“As novas tecnologias não substituem o braille”, diz Regina Oliveira, da Fundação Dorina Nowill

Por: Fundação FEAC| Notícias| 30/01/2023
Dia Internacional do Braille

O sistema braille foi criado há quase 200 anos, em 1825, e segue sendo fundamental à inclusão e alfabetização das pessoas cegas ou com baixa visão.

O dia 2 de janeiro de 2023 já é um marco na luta por uma educação inclusiva no país. Nessa data, o recém-empossado governo federal revogou o decreto de 2020 que tinha autorizado a volta das salas especiais para crianças com deficiência no sistema de ensino.

A revogação do decreto é uma correção de rota no rumo das políticas para pessoas com deficiência no Brasil, alinhadas com a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), uma das legislações mais avançadas no que diz respeito à garantia dos direitos das pessoas com deficiência.

“É necessário que o tema inclusão esteja sempre em pauta, para que a sociedade compreenda que não se trata de favor ou opção, mas de um direito estabelecido. E que as pessoas com deficiência se apropriem desse fato e reivindiquem seus direitos”, diz Viviane Machado, da Fundação FEAC, instituição que apoia financeiramente projetos que focam em promover inclusão e acessibilidade a pessoas com deficiência.

Desafios da alfabetização em braille no país

No mês em que se comemora o Dia Internacional do Braille (4/1), vale destacar as dificuldades que ainda hoje a população cega enfrenta para se alfabetizar no sistema natural de escrita e leitura para cegos, que é o braille. Atualmente, no Brasil, existem 6,5 milhões de pessoas com deficiência visual severa, sendo que 506 mil têm perda total da visão (0,3% da população) e 6 milhões, grande dificuldade para enxergar (3,2%).

O sistema braille foi criado há quase 200 anos, em 1825, e segue sendo fundamental à inclusão e alfabetização das pessoas cegas ou com baixa visão. “As novas tecnologias são importantíssimas, são grandes aliadas na educação das pessoas cegas, mas existe a ideia equivocada de que com elas o braille pode ser substituído. Isso não existe”, alerta Regina Oliveira, 69 anos, que perdeu a visão aos 7, foi alfabetizada em braille e trabalha desde 1975 na Fundação Dorina Nowill para Cegos, em São Paulo.

Regina Oliveira, coordenadora de revisão de Braille da Fundação Dorina Nowill

“Uma criança que nasce cega ou que perde a visão na infância precisa ser alfabetizada em braille, aprender a ortografia e a simbologia das diversas áreas. Afinal, as crianças que enxergam continuam sendo alfabetizadas com a escrita. Não adianta você se iludir e achar que se entregar ao seu filho cego um computador e recursos tecnológicos ele vai ser alfabetizado”, pondera. “O que ocorre hoje é que muitos chegam na idade adulta sem ter o contato natural com a escrita e com a leitura. Tornam-se analfabetos funcionais”, diz Regina.

Apenas 2% da produção editorial é transcrita para o braille

Atualmente, Regina atua como coordenadora de revisão de Braille da Dorina Nowill, chefiando uma equipe que transcreve livros didáticos para o braille, obras que são distribuídas pelo governo federal às escolas públicas.

Ela ensina que mesmo com todos os recursos tecnológicos disponíveis, a produção do braille ainda é muito mais lenta: para cada página em tinta serão geradas três páginas em braille. Por isso, os livros ficam grandes e volumosos.

Segundo a União Mundial de Cegos – que representa aproximadamente 253 milhões de pessoas com deficiência visual de organizações em mais de 190 países -, cerca de 5% das obras literárias no mundo são transcritas para braille. Isso nos países desenvolvidos. No Brasil, estima-se que 1% a 2% do que é produzido no mercado editorial é traduzido para o braille.

“E aí entra a importância da tecnologia assistiva, desses displays e linhas Braille [também conhecido como braille sem papel], porque você pode armazenar de uma maneira muito mais fácil. A pessoa pode transportar tudo isso, pode também ir a uma biblioteca que tenha esses dispositivos para que ela possa acessar outros conteúdos”, diz Regina. (Leia mais no box).

Profissionais preparados para transcrever e ensinar

A oferta de profissionais preparados para esse trabalho de transcrição, principalmente quando se trata de livros didáticos, também é limitada. “Os livros são muito visuais, têm muitos mapas e ilustrações, em que as informações não verbais são maiores que a informação verbal. Transformar estas informações visuais em informações táteis, seja reproduzindo as imagens em relevo ou fazendo a descrição, ainda é um trabalho muito difícil”, explica Regina.

“Em geografia e história, no ensino médio, você precisa ter profissionais que conheçam as disciplinas. Essa é uma grande dificuldade na formação de profissionais. Temos pessoas que aprendem o sistema braille e podem transcrever um livro de literatura, mas quando se trata de um livro didático é mais difícil”, completa.

Regina aponta que os programas e softwares que fazem a conversão são importantes no apoio da produção desses livros, “mas para que o livro possa passar para o aluno cego as informações e a experiência que transmite para o aluno que enxerga, ainda é necessário ter pessoas que entendam daquele assunto”, pondera ela.

Autores de livros didáticos têm de considerar diversidades

Para Regina, na questão dos livros didáticos, é importante que os autores destas obras também busquem conhecer a realidade das pessoas com deficiência visual – e isso vale para todas as áreas de deficiência – para que na hora que eles produzam os seus livros eles saibam que não estão escrevendo para um público sem nenhuma dificuldade. “Eles têm de considerar as diversidades no momento de produzir os seus livros.

Se os autores já produzissem os livros que trouxessem informações textuais que complementassem de fato o que está nas imagens já ajudaria bastante”, sugere.

Outra questão importante, e aí compete ao governo, é entender que mesmo tendo tantas tecnologias a produção de livros em braille é mais demorada. Logo, para que o material esteja nas mãos dos alunos no início do ano letivo, a sua produção tem de começar bem antes que o livro impresso em tinta.

“Os livros começam a ser produzidos em janeiro. Até que eles cheguem nas escolas o ano letivo já está avançado. E seria importante que as próprias famílias fossem conscientizadas do quanto o braille é importante na alfabetização das crianças com deficiência visual”, aponta Regina.

“O braille é importante para a alfabetização, dá independência, dá autonomia. Seja no consumo de cosméticos, medicamentos ou alimentos, para entrar em um elevador com segurança, receber contas, extratos bancários ou faturas de cartão de crédito. Tem aplicação na vida das pessoas cegas em todos os momentos”, conclui.

“Quando não pude mais ler com os olhos, aprendi o braille”

Moradora do município de Duartina, no interior de São Paulo, a farmacêutica Daniela Reis Frontera, 49 anos, foi diagnosticada com Retinose Pigmentar aos 23. Trata-se de uma doença degenerativa das retinas que causa, pouco a pouco, a perda total de visão. Já formada no curso de Farmácia, no município de Bauru, Daniela buscou se adaptar à medida que o seu campo visual ia diminuindo.

Daniela foi diagnosticada com Retinose Pigmentar aos 23 anos.

“Até os 34 anos ainda dirigia. Depois parei e não conseguia me locomover com segurança. O campo visual vai diminuindo e você perde noção do espaço. Se você não tiver um auxílio e uma acessibilidade você se machuca”, conta Daniela.

Hoje proprietária de quatro farmácias de manipulação, para-atleta e palestrante, Daniela também ensina o braille através de uma plataforma on-line. “Quando eu percebi que não conseguia mais ler com os olhos eu quis aprender o braille. E eu me apaixonei pelo braille”, diz Daniela. Ela se alfabetizou no sistema de escrita e leitura com uma professora de Bauru e passou a lecionar para crianças de sua cidade em uma sala cedida pela prefeitura.  

Enxergando o futuro: braille on-line

Com a pandemia, criou com um amigo uma plataforma on-line para seguir com as aulas. Deu tão certo que de 10 a 12 alunos, em três meses ela passou a ter mais de cem, inclusive pessoas que enxergam e que gostariam de aprender o braille. Diante da demanda, ela criou o projeto Enxergando o futuro com a ponta dos dedos, que teve apoio de empresários e comerciantes locais e hoje é destinado apenas a pessoas com deficiência visual.

“Nós não temos número suficiente de profissionais capacitados no braille para atender a demanda”, conta Daniela, que demorou cerca de um ano para encontrar na região uma professora que pudesse ensiná-la. “E mesmo em cidades maiores, as instituições que oferecem o ensino têm longas filas de espera”.

Os três pilares da autonomia

Daniela defende que a pessoa com deficiência visual precisa trabalhar com três pilares fundamentais para ter autonomia: o braille, a tecnologia assistiva e a mobilidade. “Por que se a tecnologia te deixar na mão, como você faz? A internet pode falhar e aí você não consegue fazer nada”.

Para ela, quem é cego ou tem baixa visão tem de saber o braille. “Não consegue ler com os olhos tem de ler com os dedos. E tem de ouvir com a tecnologia. Aqui em casa eu não fico lendo livros em braille o tempo todo, mas o braille facilita a vida da gente. Eu rotulo as coisas em braille e aí passo o dedo e sei o que é. Uma pasta de documento, uma cor de blusa no cabide, um condimento, você não precisa ficar toda hora chamando, apontando a câmera. Te dá autonomia”.

Educação com acessibilidade tecnológica e pedagógica

O papel estratégico da tecnologia assistiva é justamente diversificar e qualificar o acesso, assegurando plenos direitos às pessoas com deficiência. Viviane Machado, da FEAC, acentua que esse é um dever de toda sociedade. “Para garantir o direito da pessoa com deficiência, cabe à sociedade buscar conhecimento e ofertar as ferramentas de acessibilidade e o apoio necessários e adequados para seu desenvolvimento”, afirma.

É o caso do projeto Equali-EJA, uma parceria da Guardinha Campinas com o Sesi-SP, fomentada pela Fundação FEAC. O objetivo é a alfabetização de jovens e adultos com deficiência, assegurando uma educação inclusiva, equitativa e de qualidade. A proposta prevê a adaptação dos materiais, metodologia e espaço físico, para atender as especificidades do público, de modo a tornar os recursos pedagógicos e tecnológicos acessíveis na execução dos Programas de Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Ainda há vagas para cursos certificados pelo Sesi

O projeto nasceu da constatação, pela Guardinha e a rede assistencial do município de Campinas, de que há defasagem na escolaridade deste público tanto na alfabetização, quanto no Fundamental 2 e Ensino Médio, o que se torna um empecilho na empregabilidade dessas pessoas.

“Vamos utilizar toda metodologia e a expertise do SESI nessa área e montar a nossa metodologia específica para o público com deficiência. E eles vão ser certificados oficialmente pelo Sesi”, explica a pedagoga e coordenadora do projeto, Amanda Cristina Fabri Donadon Pedrini, que atua como coordenadora técnica de Proteção Social Básica e Aprendizagem Profissional da Guardinha Campinas.

Estão previstas 100 vagas em dois cursos presenciais, um iniciando agora, em fevereiro, e o outro em julho. Mais informações:

Por Natália Rangel

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