Dez anos da Lei de Cotas: o quanto avançamos e o que ainda precisa melhorar

Por: Fundação FEAC| Notícias| 05/09/2022

O percentual de alunos que ingressaram nas universidades por meio de cotas saltou de 13% em 2012 para 39% em 2017. Crédito: Agência Brasil

Criada para promover o acesso às universidades de estudantes negros, pardos, indígenas e com formação básica em escolas públicas, a chamada Lei de Cotas (12.711/12) está completando dez anos em agosto. A data coloca em pauta a discussão sobre os resultados: a lei cumpriu o seu objetivo? O balanço é positivo e mostra que as cotas promoveram, sim, uma mudança significativa no perfil dos estudantes nas universidades.

É o que revela, por exemplo, o estudo “TD 2569 – Ação Afirmativa e População Negra na Educação Superior: acesso e perfil discente”, de 2020, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua e do Censo da Educação Superior (CES) para 2017. Ele aponta que o percentual de alunos que ingressaram nas universidades por meio de cotas saltou de 13% em 2012 para 39% em 2017.

Lei prevê revisão da política pública

Além disso, ao completar uma década de implantação, a Lei de Cotas prevê em seu artigo 7º, que o executivo deve promover uma revisão desta política pública. Os movimentos sociais se mobilizam para que esse processo de revisão aconteça apenas após o período eleitoral, para não contaminar a discussão com disputas políticas.

Para alguns juristas, se essa revisão não for feita em 2022, a Lei de Cotas perderia a validade. Outros acreditam que não, mesmo sem revisão, a lei deve ser mantida e com as regras atuais.

O advogado José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, segue essa segunda corrente. Ele acredita que não há riscos de retrocesso. “Parece haver um consenso de que a lei é positiva, produziu e entregou resultados valiosos, e, principalmente, que é uma medida que não tem custo nenhum para o governo ou para a sociedade”, observa ele.

José Vicente também é membro do conselho editorial do jornal Folha de S.Paulo e comentarista da TV Cultura. Por ocasião dos dez anos da promulgação da lei, ele concedeu entrevista ao site da Fundação FEAC. O bate-papo é o primeiro da série FEAC Debate, criada pela Fundação para aprofundar a discussão do tema nos próximos meses. Confira, abaixo, na íntegra:

Quais foram os principais avanços trazidos pela Lei de Cotas?

José Vicente – Já tínhamos algumas ações esparsas, sobretudo depois da Constituição de 1988. Mas um dos maiores avanços com a Lei de Cotas é termos, pela primeira vez, uma política que alcança dez anos de atuação, dentro dessa agenda. Mas é preciso considerarmos também que algumas universidades públicas já começaram a adotar ações afirmativas nesse sentido bem antes, há uns vinte anos. Então nesse período, conseguimos manter uma política focada na inclusão de negros na universidade, coisa que nunca tínhamos tido antes.

O segundo avanço é que conseguimos superar o limite até então intransponível que era não reconhecer que havia o racismo e que ele produzia prejuízos sociais. As cotas confirmaram que no Brasil não existe democracia racial coisa nenhuma. E que tem racismo, que ele é estrutural e estruturante, que proporciona tratamento diferenciado entre negros e brancos. A política de cotas é uma pesquisa de campo para comprovar com todas as métricas essa realidade.

“As cotas confirmaram que no Brasil não existe democracia racial coisa nenhuma. Tem racismo, ele é estrutural e estruturante, e proporciona tratamento diferenciado entre negros e brancos”.


O terceiro aspecto é que havia uma resistência de construir uma política pública que pudesse produzir ao final um embate entre negros e brancos e com isso criar um clima de conflito. E o que vimos nesse período de implantação da Lei de Cotas é que não teve qualquer tipo de conflito. Pelo contrário, essa política foi implementada de forma pacífica, tranquila.

Qual o impacto na comunidade universitária?

José Vicente – Essa política pública produziu um impacto profundo no ambiente das universidades, sobretudo as públicas federais. Elas tiveram que se adequar para acolher e tratar os estudantes atendidos pela política de cotas. Com isso, além de ter ficado mais diversificada, a universidade foi desafiada a adequar suas ferramentas de gestão, criar mecanismos para garantir a permanência desse público, criar núcleos de estudos afro-brasileiros, produzir pesquisas para compreender esse processo de transformação e o impacto de tudo isso na sociedade. 

Por que 10 anos após a aprovação da Lei de Cotas, ela ainda enfrenta resistência (segundo Datafolha, 34% dos brasileiros são contra)?

José Vicente – A meu ver, houve uma melhora. Quando a Lei de Cotas foi lançada, a maioria era contra. Esse porcentual de 34% é uma vitória. Agora temos uma minoria. Nem podemos querer unanimidade em uma questão que padece de uma incompreensão e de uma resistência histórica.

Quais os principais desafios para os próximos 10 anos?

José Vicente – Em nenhum momento os propósitos que precisam ser alcançados do ponto de vista da equalização entre negros e brancos no nosso país se resumem a cotas para jovens negros nos bancos escolares. Nessa perspectiva, precisávamos ter cotas para professores, para dirigentes, para os ambientes de pesquisa, para que, de fato, a universidade pudesse espelhar a diversidade que está estabelecida em nosso país. Estamos celebrando a presença dos negros nos bancos escolares, quando o resto ainda não foi obtido. Tem todo o resto desse caminho para ser alcançado.

Esse jovem negro com diploma universitário precisa de acesso ao mercado de trabalho. E temos problemas fabulosos no nosso mercado de trabalho, que tanto quanto a universidade é altamente excludente e seletivo no que diz respeito à competição entre negros e brancos. Educação, em nosso país, significa a chave do mercado de trabalho. Então é preciso fazer ações no mercado de trabalho também, porque as cotas nas universidades, sozinhas, não cumprem os objetivos de promover a transformação econômica, financeira, profissional e pessoal desses jovens.

Neste cenário, como evitar a evasão e garantir ao jovem a conclusão do curso?

José Vicente – A questão da permanência na universidade também é um desafio. Estamos padecendo de dez anos de falta de mobilidade para a maioria das pessoas, estamos com uma economia que não cresce e uma inflação que não cede e tivemos ainda uma pandemia que produziu um strike em toda a sociedade. E esse jovem só pode permanecer na universidade se tiver um suporte e um apoio econômico-financeiro para isso.

Essa questão a sociedade ainda não conseguiu conduzir adequadamente. Não há ferramentas de manutenção desse jovem, sobretudo para as carreiras que têm custos mais altos, como ser engenheiro, advogado, médico. O jovem pobre da periferia – pois como é bom lembrar, as cotas atendem jovens com até 1 salário-mínimo e meio de renda – tem no máximo o vale transporte para ir e voltar da universidade.

Esse jovem muitas vezes está numa universidade em que precisa permanecer praticamente em tempo integral e ainda é preterido no mercado de trabalho. Ele está estudando, especialmente no caso dos negros, e não tem acesso ao mercado de trabalho. Tudo isso junto coloca a necessidade de que o governo disponibilize os recursos de manutenção desse jovem no ensino superior até a sua formação.

A Lei de Cotas previa uma revisão ao completar dez anos. Tem juristas que dizem que se essa revisão não for feita ela perde a eficácia. Outros dizem que não, ela continua valendo. Como o senhor enxerga essa questão?

José Vicente – Tem razão os que orientam que não haverá uma cessação da lei. O que a lei diz é que, passados esses dez anos, é necessário um processo de revisão para até conhecer e detectar os aprimoramentos que qualquer política pública precisa ter.

Essa avaliação é importante para saber o que precisa ser melhorado, aprimorado, modificado para que a política continue atendendo os seus propósitos. Acho que não existe qualquer risco de a lei deixar de existir por conta do não cumprimento dessa revisão no prazo previsto.

“Não existe qualquer risco de a lei deixar de existir por conta do não cumprimento dessa revisão no prazo previsto”.


O que precisaria ser aprimorado nessa lei? Ela precisaria avançar em que sentido?

José Vicente – Uma das necessidades é essa da permanência. Sem meio para o jovem permanecer na universidade ele vai evadir e vamos perder o investimento que se fez nesse jovem até então. Em segundo lugar, temos a necessidade de garantir que esse indivíduo possa aprofundar, aprimorar ou ampliar a sua qualificação para outras áreas do conhecimento universitário.

 Ainda não tem uma previsão legal que garanta o acesso desse público ao mestrado, doutorado, pós-graduação, ao ambiente de pesquisa. Também seria necessária uma previsão legal que possa considerar inclusive o acesso desse público a espaços que já estão disponibilizados no governo. Sobretudo, tem muitos estágios governamentais, muitos cargos comissionados que poderiam usufruir desse conhecimento.

O terceiro aspecto importante é que a Lei de Cotas continua sendo objeto de muita fraude. E não temos uma legislação clara de como devem ser processados e responsabilizados esses transgressores. Além disso, o processo de definição da autodeclaração não tem uma padronização, cada universidade cria o seu.

“Não acredito em retrocesso. Parece haver um consenso de que a lei continua sendo positiva, que ela produziu e entregou resultados valiosos”.


No Congresso existem pelo menos 40 projetos que alteram trechos da Lei de Cotas já existentes, incluem novas regras ou até acabar com as cotas. O senhor acredita que há riscos de retrocesso?

José Vicente – Não acredito em retrocesso. Parece haver um consenso de que a lei continua sendo positiva, que ela produziu e entregou resultados valiosos, de que é importante combater essa segregação e promover a inclusão e a diversidade e, principalmente, que é uma medida que não tem custo nenhum para o governo ou para a sociedade.

Essa política permite até dar conta de um desafio social para o nosso país que é alcançar o que o Plano Nacional de Educação determina que é ter 30% dos jovens em idade escolar nas universidades. Mesmo com as cotas, nós sequer chegamos a 10%, quando no Chile são 30%, na Argentina são 40% e no México são 38%. E nos países do primeiro mundo, Estados Unidos, França, Alemanha são 68% dos jovens.

Por Iracy Paulina

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