De voluntariado fordista para voluntariado em rede

Por: GIFE| Notícias| 14/03/2005

BRUNO R. C. AYRES
Formado em Administração (UnB), com mestrado em Ciência da Informação (IBICT-ECO/UFRJ), é coordenador do Portal do Voluntário e seu foco de interesse e de pesquisa é o uso das novas tecnologias para o fortalecimento de cidadãos para a ação voluntária.
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www.portaldovoluntario.org.br

FABIANO MORAIS
Analista de sistemas, pós-graduado em marketing (Universidade Cândido Mendes) e MBA em EComerce (ESPM). Coordenador da Planner Marketing de Relacionamento, seu atual foco de pesquisa é relacionamento em redes voluntárias.
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www.plannermd.com.br


Ford Web 2005 – Colagem feita voluntariamente por Iúri Kothe.

Decidimos nos juntar para escrever este artigo – um administrador e um analista de sistemas. Nelson Rodrigues diria que a junção destas disciplinas teria “”a aridez de três desertos…””. Mesmo concordando, também conhecemos o lado quente e humano do que estudamos um dia. Conversando sobre nossos interesses atuais – ação voluntária, tecnologia, redes e relacionamentos, vimos que a evolução da administração tem algo a nos dizer sobre a maneira como gerimos nossas iniciativas sociais.

A gestão do voluntariado pode ser analisada por pelo menos duas perspectivas. A primeira, que chamamos aqui de “”fordista””(1), percebe o voluntário como instrumento de assistência, que deve se engajar em moldes semelhantes aos de um emprego ou trabalho formal. Cumpridor de ordens e normas, este voluntário é encorajado a se envolver em ações prontas, criadas e planejadas por um ente maior (organização social ou empresa). Seu trabalho tende a ser institucionalizado e não é surpresa mensurá-lo em horas trabalhadas e avaliá-lo por critérios quantitativos.

A outra perspectiva, que chamaremos aqui de “”voluntário para voluntário”” (V2V)(2) ou “”voluntariado em rede””, vê o voluntário como agente e promotor de suas próprias ações, muitas vezes realizadas em um grupo que compartilha valores semelhantes. Ciente de si, de seus talentos e do contexto em que está inserido, este voluntário, natural e espontaneamente, age sobre sua realidade e estabelece relacionamentos com seus pares (muitas vezes vizinhos, colegas de trabalho, os pais dos colegas da escola do seu filho e assim por diante).

O voluntariado fordista entende que a oferta de oportunidades de ação voluntária é escassa – e não tiramos sua razão – pois hoje há uma enorme demanda de cidadãos desejosos de participação. Em uma lógica fordista, de massificação e poucas possibilidades de escolha para quem demanda, estes cidadãos preenchem cadastros e se encontram em longas listas de espera, aguardando convocação.

Esta lógica depende diretamente da limitante noção de que voluntariado é algo que se concretiza apenas no âmbito de uma instituição, que oferece oportunidades de participação e que é necessariamente organizada. Tal visão é ainda corroborada por definições de voluntariado ou por imagens e estereótipos que a mídia faz deste tipo de atividade(3).

Porém, a realidade do voluntariado é maior e mais diversa do que as imagens imediatas que se têm a respeito desta. Se pensarmos em participação voluntária de forma ampla, veremos que o número de possibilidades de ação depende apenas da criatividade do voluntário e das necessidades e potencialidades da comunidade.(4) Assim, temos um vasto mundo abaixo da linha d′água – da visibilidade da opinião pública – que envolve milhões de brasileiros, nos mais variados contextos. A ação voluntária é o que há em comum entre a senhora que ajuda na quermesse da igreja e o ativista do Greenpeace; entre a participação em um grupo de alcoólicos anônimos e a doação de algumas horas semanais a uma creche; entre a colaboração na vizinhança e o ciberativismo.

Se pensamos desta forma, temos uma inversão. A oferta de oportunidades torna-se virtualmente ilimitada e o cidadão se fortalece em suas possibilidades de escolha. É desta noção de equilíbrio entre oferta de oportunidades de ação e demanda por participação voluntária que tratamos quando falamos em uma lógica de “”voluntário para voluntário””.

Esta perspectiva inspira-se no padrão de organização de redes. O nome “”voluntário para voluntário””, ou V2V, é uma alusão a um tipo de rede de computadores denominado peer-to-peer (P2P)(5) , em que usuários trocam recursos (informações, documentos, músicas) diretamente, sem intermediação e em igualdade – onde todos os participantes têm a chance de doar a informação que lhes é disponível e de receber em troca aquela que lhes interessa.

A dinâmica da rede pressupõe uma aparente falta de controle, devido às suas propriedades de independência e flexibilidade. Só é possível controlar uma rede de pessoas sem perturbar tais princípios, se a possibilidade de regulação estiver distribuída – o conjunto dos participantes zela pela integridade da rede. Isso acontece em inúmeras iniciativas sociais em que os participantes estão verdadeiramente engajados e estabelecem relacionamentos saudáveis entre si. Para empreender tais redes é preciso acreditar em pessoas e na potencialidade de seus relacionamentos.

Neste ponto, chega a ser difícil usar o termo gestão na perspectiva V2V. Gestão, administração e palavras afins (6) pressupõem subordinação – palavra indigesta para quem fala em igualdade e espontaneidade. Em tempo: alguns teóricos da administração resumem a função do administrador como coordenar a colaboração de indivíduos para um objetivo comum. No caso do voluntariado, acreditamos que a gestão destas iniciativas é, em essência, gestão de relacionamentos.

Por fim, mais um contraste entre estas duas perspectivas: no voluntariado fordista, pessoas administram pessoas e recursos para alcançar objetivos. Nada contra. Isso muitas vezes funciona e é absolutamente prático e realista. Mas existe a possibilidade de se realizarem ações, de voluntário para voluntário, em que pessoas cuidam de pessoas e de suas iniciativas, como quem cuida de coisas vivas, que se desenvolvem em seu próprio tempo, não subordinadas apenas à vontade de quem as criou.

Para nós, o conforto do voluntário na sua ação, a evolução da administração e das novas tecnologias e, sobretudo, a necessidade premente de valorizarmos as pessoas e reformarmos as práticas democráticas, apontam para um momento generoso e transformador da sociedade.

Agradecemos especialmente a Chico Lins e Iúri Kothe. Suas valiosíssimas contribuições somaram mais quatro mãos sobre este trabalho.

Notas de rodapé:
(1) “”Você pode comprá-lo em qualquer cor desde que seja preto.”” Henry Ford, sobre as possibilidades de escolha do cliente pelo Modelo Ford T, fabricado por ele no início do século XX. Ford Corporate Citizenship Report 2003-2004. Disponível em: http://www.ford.com/en/company/about/corporateCitizenship/report/
articlesPaintOverview.htm
. Acesso em 10 mar. 2005.
(2) V2V é a sigla para Volunteer-to-Volunteer, tecnologia de gestão de voluntários inspirada nas redes Peer-to-Peer (P2P), que serão explicadas adiante. A Tecnologia V2V foi concebida e desenvolvida no Brasil, pela equipe do Portal do Voluntário, em 2004.
(3) “”(…) Ao chegar, o candidato [voluntário] preenche uma ficha na qual descreve suas habilidades, disponibilidade de tempo e preferências profissionais. Em seguida, consulta uma lista com centenas de possíveis ′empregadores′ e as tarefas que poderiam desempenhar para eles. (…) quem entra ali está disposto a trabalhar de graça, prestando voluntariamente algum serviço à comunidade.”” (grifos dos autores) REVISTA VEJA, Caderno SP – número 12. Editora Abril, edição de 22 de março de 2000. p. 10
(4) OLIVEIRA, Miguel D. Dez Dicas de Voluntariado. Portal do Voluntário, disponível em http://www.portaldovoluntario.org.br/site/pagina.php?idconteudo=419. Acesso em 10 mar. 2005.
(5) Exemplos destas redes P2P são programas de troca de arquivos, como Kazaa e SoulSeek e aplicações de mensagens instantâneas, como ICQ e MSN Messenger.
(6) “”A palavra administração vem do latim ad (direção para, tendência para), e minister (subordinação ou obediência).”” CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à Teoria Geral da Administração. McGraw-Hill : São Paulo, 1983. p. 6

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