Democracia racial necessita de parcerias entre Estado e sociedade

Por: GIFE| Notícias| 19/05/2003

MÔNICA HERCULANO
Repórter do redeGIFE

A partir da análise de documentos oficiais do governo federal, revisão bibliográfica, levantamento da legislação e entrevistas com estudiosos, o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) lançou o livro Desigualdades Raciais no Brasil – um balanço da intervenção governamental.

Em entrevista ao redeGIFE, Luciana Jaccoud, uma das autoras e conjunto com Nathalie Beghin, fala sobre o tema.

redeGIFE – Hoje em dia, apesar das evidências, ainda existem pessoas que negam a existência da discriminação racial no Brasil. É possível mudar essa posição?
Luciana – O quadro da desigualdade racial no Brasil revela o drama da marginalização econômica e da injustiça social que afeta os afro-brasileiros: são 76 milhões de pessoas, a maioria pobre (47%). A inserção do negro no mercado de trabalho é sempre mais precária que a do branco, os afro-brasileiros têm mais chances de ser desempregados e, no geral, costumam ganhar cerca da metade dos rendimentos dos brancos na mesma função. Os indicadores educacionais também impressionam pela magnitude e pela estabilidade das desigualdades raciais. A concentração dos negros nos espaços mais vulneráveis da sociedade tende a ser vista como fenômeno natural e não como um problema social que precisa ser enfrentado. Portanto, é urgente o debate do tema pelo Estado e a sociedade, reconhecendo-o como uma questão social, para que juntos procurem equacioná-lo.

redeGIFE – E quais ações concretas podem surtir efeito na erradicação desse problema?
Luciana – A erradicação da desigualdade racial no Brasil passa pela efetiva implementação de políticas universais, tais como as de saúde, educação, previdência e assistência social, articuladas com três outros grupos de políticas: as repressivas, que são baseadas na legislação criminal existente; as valorativas, que têm por objetivo reconhecer e valorizar a pluralidade étnica que marca a sociedade brasileira e valorizar a comunidade afro-brasileira, destacando seu papel histórico e sua contribuição contemporânea à construção nacional; e as afirmativas, que visam a garantir a igualdade de acesso dos grupos discriminados, ampliando sua participação em diferentes setores da vida social. A sociedade democrática caracteriza-se como aquela em que as oportunidades básicas oferecidas aos indivíduos não os diferenciam em função de sua origem social ou étnica. Essas oportunidades são o alicerce sobre o qual se erguem a igualdade de tratamento e as políticas específicas que buscam assegurar a eficácia de tal eqüidade. A construção de uma efetiva democracia racial no Brasil passa, também, pelo fortalecimento de espaços de diálogo e de parcerias entre o Estado e a sociedade civil.

redeGIFE – As ações afirmativas, tanto do poder público quanto da iniciativa privada, existentes hoje no país têm sido eficazes no combate à desigualdade racial?
Luciana – Não, na medida em que se tratam de ações muito incipientes frente à magnitude do problema. Até o momento, as experiências existentes têm sido tímidas e pontuais. É bom lembrar que as ações afirmativas se caracterizam por serem temporárias e focalizadas no grupo discriminado, ou seja, elas dispensam, num determinado prazo, um tratamento diferenciado e favorável com vistas a reverter um quadro histórico de discriminação e exclusão. São várias as possibilidades de ações afirmativas que podem ser desenvolvidas. As cotas são uma delas.

redeGIFE – Existe diferença entre racismo, preconceito e discriminação racial?
Luciana – Sim, no nosso entendimento, existem diferenças entre esses três fenômenos e cada um deles exige tratamento diferenciado. Considerou-se racismo uma ideologia que apregoa a existência de hierarquia entre grupos raciais. Preconceito racial foi entendido como toda predisposição negativa em face de um indivíduo, grupo ou instituição assentada em generalizações estigmatizantes sobre a raça a que é identificado. Discriminação racial é definida como toda e qualquer distinção, exclusão ou preferência racial que tenha por efeito anular a igualdade de oportunidade e tratamento entre os indivíduos ou grupos.

redeGIFE – Qual a diferença entre discriminação direta e indireta?
Luciana – A discriminação racial direta verifica-se numa ação que prejudica explicitamente certa pessoa ou grupo de pessoas em decorrência de sua raça/cor. A discriminação indireta dá-se por meio de um comportamento ou ação que prejudica essa pessoa ou esse grupo de forma dissimulada. Ou seja, trata-se de uma discriminação não manifesta, oculta, oriunda de práticas sociais, administrativas, empresariais ou de políticas públicas. Trata-se da forma mais perversa de discriminação, pois é difícil identificá-la e reagir a ela.

redeGIFE – Como tem sido a atuação do governo no que diz respeito à criação de políticas contra a desigualdade racial no Brasil?
Luciana – O governo passado implementou importantes medidas de valorização e de promoção da igualdade de oportunidade para a população afro-descendente. Contudo, a velocidade, a abrangência e a coordenação das ações empreendidas ficaram aquém do desejado. Com a recente criação da Secretaria Especial de Promoção de Políticas da Igualdade Racial, com status de Ministério, o governo Lula indica a prioridade dada ao tema.

redeGIFE – E o que se espera dessa Secretaria?
Luciana – Obviamente a Secretaria não vai resolver o problema da desigualdade racial no Brasil. No entanto, sua criação já mostra que tratar da questão racial é um objetivo prioritário deste governo. Espera-se, então, que contribua para ampliar o debate na sociedade e para incentivar a implementação de políticas e ações que promovam a igualdade de oportunidades da população afro-brasileira.

redeGIFE – Que tipos de avanços o governo passado teve nesta área?
Luciana – Atendendo a demandas do movimento negro, foi criado, em 1995, o Grupo Interministerial de Valorização da População Negra, ligado ao Ministério da Justiça. No ano seguinte, o Ministério do Trabalho instalou o Grupo de Trabalho para a Eliminação da Discriminação no Emprego (GTDEO) e, pouco tempo depois, lançou o Programa Brasil, Gênero e Raça. O Brasil teve uma participação ativa na III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada na África do Sul, em 2001, que teve vários desdobramentos, como a criação do Conselho Nacional de Combate à Discriminação. A partir desse momento, vários organismos federais implementaram ações afirmativas para seu público interno, como os ministérios da Justiça e do Desenvolvimento Agrário e o Tribunal Superior do Trabalho. Outras iniciativas foram tomadas pela Secretaria de Direitos Humanos e pelos ministérios Público do Trabalho e Federal. Contudo, é importante ressaltar que essas medidas, apesar de relevantes, ainda estão longe de ser suficientes para acabar com a desigualdade racial no país.

redeGIFE – Quais conseqüências a desigualdade racial pode trazer para o desenvolvimento do país?
Luciana – Por um lado, a permanência das desigualdades raciais naturaliza a participação diferenciada de brancos e negros nos diversos espaços da vida social, reforçando a estigmatização sofrida pelos negros, inibindo o desenvolvimento de suas potencialidades individuais e impedindo o usufruto de sua cidadania. Por outro lado, o processo de exclusão vivido pela população negra compromete a evolução democrática do país e a construção de uma sociedade mais justa e coesa. Tal processo de exclusão fortalece as características hierárquicas e autoritárias da sociedade e aprofunda o processo de fratura social que marca o Brasil contemporâneo. Nesse sentido, o problema das desigualdades raciais atinge a sociedade brasileira como um todo.

redeGIFE – O que ainda pode ser feito para evitar atos de discriminação?
Luciana – No que tange à discriminação racial direta, o enfrentamento deve ser realizado por políticas repressivas baseadas na legislação criminal vigente. Já no que se refere à discriminação indireta, o seu combate requer a adoção de políticas afirmativas que tenham como objetivo garantir o acesso dos grupos discriminados em diferentes setores da vida nacional.

redeGIFE – Como a iniciativa privada e as organizações da sociedade civil têm agido no combate às desigualdades raciais no Brasil?
Luciana – Os avanços obtidos até o momento em benefício da população afro-descendente são resultado de conquistas do movimento negro, que vem a ser o movimento social mais antigo no Brasil. Mas as distâncias sociais entre negros e brancos continuam injustificáveis e é possível fazer mais. É necessário, por exemplo, que as empresas privadas combatam a discriminação racial nas relações de trabalho, pois ali é um dos espaços onde se expressa com maior vigor o tratamento desigual para com a população negra. Enfrentá-lo constitui-se num grande desafio para todos aqueles que lutam pela efetivação da democracia racial no país.

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