Discutir direitos reprodutivos faz parte do exercício da cidadania

Por: GIFE| Notícias| 24/06/2002

Lançado pela Fundação MacArthur, o livro Direitos Reprodutivos no Brasil, escrito pela advogada Miriam Ventura, apresenta uma análise dos principais instrumentos legais e políticos para defesa, garantia e ampliação dos direitos reprodutivos, além de um pequeno relato histórico de sua construção.

Em entrevista ao redeGIFE, a autora conta como surgiu a idéia da publicação, explica quais as principais formas de violação desses direitos e discute as questões do aborto, da mortalidade materna e da ação de entidades civis em torno do tema.

redeGIFE – O que são direitos reprodutivos?
Miriam Ventura – Os direitos reprodutivos constituem-se de certos direitos humanos reconhecidos nas leis nacionais e internacionais, que possuem a função instrumental de estabelecer direitos e obrigações do Estado para o cidadão e de cidadão para cidadão, em relação à reprodução e ao exercício da sexualidade.

redeGIFE – Como surgiu a idéia de fazer o livro?
Miriam – No final do ano 2000, a Fundação MacArthur convidou-me para elaborar um diagnóstico para seu Comitê Assessor sobre a situação dos direitos reprodutivos no Brasil. O relatório identificou a ausência de trabalhos que abordassem, de forma ampla, como o direito brasileiro reconhece e garante os direitos reprodutivos, o interesse de ativistas e profissionais sobre o tema e a necessidade de difundir a idéia de direitos reprodutivos, de forma a incorporá-la na agenda dos diversos movimentos sociais como estratégia para construção de um direito efetivo. A MacArthur, seguindo sua tradição de incentivadora de experiências sociais inovadoras, decidiu editar e atualizar o relatório para publicação na forma de livro.

redeGIFE – Quais os assuntos abordados?
Miriam – O livro analisa os principais instrumentos legais e políticos para defesa, garantia e ampliação dos direitos reprodutivos, oferecendo opções de interpretação das diversas leis nacionais e internacionais sobre o tema, bem como um sucinto relato histórico da construção desses direitos. A proposta foi identificar e reunir em um único texto esses instrumentos, fornecer elementos para uma adequada interpretação dos direitos reprodutivos na perspectiva dos direitos humanos e possibilitar o uso do direito como instrumento de intervenção nas políticas públicas, pelos movimentos sociais e demais segmentos da sociedade.

redeGIFE – Como os direitos reprodutivos são abordados na legislação brasileira? Essas leis são adequadas?
Miriam – De forma bastante genérica posso afirmar que a legislação brasileira trata o tema de forma adequada. O nosso grande desafio é implementar, na prática, os avanços obtidos no plano legal. Porém, temos algumas questões que merecem reforma ou interpretação apropriada para alcançarmos a almejada igualdade e equidade nas relações pessoais e sociais, necessárias à efetivação dos direitos reprodutivos. Dentre elas, posso citar a criminalização do aborto pela legislação penal e a perspectiva negativa com que as leis tratam a sexualidade das crianças e adolescentes, por exemplo, omitindo-se em relação à obrigatoriedade de serviços de saúde e educação sexual e reprodutiva para esse segmento. No livro, identifico outros obstáculos.

redeGIFE – Qual sua opinião sobre o aborto e sobre a legislação que diz respeito a ela?
Miriam – O aborto é uma questão de direito individual. Nossa legislação penal o considera crime contra a vida, abrindo duas exceções para sua realização: quando a gravidez for resultado de estupro e quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. Infelizmente, durante mais de 60 anos as mulheres não tiveram acesso a esse direito através do sistema público de saúde. A partir de 1998, com a normatização pelo Ministério da Saúde dos procedimentos para prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes, no âmbito do SUS, conquistamos parte do direito fundamental à livre escolha. A descriminalização do aborto deve ser encarada como uma questão de direitos humanos e tratada na dimensão política que merece, como internacionalmente reconhecido.

redeGIFE – Há no Brasil muitas violações aos direitos reprodutivos? Quais são os casos mais recorrentes?
Miriam – Sim. Os mais recorrentes são violência sexual, dificuldades de acesso à assistência à saúde sexual e reprodutiva, deficiência dos serviços disponíveis, ausência de programas e serviços sociais de apoio à maternidade e paternidade, entre outros.

redeGIFE – Os altos índices de mortalidade materna no Brasil estão ligados à violação de algum dos direitos reprodutivos?
Miriam – A morte materna evitável revela, por si só, uma das maiores violações de direito: o direito fundamental à vida. Dentre as mais graves violações, identificamos as dificuldades de acesso à assistência à saúde, deficiência dos serviços disponíveis, ausência de programas e serviços sociais de apoio à maternidade e o abortamento clandestino (em razão da criminalização, que causa a morte, principalmente das mulheres mais pobres).

redeGIFE – Na sua opinião, qual o motivo para somente em 2000 ter sido instalada uma CPI para apurar as causas da mortalidade materna? Com as conclusões, os números devem cair?
Miriam – São muitos os motivos. Dentre eles, acredito que a naturalidade com que a morte materna é visualizada pela sociedade seja um dos grandes obstáculos. A ausência de vontade política para tratar de temas que revelam a profunda desigualdade social e de poder existente no Brasil. A CPI revelou e comprovou a necessidade de tratar a mortalidade materna para além dos serviços de saúde, apontando algumas de suas raízes sociais. Acredito que as conclusões só surtirão o efeito desejado se houver uma pressão dos movimentos e segmentos sociais organizados para o cumprimento das recomendações.

redeGIFE – Até que ponto a atuação de entidades civis em projetos de orientação sobre direitos reprodutivos pode auxiliar na mudança de leis que necessitam de reformulação?
Miriam – O ativismo político é a seiva dos direitos humanos. Sem ele não há transformação ou avanços. Hoje, temos a possibilidade de apresentar projetos de lei diretamente na Câmara dos Deputados, de acompanhá-los através da internet, nos mobilizando publicamente quando discordamos ou concordamos, de exigir a regulamentação e implementação de direitos reconhecidos no plano nacional e internacional através do Poder Judiciário, de intervir a partir dos Conselhos de Saúde. Enfim, temos muitos instrumentos que nos possibilitam participar objetivamente das políticas públicas. Instrumentos conquistados pela sociedade civil organizada, ao longo de nossa história, e incorporados à Constituição Federal de 1988.

redeGIFE – Que outras atividades podem ser realizadas para o tratamento da questão dos direitos reprodutivos, além de disponibilizar à população publicações que facilitam a compreensão das leis?
Miriam – Projetos educacionais, comunitários, empresariais e governamentais que permitam a reflexão. Atividades que rompam com a cultura do silêncio que envolve as questões da sexualidade e da reprodução e promovam uma ampla discussão dos direitos reprodutivos, para além da assistência à saúde, mas como uma questão de cidadania plena.

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