Democratização no Brasil ainda não mostrou toda sua potência emancipadora

Por: GIFE| Notícias| 24/10/2004

MÔNICA HERCULANO
Repórter do redeGIFE

A abordagem de temas que costumam ser associados à idéia de gestão democrática – Estado, sociedade civil, participação, universo organizacional e qualidade dos gestores – é ponto chave do livro Um Estado para a sociedade civil – Temas éticos e políticos da gestão democrática (Editora Cortez), de Marco Aurélio Nogueira.

Cientista político, Nogueira reuniu na publicação análises e reflexões dos últimos cinco anos, divididos em capítulos sobre reforma do Estado, perspectivas de participação da sociedade civil, gestão participativa, escolas de governo e de gestão pública e dilemas organizacionais, entre outros assuntos.

O autor afirma que a questão é não apenas “”gerenciar”” – fazer com que as coisas funcionem da melhor maneira -, mas mudar, transformar e produzir igualdade de forma ampliada e sustentável. Para dirigir e direcionar a mudança, são necessárias operações que requerem o pleno emprego do recurso democrático ao diálogo, à negociação e à articulação.

Em entrevista ao redeGIFE, Nogueira fala do papel do Estado e da sociedade na gestão democrática e as relações do atual governo brasileiro. Para ele, há muita participação da sociedade civil no país, mas falta uma “”amarração”” final neste processo. “”Há democratização, mas ela ainda não se completou, e nem explicitou toda sua potência emancipadora””, afirma.

redeGIFE – Podemos dizer que, hoje, o Brasil é um Estado para a sociedade civil?
Marco Aurélio Nogueira – No meu entendimento, temos hoje no Brasil uma relação imperfeita entre Estado e sociedade civil. O Estado está afastado de uma interação forte com a sociedade civil. A sociedade civil, por sua vez, está cortada por interesses e iniciativas que não conseguem se compor de modo minimamente unificado. No contexto atual, o risco maior é que esta sociedade civil fragmentada e despolitizada “”fuja”” do país, de seus problemas reais, e passe a funcionar de modo auto-referido. É por isso que falo em lutar por “”um Estado para a sociedade civil””. Não se trata de ter mais “”Poder Executivo””, que é uma das faces do Estado, mas de se ter mais “”comunidade política””, que é o coração do fenômeno estatal. Sem este Estado-comunidade política, nenhuma sociedade civil pode cumprir função positiva. Ela é, aliás, conforme as melhores formulações, parte central da face ético-política do Estado.

redeGIFE – No prefácio do livro, o senhor afirma que a gestão não deve ser tratada como um problema técnico, passível de ser resolvido por modelos, reformas pontuais, incursões racionalizadoras ou argumentos de autoridade. Como, então, deve ser abordada?
Nogueira – Como um problema político. Gerir deveria ser entendido, nas condições concretas em que vivemos hoje, como sinônimo de “”dirigir””: ninguém pode se arvorar à condição de solucionador de problemas sem um esforço muito forte para agregar pessoas e fixar horizontes de sentido. Não se trata de aplicação dos melhores modelos, supondo que existam, mas sim da apresentação de projetos claros e do estabelecimento de uma zona comum de diálogo e interação, na qual as soluções possam ser concebidas e encaminhadas.

redeGIFE – De que maneira os diversos movimentos organizados da sociedade civil brasileira influenciaram e influenciam no processo de gestão democrática do país?
Nogueira – De muitas maneiras. Podem, antes de tudo, agir no plano do controle social, ajudando a que se determine o que deve ser feito, como deve ser feito, com quais prioridades, etc. Podem também atuar no plano da execução, compartilhando a prestação de serviços. E podem, acima de tudo, operar no sentido de que se constitua uma rede político-social que dê novos sentidos ao processo de tomada de decisões, ajudando a qualificá-lo, a dinamizá-lo e a democratizá-lo.

redeGIFE – O que mais poderia ser feito pela sociedade civil organizada para conseguir ter voz ativa nas decisões públicas?
Nogueira – A sociedade civil organizada deveria estar o tempo todo em busca de formas sempre mais avançadas de unificação e politização. Ela é “”organizada”” apenas em termos: o que existe de fato é uma miríade de movimentos e associações lutando por seus interesses e por suas convicções. Nenhum problema quanto a isso, pois a sociedade civil é sempre um espaço de explicitação da diversidade social. Mas é razoável que se espere que os diferentes movimentos possam evoluir em direção a uma “”zona de consenso””, da qual possam partir parâmetros para a organização de uma vida coletiva melhor, mais interessante e mais digna. Sem esforços de unificação e politização, não há como caminhar nesta direção.

redeGIFE – O atual governo brasileiro passa por constantes variações de credibilidade com a sociedade civil. Há momentos em que tem apoio da maioria da população e outros em que o descrédito é evidente. A que podemos atribuir isso?
Nogueira – Creio que as respostas anteriores ajudam a definir o que penso a respeito. Se os governos não interagem bem com a sociedade civil, e se a sociedade civil está muito fragmentada e não consegue politizar sua diversidade (isto é, unificá-la em nível superior), por que deveria haver estabilidade no relacionamento entre estes dois planos? O posicionamento oscilante da sociedade civil diante do governo é um reflexo do caráter errático e imperfeito da relação entre Estado e sociedade civil.

redeGIFE – O senhor afirma no livro que a combinação de política social com a reforma do Estado parece ser a melhor opção para que o governo Lula vença a resistente agenda brasileira. O que deve ser feito para que essa reforma seja feita?
Nogueira – Antes de tudo, deveria haver um esforço governamental para recuperar o tema do Estado, que permanece submerso desde o final dos anos 90. O governo (governo federal, mas não apenas ele) e o Parlamento precisariam trazer o Estado de volta ao debate político. Definir o que pensam dever ser suas atribuições como aparelho e, acima de tudo, refletir a respeito da natureza da comunidade política em que se deseja viver no Brasil. Sem isso, a política social corre o risco de ficar subalternizada, aparecendo ou como uma versão de “”assistencialismo”” ou como um conjunto de prioridades não definidas de modo orgânico e integrado.

redeGIFE – A participação da sociedade civil nos processos políticos e na gestão pública do país tem sido, de fato, democratizada nos últimos anos?
Nogueira – Tem sim, sobretudo se entendermos democratização no sentido de avanço em termos da ocupação de espaços e de participação. Há muita participação de fato no Brasil. E muitas das opções de gestão que foram sendo tomadas na última década e meia (por exemplo, a descentralização, o orçamento participativo, etc.) ajudaram a que isso se consolidasse. Mas, para reiterar o que disse anteriormente, falta uma “”amarração”” final neste processo, que é justamente a politização. Há democratização, mas ela ainda não se completou, e nem explicitou toda sua potência emancipadora.

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