Descamisados, bolsistas… eles, os outros

Por: GIFE| Notícias| 17/06/2010

Geraldinho Vieira*

“Não, a periferia e tudo o que ela significa não se vê representada nos discursos e debates para a eleição presidencial. Em nível local/estadual a população marginalizada e as regiões do entorno das metrópoles tornam-se meros objetos da discussão, sem voz, sem protagonismo. Sequer como coadjuvante estas vozes se fazem ouvidas”.

Joselito Crispim, 31, vive nos Alagados, Bahia. É autodidata no que se refere à história ocidental e aluno da experiência viva dos terreiros na compreensão do oriente, d´África. “Sou um padeiro metido a pedagogo”, define-se.

A região onde Crispim vive começou a ser aterrada nos anos 50. Ali casas erguem-se em palafitas sobre o mar para abrigar famílias de baixa renda com alimentação, higiene e saúde em situação precária.

“Na formulação de políticas públicas e durante as campanhas eleitorais, pobres, negros, homossexuais, religiões de minoria… estes são os outros, os que têm um adjetivo, são os descamisados, os bolsistas”, completa Joselito – quinto encontro desta série Eleições & Sociedade Civil (breves diálogos com lideranças sociais sobre o que esperam do processo eleitoral).

Alagados é síntese da periferia brasileira. Nos seus bairros Uruguai, Jardim Cruzeiro e Massaranduba nasceu, em 1991, pelo desejo da meninada e porque não havia qualquer outro espaço/equipamento de diversão, uma das primeiras bandas de lata no Brasil. Bandas de latas e descargas velhas, “opção de sobrevivência e solidariedade”.

Pelas mãos de Joselito, hoje estudante de Direito, a banda foi crescendo, começou a realizar espetáculos aqui e ali… e logo nasceram outras e outras bandas de lata. Juntas, formaram o Grupo Cultural Bagunçaço – que hoje reúne/atende 235 meninos e meninas em atividades ligadas a dança, música, reciclagem, preservação do meio ambiente, literatura e cursos profissionalizantes.

Educação e ética na política são temas que Crispim gostaria de ver nas campanhas e para além das campanhas, mas já ouvimos, não sei se de Mafalda ou de Quino, algo como “as urgências não permitem ver as prioridades”. E a Bahia está mergulhada numa destas urgências – a enorme explosão de violência urbana – em torno da qual a falta de qualidade dos debates impede investigar as raízes dos desafios e criar soluções reais.

“Como ter esperança de que o processo eleitoral aprofunde os debates se a questão da segurança pública, por exemplo, é tratada como um ôba ôba enquanto vivemos entre tiroteios e balas perdidas”?, pergunta Joselito.

– “Aqui, entre discursos e promessas dos candidatos a cargos locais e estaduais, perpetuam-se demonstrações de macheza do tipo ´tem que ser homem de pulso forte, vou botar mais polícia e mais viaturas nas ruas´. Prometem uma tal polícia pacificadora, mas não falam em escola de qualidade. Há 3 anos, a campanha de segurança pública falava em ´saneamento´, ou seja, o povo virou cocô mesmo” – comenta Joselito sobre os debates eleitorais.

Lembro a Joselito que não apenas os políticos, mas também a imprensa não sabe o que é a periferia, não vai onde não há asfalto. “Vem sim” – retruca o padeiro-educador. “Já disseram em música e prosa que a carne mais barata do mercado é a carne negra, e é mesmo. Para comprar dessa carne a imprensa vem sempre aqui”.

Não é a de um Brasil apassionato nem aquele que cabe nos debates inférteis a imagem que Joselito me devolve: “Aqui a polícia chega junto com o repórter. Jornais e televisões concorrem por defuntos. As imagens veiculadas dispensam autópsias, são pródigas em órgãos expostos. Os textos da imprensa julgam e condenam antes dos tribunais”.

Em Alagados, síntese da periferia do Brasil, sobrevive a esperança de que a democracia avance, que o entendimento que temos de “sociedade” seja plural e que os governantes saibam discernir entre urgências e prioridades.

Sobrevive sim a esperança, mas a verdade é que a “moda” aqui não é um debate eleitoral novo, onde as vozes periféricas são ouvidas e seus anseios representados ou onde a internet dá régua e compasso às campanhas.

Assim fala Joselito Crispim: “A moda agora é vender imagem de defunto, feitas com celulares roubados por crianças de 10 anos que tem da violência uma percepção de a última novidade”.

*O Grupo Cultural Bagunçaço (www.bagun.tvlata.org) tem apoio da Coelba, Sesc e associações/fundações de amigos voluntários. Há um braço de apoio na Europa – a Fundação Bagunçaço da Suécia – e em 2003 nasceu o braço africano, o Instituto Juvenil Bagunçaço de Moçambique.


* Geraldinho Vieira é Consultor na área da comunicação para a transformação social, Geraldinho Vieira é vice-presidente da ANDI – Agência de Notícias dos Direitos da Infância, professor da Fundación Nuevo Periodista Iberoamericano (Colômbia), colaborador da Fundação Ford na área do Direito à Comunicação e conselheiro do projeto Saúde Criança.
**este texto foi originalmente publicado no Blog do Noblat. http://oglobo.globo.com/pais/noblat

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