Criminalidade é reflexo de problemas financeiros e familiares
Por: GIFE| Notícias| 18/08/2003MÔNICA HERCULANO
Repórter do redeGIFE
No início deste mês, o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) lançou dois estudos sobre a criminalidade no país: Criminalidade e Desigualdade Social no Brasil e Criminalidade e Interação Social.
Mário Jorge Mendonça, um dos autores das pesquisas, fala ao redeGIFE sobre a influência de fatores econômicos e de relacionamento familiar em ações criminosas.
redeGIFE – Em que se basearam os estudos?
Mário Jorge Mendonça – Os dois trabalhos apresentam diferenças importantes, já que cada um tem objetivo e metodologia próprios. O estudo que mostra a relação entre criminalidade e desigualdade social teve como objetivo gerar um macro modelo de criminalidade para o Brasil. As informações utilizadas combinam dados agregados para estados brasileiros de homicídios intencionais advindos do Datasus (Sistema de Informação do Ministério da Saúde) e da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, feita pelo IBGE).
Já o trabalho sobre criminalidade e interação social utiliza dados de presidiários da Penitenciária Estadual da Papuda, no Distrito Federal. O objeto foi verificar se fatores relacionados à herança familiar e à interação social geram impacto sobre a criminalidade. Como herança familiar define-se a relação entre o indivíduo e o lar onde ele foi criado, o que inclui os pais e os parentes mais próximos, enquanto a interação social diz respeito à relação do indivíduo e o grupo social.
redeGIFE – O estudo sobre interação social e criminalidade fala em crimes violentos e crimes não-violentos. Quais as diferenças entre eles?
Mendonça – Essa divisão tem por finalidade distinguir os crimes cometidos contra o patrimônio (crimes não-violentos) daqueles que atentam contra a vida ou integridade física da pessoa (crimes violentos). O uso desta tipologia aparece em diversos estudos que tratam da questão da criminalidade. Os crimes não-violentos incluem roubo, furto e tráfico de drogas. Os violentos incluem homicídio e estupro.
redeGIFE – De maneira geral, podemos dizer que os motivos que geram esses crimes são semelhantes?
Mendonça – A razão fundamental em descriminar os crimes violentos e não-violentos está no fato de a pesquisa ter como um de seus objetivos verificar se as pessoas que os praticam têm motivações diferenciadas em relação à sua prática. As duas pesquisas mostraram que os crimes violentos estão, sobretudo, relacionados com motivações não necessariamente atreladas a fatores puramente econômicos, mas sim relacionados à desagregação familiar e influência do grupo. Já os casos de crimes contra o patrimônio e a propriedade encontrammaior respaldo em fatores de natureza econômica. Entretanto, os dois casos podem, eventualmente, aparecer juntos.
redeGIFE – Qual fator tem mais influência sobre a criminalidade, hoje em dia, no Brasil?
Mendonça – Numa escala macroeconômica, pode-se destacar a influência da desigualdade social como um fator importante tanto no curto como no longo prazo. Já no plano individual, observa-se que problemas relacionados à inserção do indivíduo no âmbito familiar e a influência do grupo explicam mais a criminalidade violenta do que a existência de problemas financeiros.
redeGIFE – Qual a influência da desigualdade social sobre o fenômeno da criminalidade?
Mendonça – Observou-se que a pobreza em si não é um fator que desencadeia a criminalidade, mas sim a pobreza relativa, ou seja, o que deve ser o foco da análise é a percepção dessa pobreza quando comparada a grupos de status superior. A desigualdade surte maior efeito em sociedades cuja ideologia é de tendência capitalista, nas quais as pessoas estão mais voltadas para o mercado de consumo.
Nosso estudo explicita um mecanismo baseado na idéia de que os agentes possuem um consumo de referência, que tende a seguir o nível de satisfação do grupo possuidor de maior riqueza. Assim, foi possível mostrar que a renda exigida para ficar fora da criminalidade aumenta relativamente com o grau de insatisfação do indivíduo, expresso pela diferença entre o consumo de referência e aquele que de fato ele pode usufruir com sua renda.
redeGIFE – Se crimes violentos respondem muito mais a questões de herança familiar do que a incentivos econômicos e o combate a eles não deve se restringir às medidas tradicionais, como o aumento do efetivo policial ou a elevação das pen as, quais medidas podem realmente ser efetivas e eficazes para diminuir os índices de criminalidade?
Mendonça – Cada crime deve possuir uma estratégia distinta de combate. Se crimes violentos respondem muito mais a questões de herança familiar e interação social do que a incentivos econômicos, medidas que aliviem a restrição financeira das famílias terão pouco efeito sobre sua ocorrência. Para reduzi-los, é necessário também implementar medidas de apoio à família, que contribuam para a diminuição da desagregação interna, reduzindo a tensão familiar, além daquelas que visem melhorar a vida das comunidades mais carentes. Em nível macroeconômico, contudo, a diminuição da desigualdade social geraria um forte impacto na queda da criminalidade no longo prazo.
redeGIFE – Qual a relação entre a urbanização e os índices de criminalidade?
Mendonça – A taxa de urbanização (razão entre população urbana e população total) pode servir como uma variável que representa, de modo aproximado, o custo do indivíduo ingressar no crime. A justificativa para isso recai sobre o fato de que a interação entre grupos de criminosos e potenciais criminosos facilitaria o acesso desses últimos, na medida que a interação entre os agentes facilita o acesso à informação. Além disso, o meio urbano favorece a permanência no crime, porque diminui a probabilidade de reconhecimento do indivíduo e a chance dele ser capturado.
redeGIFE – Os gastos com segurança pública são suficientes e bem utilizados na luta contra o crime no Brasil?
Mendonça – Infelizmente uma resposta definitiva a esta questão está fora do alcance da pesquisa. Os dados utilizados no estudo limitaram-se aos gastos federais com segurança feito nos estados, pois eram os únicos que estavam disponíveis. Esses, contudo, não mostraram qualquer impacto na diminuição da criminalidade no Brasil. Ocorre que, para uma avaliação mais precisa, seria necessário ter disponível o gasto efetuado em segurança pelos governos estaduais, para então poder medir sua eficiência.
redeGIFE – Por que os resultados dos investimentos em segurança não têm sido percebidos pela população?
Mendonça – Como disse, nosso estudo abrangeu somente os gastos a nível federal nos estados, e não as despesas totais. No entanto vamos, por hipótese, supor que os resultados dos investimentos em segurança não estejam sendo realmente percebidos pela população, dada a escalada da violência. Uma razão para isso estaria no fato de que os gastos não são praticados de maneira eficiente. O aumento dos gastos em segurança não significa necessariamente contingenciamento do crime. Para avaliar sua eficiência, é necessário observar o sentido da causalidade da relação crime e gasto com segurança, o que significa testar se esses investimentos efetivamente têm efeito sobre a criminalidade, além do tamanho desse impacto.
redeGIFE – Qual a importância de programas de recuperação de jovens em conflito com a lei e de reinserção de ex-presidiários na sociedade, desenvolvidos por empresas e organizações da sociedade civil? Esses são bons exemplos de ações de combate à criminalidade?
Mendonça – Tendo em vista os resultados encontrados na pesquisa sobre interação social e criminalidade, o surgimento de programas que tratam da recuperação de jovens infratores é fundamental, na medida em que eles podem ajudar a diminuir os problemas causados no relacionamento do jovem com a família, ou ainda, amortecer os efeitos negativos infringidos ao indivíduo pelo grupo.
Programas de reinserção de ex-presidiários na sociedade também são de vital importância. Embora ainda não existam estudos para o Brasil, o ex-presidiário pode sofrer de estigma, bem como ainda ser discriminado pelo simples fato de ter sido preso, o que se denomina discriminação estatística. O estigma acontece quando o indivíduo que entra na criminalidade adquire certos hábitos que não são adequados ao mercado de trabalho, o que tem impacto negativo sobre sua produtividade. Ambas as coisas podem diminuir a probabilidade de obter emprego, bem como exercer impacto negativo sobre o salário a ser recebido, quando o ex-presidiário consegue ser alocado no mercado de trabalho.
É necessário ter em mente que as propostas para recuperação de jovens infratores e ex-presidiários, desenvolvidas por parte da iniciativa privada, podem ainda auxiliar no preenchimento do vazio deixado pelo Estado, já que os programas governamentais estão muito aquém dos objetivos desejados.