É tempo de discutir a cultura da doação

Por: GIFE| Notícias| 25/11/2013
Por Paulo Castro*
Quando a história do investimento social privado brasileiro for contada, em duas ou três décadas, possivelmente, haverá um capítulo dedicado aos grandes desafios vividos neste início do século XXI. Como pano de fundo de um conjunto amplo de discussões, está o desenvolvimento de uma compreensão mais profunda sobre o significado da cultura de doação.
A doação é um campo com muitas dissonâncias, até porque é recente e, portanto, necessita de um ajuste de foco e de novos pontos de vista. No Brasil, por exemplo, o conceito de doação, frequentemente, se revestiu de uma conotação assistencialista, caracterizada pelas relações assimétricas entre os atores e simbolizando, para alguns, uma modalidade de descompromisso social – como o de quem prefere pagar para não precisar agir.
Mas é possível ampliar e rever esta perspectiva, questionando seus pressupostos. Em primeiro lugar, porque doar não se resume a aportar cifras. É possível também doar recursos técnicos e humanos. Da mesma forma, a ideia de doação não está dissociada das causas que elegemos, no âmbito das empresas. Doar não é uma forma de omissão, mas sim de reconhecimento de pautas sociais, legitimando-as e, principalmente, fortalecendo os atores sociais envolvidos.
Isso é particularmente importante quando se trata das organizações que atuam no campo dos direitos humanos, fragilizadas num contexto social, econômico e político, com demandas, hoje, mais visíveis para a sociedade, como o direito à educação e à saúde.
Ao destinarmos recursos para a promoção da dignidade humana, estamos, sim, reconhecendo os brasileiros como detentores de um conjunto de direitos, o que contribui para o desenvolvimento da sociedade como um todo. Esta não é uma visão de benemerência, pois imediatamente nos coloca como corresponsáveis neste processo. Ato fundado no altruísmo, doar é (também) participar.
Porém, para que seja de fato uma forma mais plena de participação, é preciso que a doaçãoesteja a serviço de uma relação mais horizontalizada e de diálogo entre investidores e organizações sociais. Este também é um tema muito contemporâneo, que se liga à crise das ONGs brasileiras. É preciso conscientizar os investidores privados para que sua atuação não crie uma dinâmica instrumentalizada de relacionamento entre as empresas (diretamente ou por meio de seus institutos e fundações) e as organizações sociais, marcada pela prestação de serviços.
Ainda há outros pontos importantes a serem debatidos neste movimento de ampliação do conceito de doação. Entre eles, está a necessidade de uma distinção mais clara entre a natureza dos negócios das empresas e a pauta de atuação de seus institutos e fundações, pois há não só possibilidades, mas também limites nesta convergência.
Uma das faces mais comuns da distorção de papéis é a utilização da figura dos institutos e fundações para atuar de forma compensatória sobre os efeitos das ações diretas da empresa. Se defendemos que os investimentos sociais privados precisam transcender os limites da atuação direta do negócio, na prática, isso também quer dizer que os impactos da empresa sobre seu entorno precisam ser compensados preferencialmente pelas próprias empresas.
Há outra discussão correlata, que é a aplicação de mecanismos legais de isenção fiscal. É legítimo utilizar os recursos provenientes da renúncia fiscal. O que não se pode fazer é considerar essas verbas como investimento privado de institutos e fundações, na medida em que são recursos essencialmente públicos.
A cultura da doação recoloca, portanto, perguntas fundamentais da ação social. Precisamos saber o que nos move, compreender o contexto da ação, saber a que se destina e quais serão as consequências dos recursos que disponibilizamos. Pensar sobre isso é uma excelente porta de entrada para que empresas e seus acionistas compreendam o cenário do investimento social privado e sua importância para o país.

*Paulo Castro é economista e diretor-executivo do Instituto C&A
Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião do GIFE ou de seus associados. Sua veiculação nos canais de comunicação do GIFE tem como objetivo estimular o diálogo sobre os desafios e oportunidades para o campo social, tal como refletir sobre as tendências do setor.

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