Com apoio da FEAC, projeto usa jogos para trabalhar situações de violência com crianças

Por: Fundação FEAC| Notícias| 30/10/2023
Com apoio da FEAC, projeto usa jogos para trabalhar situações de violência com crianças

Novo Amanhecer/CPTI

Falar sobre temas sensíveis nunca é fácil. No caso de situações de violência envolvendo crianças e adolescentes, então, é preciso um cuidado redobrado. Mas, existe um jeito de trabalhar essa questão sem revitimizar, criar traumas e despertar gatilhos?

É nesse contexto que surge o Projeto Novo Amanhecer, realizado pelo Centro Promocional Tia Ileide (CPTI), em parceria com a Fundação FEAC. Ele é fruto de uma demanda do serviço de proteção especial de média complexidade – que tem como foco atendimento a famílias e pessoas com direitos violados, mas cujos vínculos familiares não foram rompidos. A iniciativa propõe uma metodologia inovadora para abordar os tipos de violência aos quais crianças e adolescentes estão sujeitos, com a oferta de seis diferentes jogos e de uma oficina, chamada de oito sentidos.

“O projeto Novo Amanhecer nessa nova edição traz como objetivo instrumentalizar os profissionais da rede de atendimento para um trabalho na prevenção, abordando temas como estruturas sociais, autoproteção e na proteção, acolhida e encaminhamento de casos. Essas tecnologias deverão incorporar o cotidiano dos profissionais mesmo após o projeto se encerrar, o que faz do projeto inovador, trazendo conteúdos práticos e reaplicáveis nos diferentes contextos de atendimento”, reforça Natália Valente, especialista em violências da Fundação FEAC.

Inicialmente, o foco era a violência sexual, que, segundo Thiago Lusvardi, coordenador do projeto, sempre foi significativa. No Brasil, entre 2015 e 2021, foram notificados 202.948 casos deste tipo de violência contra crianças e adolescentes no Brasil, de acordo com boletim da OMS.

“Nós percebíamos que, para além do trabalho na superação dessas situações de violência, era necessário também um projeto que buscasse conscientizar e informar as próprias crianças, dentro de uma linguagem que fosse acessível para elas”, conta o coordenador.

No entanto, o projeto foi se expandindo e entendendo a necessidade de contemplar outros tipos de violência, que são tão latentes quanto e permeiam outras estruturas da sociedade. Tudo isso, claro, sem perder de vista a perspectiva lúdica e o público jovem.

Ao levar conhecimento por meio de uma metodologia delicada e da releitura de brincadeiras infantis, os jovens passam a entender os diferentes mecanismos que compõe os serviços públicos de atendimento, nos quais podem buscar ajuda e garantia de seus direitos em caso de exposição a contextos de violência.

Além disso, é muito comum que alguns deles se identifiquem com situações retratadas nas dinâmicas. Por isso, ao final de cada atividade os participantes se organizam em roda, juntamente dos profissionais, para discutir e tirar dúvidas sobre o tema. Em determinados casos, esse diálogo e acolhimento pode vir de forma mais particularizada, para não expor a criança e o adolescente.

“Algumas pessoas acabam ficando um pouco mais mexidas, e a gente entende que alguma coisa pode estar acontecendo. Por isso, é importante esse diálogo após o jogo. É o mínimo, uma vez que você mexe com algumas situações delicadas”, enfatiza o coordenador.

Aplicação de jogos no enfrentamento às violências

Alguns jogos foram adaptados para o desenvolvimento das dinâmicas, que buscam informar e ressignificar os traumas sofridos. São eles:

Jogo da memória – Brincadeira atemporal e popular entre as crianças, segue as regras tradicionais. O jogador tem de encontrar duas figuras que combinem entre si. Com a diferença que as cartas trazem informações sobre diferentes tipos de violências. Após a dinâmica, uma roda de diálogo desempenha papel essencial nesse processo de identificação, acolhimento e busca por ajuda.

Quem sou eu? – Trabalha os estereótipos. O participante precisa escolher palavras para definir a figura que tirou na carta, relacionada a questões raciais, de gênero, LGBTfobia, capitalismo e patriarcado.

Escutando vozes – Traz relatos de situações de violência e sete personagens bastante caricatos. Cada adolescente recebe um desses balões de fala e precisa identificar quem disse aquilo e por qual motivo ele acha isso. Os estereótipos são problematizados a fim de gerar reflexão.

Linha do tempo – Jogo estruturado com gênero, raça e direitos da criança e do adolescente. No tabuleiro, marcas ao longo dos anos representam os principais acontecimentos históricos daquele tema e os avanços em termos de direitos.

Desvendando – Na forma de um tabuleiro humano, jovens exercem o papel de detetive e tentam descobrir qual personagem foi agredido, por quem, qual a violência sofrida e onde ocorreu o crime. O jogo estimula a discussão sobre os fluxos de atendimento à criança vítima de violência. Thiago explica que a ideia é pensar “ok, a gente descobriu a violência, mas e agora? O que a gente faz? Quais são os serviços e canais disponíveis para denúncia?”.

Cyberbullying – Aborda os tipos de violências sofridas no ambiente virtual.

Encontro dos oito sentidos – É uma oficina que explora a forma como nos relacionamos e percebemos o mundo por meio dos seguintes sentidos: visão, audição, olfato, paladar, tato, pele, equilíbrio e intuição. O objetivo é explorar sentido a sentido, percebendo que uma mesma questão impacta duas pessoas de forma distinta. É um exercício de sensibilidade e de se colocar no lugar do outro.

“Entendemos que essas tecnologias que a gente construiu são um jeito respeitoso e ao mesmo tempo leve de falar de um tema extremamente necessário. Mas por que não dizer isso também para os profissionais?”, indaga Thiago Lusvardi, coordenador do projeto.

Quarta edição do projeto busca capacitar profissionais

Em abril de 2023, surgiu a quarta etapa do projeto, que possui caráter formativo e busca democratizar essas tecnologias sociais, estendendo-as a outros profissionais que trabalham diretamente com crianças e adolescentes e têm, em seu compromisso ético e político, o enfrentamento às situações de violência como uma prioridade.

Adriana Schwarz, agente de ação social no Centro de Referência de Assistência Social (Cras), e Lenny Freire, agente de saúde no Centro de Saúde Jardim Rosália, tiveram a oportunidade de participar da nova edição do projeto. Adriana foi a dois encontros, em agosto e setembro. Apesar de não trabalhar diretamente com crianças, os jogos a auxiliaram na abordagem do assunto com os adultos que atende. “Eu achei que as dinâmicas dos jogos abordam temas delicados, mas essa forma lúdica quebra aquele impacto do tema que você está tratando”, explica a agente social.

Por ser uma área de seu interesse, já tinha participado de outros cursos similares e entende a importância da conscientização sobre o tema. “Fica um pouco mais leve para conversar sobre isso e, mesmo sendo voltado para crianças e adolescentes, dá para ser feito com um público adulto, para as famílias”, conta.

Lenny acha que a dinâmica também serviu para aguçar o olhar para as violências. Diferentemente de Adriana, a temática faz parte do seu dia a dia na unidade de saúde. Ela conta que, às vezes, falta um olhar mais profundo ou uma visão diferenciada, e que pode deixar escapar algum ponto importante. “Não que não saibamos sobre o assunto, mas a rotina nos condiciona a esse olhar mais restrito. Acabamos focando no que é mais evidente, que é o abuso em si, mas existem outras sutilezas, que não deixam de ser uma violência”, relata.

Para ela, o projeto foi bastante útil para sua prática diária no trabalho e no modo de lidar com os diferentes casos que aparecem. “Às vezes, um detalhe é importante para você identificar uma situação que não é verbalizada por medo ou por outras questões”, diz. O Novo Amanhecer traz à tona uma sensibilidade necessária nesses atendimentos, para que nada passe despercebido. “Como nós podemos poupar as vítimas e os familiares? De que forma a gente lida com isso para que as violências não se repitam? A iniciativa traz essas respostas”, complementa.

Muitas crianças, ao longo do processo traumático que é sofrer uma violência, enfrentam as consequências disso sozinhas e acabam alimentando sentimentos de culpa, medo e vergonha. A proposta do projeto é aliviar um pouco esse peso. “Eu acredito que, quando a criança participa dessas dinâmicas e se identifica em uma situação dentro do jogo, isso a ajuda a compreender melhor o que aconteceu. Com menos dor e mais clareza”, explica Adriana.

Parceria com a Fundação Casa expande horizontes

Em 2022, o Projeto Novo Amanhecer começou o processo de formalização de uma parceria com a Fundação Casa. Esse trabalho em conjunto tem o objetivo de levar a metodologia a novos espaços e públicos, trazendo impactos reais aos contextos de violências.

“Na Fundação Casa, eu fico muito em dúvida se o impacto é maior com os adolescentes ou com os profissionais”, diz o coordenador. Ele nota que existe uma certa dificuldade para tratar sobre o assunto, mas entende que esses jovens estão diretamente inseridas em situações de violência e que isso demanda muita energia de desconstrução.

“Poder falar sobre isso vem como uma outra possibilidade que aquele espaço tem oferecido para eles, mas é um desafio o trabalho com os profissionais. De garantir, inclusive, que eles consigam fazer uma discussão de acordo com a proposta e com o compromisso ético e político do projeto”, observa Thiago. As rodas de formação têm acontecido em um encontro mensal, na região dos Amarais, em Campinas.

Por Bárbara Vetos

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