Crises migratórias demandam união de esforços e legislações focadas em direitos humanos

Por: GIFE| Notícias| 27/09/2021
Crises migratórias exigem legislações específicas, planos de recepção e promoção e garantia de direitos, além de conscientização da sociedade

Apesar das imagens do Afeganistão que chocaram o mundo recentemente, as crises migratórias decorrentes de conflitos políticos não são um fenômeno recente. Conflitos na região do Oriente Médio e Ásia Ocidental, como a guerra na Síria, que já dura mais de 10 anos, forçam as populações a buscar refúgio em territórios e nações próximas.

De acordo com dados da Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (UNHCR/ACNUR), 57% dos refugiados do mundo vêm de três países: Síria, Afeganistão e Sudão. Os níveis de deslocamentos forçados já atingiram o maior patamar da história: mais de 79,5 milhões de pessoas. Em 2018, a cada dia, 37 mil pessoas foram forçadas a deixar suas casas em decorrência de conflitos ou perseguições, que podem acontecer por diferentes motivos: raça, nacionalidade, opinião política, religião, grupo social.

Quando o assunto é deslocamento interno, o cenário também é alarmante: 45,7 milhões de pessoas se deslocaram dentro de seus próprios países em função de conflitos armados, violência e violações dos direitos humanos.  

A complexidade do tema demanda atenção em diferentes direções. É necessário que os países tenham legislações sobre a recepção de estrangeiros e promovam direitos humanos a partir do acesso a serviços e benefícios sociais. 

As crises migratórias como um desafio global 

Miguel Pachioni, assessor de informação pública da ACNUR, explica que qualquer crise de refugiados que emerge no mundo tem impactos profundos não apenas no país de origem, mas também nos países de acolhida. A afirmação torna-se ainda mais relevante quando observa-se que 86% dos refugiados vivem em países em desenvolvimento e 73% estão em países vizinhos aos seus.

Uma crise de refugiados não se limita a um recorte geográfico específico, não é papel de um único Estado e não há uma previsão de término ou mesmo de quando as situações internas de um país instável estarão minimamente estáveis. A predisposição de países em responder às crises globais dialoga com o Pacto Global sobre Refugiados, onde a sociedade como um todo assume uma parcela do que cada um pode realizar”, explica. 

Dessa forma, todas as nações têm a responsabilidade de se mobilizar para uma emergência migratória, independente se ocorre perto ou longe. “É essencial que os países promovam políticas de acolhida, não fechem fronteiras como meio de cumprir com suas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos e também para não agravar uma crise humanitária. Quando um Estado não é mais capaz ou, autoritariamente, deixa de oferecer segurança e direitos aos seus cidadãos e promove perseguições, é dever da comunidade internacional zelar pela proteção dessas pessoas”, defende Camila Asano, diretora de programas da Conectas Direitos Humanos. 

Legislação 

Na linha do tempo brasileira com os principais marcos legais sobre o tema está o Estatuto do Estrangeiro, de 1980, e sua posterior revogação, em 2017, quando foi criada a Lei de Migração nº13.445/2017, que institui uma perspectiva da migração pautada nos direitos humanos com repúdio a quaisquer formas de discriminação. 

De acordo com Camila, a nova legislação promoveu diversos avanços, como o estabelecimento da política de vistos humanitários, a garantia do devido processo legal em casos de repatriação e deportação e de participação de protestos e sindicatos.

A diretora aponta também a Lei de Refúgio 9.474, de 1997, “considerada exemplar, pois adota uma concepção ampliada de refúgio, estendendo o reconhecimento a pessoas que saem de seus países devido a situação de grave e generalizada violação de direitos humanos, conforme estabelece a Declaração de Cartagena”. 

Integração 

Como se não bastasse a complexidade de deixar o próprio país e a vida para trás, migrantes enfrentam inúmeros desafios e dificuldades quando chegam nos países de destino. Entre eles estão o aprendizado do idioma, ter seus saberes reconhecidos – como a revalidação de diplomas e reconhecimento da experiência profissional prévia -, a garantia do exercício pleno de seus direitos – como abrir uma conta bancária -, entre outros. 

Se em um primeiro momento, o atendimento emergencial envolve a provisão de abrigo e alimentos, Miguel reforça que é fundamental garantir mecanismos para o desenvolvimento e integração local dessa população. 

As pessoas refugiadas e migrantes chegam ao novo país com conhecimentos e experiências, dispostas a reconstruir suas vidas com dedicação e responsabilidade e a atuar para o desenvolvimento dessas localidades, tornando a economia mais dinâmica e ampliando os ganhos de receita, assim como agregando cultura, saberes e valores verdadeiramente humanos. Uma lei acolhedora, implementada na prática, é o principal caminho para que todos ganhem com esse processo de acolhida humanitária, sem deixar de considerar a necessidade da integração de longo prazo.” 

De acordo com um levantamento de 2015 da consultoria McKinsey, imigrantes contribuem com 6,7 trilhões de dólares à economia global, três trilhões a mais do que produziriam se tivessem permanecido em seus países de origem. 

Xenofobia 

Não é incomum que parte das populações dos países procurados por refugiados enxerguem essas pessoas como ‘empecilhos’ que vão sobrecarregar sistemas de saúde muitas vezes já precarizados ou encontrar dificuldades no sistema de educação e no mercado de trabalho, entre outros argumentos. 

Para Miguel, a xenofobia é um reflexo da desinformação e combater esse cenário é possível a partir da convivência. Se o caso afegão é fisicamente distante, o Brasil vivencia diariamente os efeitos da crise migratória venezuelana, já que a situação econômica e social no país vizinho continua fazendo com que milhares de pessoas o deixem em busca de melhores condições de vida. Com frequência são relatados inúmeros casos de xenofobia contra essa população. 

“Nas eleições municipais de 2020, em Boa Vista, capital de Roraima, cidade que recebe o fluxo venezuelano, candidatos/as se utilizaram de discursos demagógicos e discriminatórios contra venezuelanos como plataforma política, tendo sido inclusive alvos de investigação do Ministério Público Federal”, explica Camila. 

Nesse sentido, a diretora da Conectas reforça a importância da divulgação de materiais de qualidade que conscientizem a população, como o Mitos e Verdades sobre a Lei de Migração, produzido pela Conectas na época da aprovação da Lei de Migração, que corrige alguns equívocos, como a crença de que a entrada de migrantes irá aumentar a criminalidade ou a crise econômica. 

Outra boa prática é promover a capacitação de jornalistas para abordar o tema corretamente, explicando, por exemplo, que é errado utilizar termos como ‘clandestinos’ ou ‘migrantes ilegais’. 

A pauta no ISP 

De acordo com o Censo GIFE 2018, quando o assunto é perfil de público específico indicado nos programas ou projetos dos associados respondentes, dos 14% que atuam com raça, origem ou comunidades tradicionais, apenas 7% priorizam imigrantes e refugiados. Não à toa, migrações e refugiados é um dos oito temas que compõem a série O que o Investimento Social Privado pode fazer por?, que reúne agendas nas quais o investimento social privado ainda é insuficiente para responder aos desafios atuais. 

Além do conjunto de cinco macroestratégias apresentado pelo Guia, outras pesquisas, estudos e materiais também podem ajudar institutos, fundações e empresas a aumentar sua atuação na pauta. Uma dessas ferramentas é a plataforma Empresas com Refugiados, desenvolvida por ACNUR em parceria com o Pacto Global da ONU para a promoção dos Direitos Humanos por meio do desenvolvimento sustentável nas práticas corporativas. 

“As articulações por parte de institutos e fundações a fim de mobilizar o setor privado para a acolhida, formação, empregabilidade e inclusão de pessoas refugiadas em suas áreas de atuação é um caminho muito promissor para assegurar que elas tenham meios de desenvolver seus potenciais, alinhados com a Agenda 2030 junto aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável”, explica Miguel. 

Camila, por sua vez, pontua que instituições que compõem o campo do ISP podem apoiar organizações da sociedade civil que atuam na pauta migratória, de forma a garantir uma atuação mais independente e contínua nas várias frentes de trabalho, que incluem o atendimento nos territórios, programas sociais de integração, pesquisa ou advocacy para a proteção e promoção de leis e políticas migratórias mais eficazes.

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