Cotas: permanência na universidade e acesso a empregos ainda são desafios

Por: Fundação FEAC| Notícias| 12/09/2022

Lei de Cotas ampliou o acesso da população negra e indígena às universidades. Crédito: Agência Brasil

Antes da aprovação da lei federal nº 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas, o movimento propondo políticas de ações afirmativas já vinha ganhando espaços em diversas universidades públicas.

O primeiro vestibular com recorte socioeconômico e racial foi realizado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), em 2002. Nesse mesmo ano, a Universidade do Estado da Bahia (Uneb) também fez o mesmo. Dois anos depois, a Universidade de Brasília (UnB) foi a pioneira entre as universidades federais a adotar cotas.

Essas iniciativas foram seguidas por outras universidades públicas, mas não sem resistência. Em 2009, uma ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF), questionava a constitucionalidade dessas ações afirmativas e sua eficácia e legalidade. Em uma vitória histórica dos movimentos sociais que defendiam as cotas, em 2012 o STF reconheceu por unanimidade a validade dessas políticas. 

“As iniciativas autônomas de 20 anos atrás foram importantes nessa luta, mas com a Lei de Cotas as ações afirmativas ganham escala”, afirma Vilma Reis, socióloga, professora e ouvidora da Defensoria Pública da Bahia, entrevistada do especial FEAC Debate, que discute os dez anos da Lei de Cotas no país.

“Enfrentamos uma oposição forte, especialmente de partidos como o Democratas (DEM, atual União Brasil), contestando a constitucionalidade das cotas. Uma oposição que vencemos com o julgamento histórico no Supremo Tribunal Federal (STF), que impôs uma derrota de dez votos a zero aos que contestavam as cotas”.


Quais foram os principais avanços trazidos pela Lei de Cotas?

Vilma Reis – Com essa lei, a gente conseguiu mudar o panorama das universidades brasileiras. Antes dela, a universidade era majoritariamente branca e dominada pelos segmentos de classe média e média alta. Mas é preciso registrar que a mudança desse contexto começou há 20 anos, portanto uma década antes da lei. Os primeiros vestibulares com ações afirmativas foram feitos em 2002, pela Uerj, no Rio de Janeiro, e pela Uneb, na Bahia.

Precisamos de dez anos para que as cotas fossem institucionalizadas com a lei federal nº 12.711/2012. Enfrentamos uma oposição forte, especialmente de partidos como o Democratas (DEM, atual União Brasil), contestando a constitucionalidade das cotas. Uma oposição que vencemos com o julgamento histórico no Supremo Tribunal Federal (STF), que impôs uma derrota de dez votos a zero aos que contestavam as cotas.

Mas foi preciso também enfrentar teses conservadoras que diziam que os cotistas teriam baixo desempenho ao chegar à universidade, por não estarem preparados, ou que haveria uma alta taxa de evasão. E o que se provou, com o crescente número de alunos cotistas incorporados à universidade durante esses últimos dez anos, foi justamente o contrário.

Diversos estudos mostram que eles têm o mesmo desempenho de estudantes de classe média, ou até o superam. Observa-se o mesmo em relação às taxas de evasão. Os cotistas são os que menos evadem. Eles encaram essa vaga como muito importante. Afinal, para muitas famílias negras, esse estudante é o primeiro a chegar a uma universidade. Eles persistem, mesmo não tendo o apoio necessário de políticas de permanência.

Que outras conquistas você destacaria?

Vilma Reis – Outro avanço significativo que vejo é que a sociedade está recebendo, após esses 10 anos da Lei de Cotas, gerações de jovens que se formaram graças a essas políticas afirmativas e que podem colocar em prática mudanças reais no atendimento à população.

Um bom exemplo é a questão do Marco Temporal em relação às terras indígenas, que está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF). Pela primeira vez, vimos uma bancada de jovens juristas indígenas defendendo os direitos de seu povo. E isso só foi possível graças às cotas que abriram as universidades para que eles se formassem.

Da mesma forma, acredito que a nova geração de psicólogos, médicos, engenheiros formados pelas leis de cotas podem fazer diferença no atendimento de nosso povo empobrecido, periférico. Creio que esse é um impacto monumental da Lei de Cotas no Brasil. As iniciativas autônomas de 20 anos atrás foram importantes nessa luta, mas com a Lei de Cotas as ações afirmativas ganham escala.

“Pela primeira vez, vimos uma bancada de jovens juristas indígenas defendendo os direitos de seu povo. E isso só foi possível graças às cotas que abriram as universidades para que eles se formassem”.


Por que a Lei de Cotas ainda enfrenta resistências? Segundo o Datafolha, 34% dos brasileiros são contra.

Vilma Reis – Creio que esses 34% de resistência passam pela existência do racismo. Tem gente que acha inadmissível que uma pessoa negra se sente ao lado de seu filho em um curso de medicina, direito ou engenharia.

Quando você vai fazer um concurso para ingressar no serviço público, por exemplo, tem todo um rigor na apuração para ver se você se enquadra em todos os requisitos do edital. Já com relação às cotas das universidades não há o mesmo rigor na fiscalização para barrar eventuais fraudes às cotas. “Roubar” vagas deliberadamente de pessoas negras é uma gradação do racismo.

Precisamos adotar um padrão para impedir fraudes, como o que foi criado pela professora Marcilene Garcia de Souza, com as bancas de heteroidentificação, na gestão de Fernando Haddad no município de São Paulo.

Quais os principais desafios para os próximos 10 anos?

Vilma Reis – Temos que ter políticas de permanência e de saída para os cotistas. Um exemplo: tem que ter uma política de distribuição de bolsa de iniciação científica com foco em justiça social, de gênero e territorial (quilombolas e indígenas). A distribuição dessas bolsas não pode ficar só na mão do professor.

Estudantes cotistas precisam ter prioridade na questão da residência estudantil. Estudantes que já chegam à universidade mães ou se tornam mães precisam de auxílios como a creche. Todas essas questões precisam ser resolvidas com políticas que ajudem o cotista a permanecer na universidade.

No campo da saída, precisamos criar políticas para que os concursos públicos e de empresas de economia mista permitam o acesso desses cotistas recém-formados. E isso em todas as esferas de governo, municipal, estadual e federal. O que estamos vendo é o contrário. Não se faz mais concurso público, tudo é entregue à terceirização e a parcerias público-privadas.

Nos concursos públicos existe a política de cotas para ingressar. Mas não existe uma requalificação desses espaços. Dificilmente você vê negros ou indígenas em cargos de comando. Quando o servidor negro chega lá, entra naquele cargo e vai ficar ali 20 anos, porque sempre o branco é indicado para ser promovido. Então, precisamos de ações para enfrentar o racismo por dentro desses órgãos. 

Por Iracy Paulina

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