificuldades do que as fundações públicas para ir nessa direção”.

A filantropia em relação a outras instituições
Se for verdade que o poder da filantropia aumentou, isso se deve em parte à extinção do poder de outras instituições, especialmente do Estado, disse Stephen Pittam. “Se você tem um Estado fraco e a base tributária está sendo erodida, então há um vínculo inevitável entre o aumento do poder da filantropia e a redução do poder do Estado? Isso importa? A mim parece que apenas o Estado tem poder real para mudar fundamentalmente as injustiças e as desigualdades que temos”.

Houve um sentimento geral que perguntas desse tipo fazem muito sentido se estivermos considerando um país democrático ocidental, onde está ocorrendo a erosão do Estado. Mas se considerarmos os protestos no Brasil, podemos ver duas coisas acontecendo: a classe média está indo às ruas e exigindo diversos serviços de seu governo, além de menos corrupção e redução da violência para a sociedade como um todo, algo que poderia ter sido previsto no surgimento da classe média. Ao mesmo tempo, você vê um grande aumento nos esforços filantrópicos no Brasil, com as fundações empresariais fazendo muito mais, muitos indivíduos ricos prontos para fazer parceria com o Estado para disponibilizar os serviços, além do desenvolvimento de fundações de direitos humanos. A questão aqui parece não ter muito a ver com as relações entre o Estado e a filantropia, mas sim com como a filantropia surge e responde às demandas cívicas de um Estado.

Antes de abordar essa questão, Barry Knight da Centris fez referência a “três relações de poder críticas” comuns às fundações. “Poder é um termo neutro”, ele disse, “que significa “capaz de fazer coisas””. Mas ele não acontece no vácuo. Trata-se de um conceito essencialmente relacional: você tem poder em relação a algo ou alguém””. Em sua relação com o mundo externo e o Estado e a comunidade empresarial, ele prosseguiu, “as fundações estão em uma relação no modo de espera e comparativamente mais fraca”. Em relação aos beneficiários “sua relação de poder é muito forte”. A terceira relação é com outras organizações filantrópicas. “O que aconteceu foi um grande entusiasmo com uma parceria. O que se tornou muito importante é que as filantropias concorriam entre si ao invés de cooperar umas com as outras. As pessoas classificam umas às outras de acordo com o tamanho do orçamento, etc.”.

Knight acredita que a maioria das fundações se sente impotente em relação às questões do dia a dia. “Mas precisamos mudar isso – a filantropia é uma das fontes de dinheiro gratuitas que pode mudar as coisas. Precisamos chegar a um ponto onde a sociedade civil seja, no mínimo, tão importante quanto o Estado para fazer as coisas. Todo o progresso civil dependia da sociedade civil. Nós precisamos de um banco de três pernas onde haja o devido equilíbrio entre sociedade civil, o Estado e o empresariado. A filantropia desempenha o papel de ver todos esses elementos de uma forma balanceada”.

Segundo o coordenador da Rede Filantropia para Justiça Social e Paz, Chandrika Sahai, na África os profissionais de filantropia da justiça têm articulado o papel da filantropia como uma ponte ou um agente entre o Estado e a sociedade civil, ao invés de substituta do papel do Estado de prestar serviços. “Então não temos propósitos cruzados com a agenda da justiça social”.

Suzanne Siskel da Fundação Ásia acredita firmemente que a filantropia não tenha tanto poder por si mesma, mas tem grande poder quando pode trabalhar com outras instituições e não se julga o centro das atenções (outra faceta da questão da visibilidade: a sugestão que ser mais visível diminuiria o poder das fundações). É importante falar sobre o contexto para a filantropia e a liberdade relativa que existe. “Quando você tem dinheiro livre, seja você um indivíduo, uma organização ou um oficial de programa em uma organização, você acorda de manhã e acha que pode mudar o mundo. Isso dá uma falsa sensação de poder, mas não vai muito longe, a menos que você retome as formas como a filantropia se relaciona com outros tipos de instituições”.

Na questão do poder, o tamanho é relevante?
É possível ter tanto poder concentrado em poucas mãos? O poder é relativo ao contexto em que nos encontramos? O poder em uma Fundação Ford ou Gates significa algo diferente do que em um fundo de filantropia como o Joseph Rowntree Charitable Trust?

“Não há uma resposta direta””, disse Halima Mahomed. “Em um nível, a forma como uma instituição filantrópica gerencia o poder que tem não precisa ser um fator de tamanho. Trata-se de um fator de orientação, de valor, de ideologia, de origem e de como ela entende o papel que deve desempenhar na sociedade. Por outro lado, sabemos que os grandes fundos têm a habilidade de serem grandes agentes de mudança no jogo”. Isso pode ser tanto positivo quanto negativo, Mahomed continuou. “Podemos observar uma distorção quando um grande financiador coloca uma grande quantidade de dinheiro em uma questão. Isso pode levantar a questão de uma forma que nunca foi levantada antes e atrair a atenção para ela. Isso pode marginalizar outras questões que também são importantes. E também pode desviar a conversa: uma determinada solução pode ser considerada a solução, sem debate suficiente. Surge um problema quando há poder e riqueza e não há prestação de contas. Assim, a questão é o que você faz com o poder”.

Stephen Pittam fez uma observação semelhante. Você não precisa ser grande para causar impacto, ele disse. “Mas eu vi muito exemplos onde, quando você é grande e tem muito dinheiro, você inevitavelmente dita as agendas, já se você for pequeno você não pode fazer isso. Se você for grande, você pode criar um círculo interno e um externo: aqueles com quem você trabalha e aqueles com quem você não trabalha. Você pode inflacionar os salários nos setores de ONG. O tamanho sempre importa – mas o poder nem sempre é negativo. Nessa conversa, estamos presumindo que o poder seja negativo. Às vezes ele é positivo – tudo depende do uso que fazemos dele””.

Chandrika Sahai nos lembrou de um poder que as pequenas fundações realmente têm: o poder de dizer não e continuar fiel a seus valores. “Mesmo uma fundação pequena, que não seja patrimonial e que dependa dos grandes doadores do Norte, pode exercer o poder de dizer não se os doadores não atenderem à sua agenda de valores”.

Por fim, Ana Criquillion advertiu sobre a generalização: “não se pode generalizar coisa alguma. Um fundo de mulheres na Nicarágua pode se sentir poderoso porque tem um determinado valor para usar para fazer mudanças na sociedade e, ao mesmo tempo, pode se sentir impotente no tipo de relação que deseja alcançar com outros doadores, no questionamento da agenda estabelecida pelo Norte que não leva em consideração as necessidades daqui. Mesmo nos EUA você tem algumas instituições filantrópicas que também dependem de outros doadores que, por sua vez, têm poder sobre elas. É importante questionar e mostrar as relações de poder, onde quer que elas estejam”.

Há um discurso unificado sobre poder no Norte e no Sul?
Segundo Atallah Kuttab: “via de regra, há semelhanças nos discursos, simplesmente porque os filantropos no Sul copiam muito do que acontece no Norte. Eles consideram o Norte como um ponto de referência, a despeito de estarem dando duro para olhar para eles mesmos e descobrir como podemos fazer as coisas de forma diferente. Algumas palavras de ordem estão pegando em nossa região (filantropia catalisadora, etc.). O fato de o Sul copiar o Norte em vários discursos dá ao Norte um poder repentino. E, infelizmente, essa cópia autoimposta não nos dá espaço para descobrirmos nossos próprios discursos”.

“Ainda assim, o contexto para filantropia é muito diferente. As nossas reuniões conjuntas da região africana e árabe realizadas no Cairo e em Johanesburgo deixam claro que as pessoas acham que a filantropia tem que ter uma agenda política. Nós não temos fundações em crise. As fundações acham que têm que ter agendas sociais, diferentemente do Norte, onde os filantropos às vezes são reativos a essas agendas, preferindo a imparcialidade. Essa é uma diferença que precisamos buscar e enfatizar”.

Ana Criquillion
“Um fundo de mulheres na Nicarágua pode, ao mesmo tempo, se sentir poderoso porque tem fundos e impotente no tipo de relação que quer com outros doadores””.

Barry Knight
“De repente as filantropias começaram a concorrer entre si ao invés de colaborar. As pessoas classificam umas às outras de acordo com o tamanho do orçamento, etc.”.

Atallah Kuttab
“Eu nunca me senti à vontade em dar dinheiro e ficar às escondidas. A visibilidade significava que eu fazia parte da agenda, que eu estava em campo”.

Halima Mahomed
“Nós estamos vendo a necessidade de criar e desenvolver uma marca – e a forma como isso tem sido feito nem sempre tem consequências positivas”.

Stephen Pittam
“Todo mundo queria usar a marca da fundação, quase para dar credibilidade ao trabalho. Eu me senti cada vez mais desconfortável com isso”.

Chandrika Sahai
“Mesmo uma fundação pequena, que não seja patrimonial e que dependa dos grandes doadores do Norte, pode exercer o poder de dizer não se os doadores não atenderem à sua agenda de valores”.

Suzanne Siskel
“Quando você tem dinheiro livre, você acorda de manhã e acha que pode mudar o mundo. Isso gera uma falsa sensação de poder”.

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