Entrevista com Theo Sowa

Por: GIFE| Notícias| 16/10/2013

“Todos temos poder, diferentes tipos de poder. Quando não reconhecemos esse poder é mais fácil que os outros passem por cima de nós”.

Como doador e arrecadador de fundos, o Fundo de Desenvolvimento das Mulheres Africanas (AWDF) conhece os dois lados da moeda. Assim, Theo Sowa, Diretora Executiva do AWDF e presidente da Rede de Doadores Africanos, tem pontos de vista muito claros sobre o uso e o abuso do poder. Caroline Hartnell perguntou a ela qual o poder do AWDF e como o fundo busca usá-lo com responsabilidade. Perguntou, ainda, sobre a importância das mulheres africanas na criação de sua própria agenda.

Como um fundo de mulheres africanas que trabalha “para a autonomia das mulheres africanas e para a promoção e realização de seus direitos”, o AWDF enfrenta várias dinâmicas de poder. Qual o poder do próprio AWDF?
Há tantos tipos diferentes de poder. Eu acho que fazer parte de movimentos pelos direitos das mulheres na África e internacionalmente nos dá um grande poder. Nós temos muito conhecimento sobre o que está acontecendo na vida das mulheres e das organizações africanas, o que nos dá poder quando tentamos influenciar a tomada de decisões nas arenas nacionais e internacionais. Isso nos dá o poder de fazermos pressão pela mudança. Por exemplo, podemos usar nosso conhecimento para orientar outras fundações para que façam bons investimentos que sejam capazes de apoiar os tipos de mudança social que queremos, ao invés de miná-los – o que é muito fácil de acontecer. As informações que temos, nossa proximidade ao que está acontecendo nas vidas das mulheres, fortalecem nossa legitimidade.

Também temos poder porque somos uma organização doadora. Esse é o tipo de poder que precisamos ter muito cuidado, já que podemos facilmente abusar dele. Um de nossos pontos fortes como organização é nossa proximidade com a base. Se abusarmos de nosso poder, perderemos esses fortes vínculos.

Não consigo pensar em outro fundo de mulheres que exerça esse tipo de influência. Como o AWDF conseguiu isso?
Eu acho que os fundos de mulheres têm influência, mas nem sempre a usam efetivamente. Nós não temos “propriedade” suficiente de nossos pontos fortes e realizações. Se as pessoas não entendem o que você sabe, elas não vão valorizar o que você tem a dizer. Geralmente nós, mulheres, subestimamos nossa informação, subestimamos nossos pontos fortes.

Outro ponto é que o AWDF foi o primeiro fundo de mulheres, em todo o continente, administrado por mulheres africanas e voltado a elas. Isso nos dá um posicionamento único no continente e em nível internacional. As três fundadoras desenvolveram um princípio: “como mulheres africanas somos fortes, temos conhecimento, temos nutrido a mudança social por muito tempo”, então todos do AWDF aprenderam a ter certo nível de poder.

Como doadores, vocês têm relações intrinsecamente desiguais com seus beneficiários. O AWDF tem formas de compensar isso?
Nós reconhecemos as dificuldades da relação, pois já estivemos no lado de quem recebem nas relações desiguais de poder, já que precisamos levantar cada centavo que doamos. Alguns doadores não fazem bom uso do poder e eu acho que isso faz com que tenhamos mais cuidado ainda.

Nós tentamos lidar com essa questão usando várias políticas internacionais para garantir que nossas decisões sejam justas e transparentes e que, se alguém estiver abusando de seu poder, ele seja pego pela equipe. Nós mantemos bom contato com nossos beneficiários, inclusive fazendo visitas ao local. Essas visitas ajudam nossa equipe a desenvolver laços com muitas organizações beneficiárias. Eu acho que isso dificulta o abuso de poder porque há um rosto, uma voz e uma série de atividades que podemos visualizar quando tomamos uma decisão.

Nós também fazemos consultas regulares com nossos beneficiários. Por exemplo, no ano passado tivemos uma conferência sobre governança, paz e segurança, que envolveu especialistas africanas e nossos beneficiários. Nós falamos sobre o que as pessoas estavam fazendo, como estavam fazendo, quais eram os desafios. Nós percebemos que o AWDF precisava mudar ou melhorar. Para isso, estamos trabalhando em cada uma de nossas áreas temáticas. Quando criamos nosso último plano estratégico, fizemos consultas com várias organizações de mulheres para nos ajudarem a decidirmos sobre as áreas prioritárias.

Nós reunimos um grupo interessante de mulheres africanas de todo o continente, que trabalham em diferentes setores e nos ajudaram a criar as bases. Temos assessoras em toda a África. Mulheres que nos ajudam a nos mantermos atualizadas sobre os principais problemas e a continuarmos a sermos relevantes. A ideia é ter sistemas formais e informais para verificarmos o que nossos beneficiários estão achando de nossas ações, e não simplesmente presumir que sabemos tudo. Trata-se de falar e ter responsabilidade por nossas falhas e usar as lições para aprendermos e melhorarmos. Mas também se trata de assumirmos a propriedade de nossas realizações.

E como é sua relação com seus próprios doadores?
Nem sempre é fácil. Alguns doadores são maravilhosos para trabalhar: entendem claramente os problemas e há um entendimento mútuo sobre os fins que queremos alcançar. Eles têm poder porque são donos das finanças, mas eles o exercem com leveza.

Outros não. Há uma linha tênue sobre a qual você deve andar. Às vezes fazer os doadores recuarem não é necessariamente um abuso de poder, mas não estamos usando esse poder bem, é difícil. Você sabe que quer os fundos e poderia fazer coisas muito úteis com ele, mas não quer dar milhões de voltas desnecessárias. Às vezes isso significa que você vai ter que ir embora. Nós tentamos não fazer isso, porque nesse momento as organizações de mulheres na África estão em uma batalha por financiamento. Em nível internacional, fala-se muito de investir em mulheres e meninas, sobre a importância das mulheres para alcançar as MDM e incentivar o desenvolvimento, mas quando você vê para onde o dinheiro está indo, ele não está indo para as organizações de direitos das mulheres que têm conseguido promover a mudança tão bem.

Às vezes eu acho que é importante apresentar sua perspectiva e cair fora. Se precisamos fazer muito esforço para que um doador reconheça que deve fazer as coisas de outra forma, isso quer dizer que ele não está preparado para nos financiar. Eu não ligo, desde que eles então invistam no Fundo Global para Mulheres ou no Mama Cash ou em outro fundo de direitos das mulheres, para que as mulheres recebam aquele dinheiro. Eu prefiro que eles nos deem o dinheiro, mas fico feliz se eles derem para fundos irmãos, com metas semelhantes.

Os problemas com doadores africanos são diferentes dos problemas com doadores internacionais?
Eu não acho que haja uma separação clara entre africanos e não africanos. Há diferentes tipos de personalidade e realmente depende de com quem você está lidando. Definitivamente há pessoas que querem mandar na sua agenda, dizer o que você deve fazer. Se você estiver interessada em uma área que queremos financiar, então podemos trabalhar juntas. Mas se alguém chega até nós e diz que quer que façamos algo que não queremos, nós mostramos a direção certa e seguimos em frente. Quando tudo é transparente, fica fácil. Quando há menos transparência, pode ser mais difícil. Alguns doadores não dizem o que realmente querem e é como caminhar na areia.

Às vezes há diferenças na abordagem. Por exemplo, no AWDF nós logo aprendemos que para apoiar adequadamente as organizações de mulheres de pequeno e médio porte nós precisaríamos incluir a capacitação em nossas doações, buscando fortalecer o desenvolvimento institucional e a liderança, assim como a capacidade programática. E o ativismo permeia todo o nosso trabalho, porque precisamos de marcos normativos e de direito que sejam fortes para tornar a doação mais eficiente e seu impacto mais sustentável. Alguns (não todos) doadores africanos, colegas nossos, chegaram a conclusões semelhantes.

Outra diferença é uma aparente tendência entre os doadores internacionais a fazerem menos e maiores doações para ter maior impacto e eficiência. Se isso não for feito com cuidado, corremos o risco de deixar muitos grupos eficientes sem acesso ao apoio. O AWDF e as fundações africanas que pensam da mesma forma continuarão a investir em iniciativas menores e comunitárias, que oferecem serviços vitais e permitem a participação cidadã na tomada de decisão local – assim como nas organizações e iniciativas maiores que podem aumentar a mudança.

Você acha que há desafios especiais porque vocês são um fundo de mulheres administrado por mulheres?
Nós temos um nicho único que às vezes funciona em nosso favor e às vezes contra nós. Às vezes você sabe que os doadores estão dando muito mais fundos a outras organizações do que para você, apesar de não haver qualquer diferença nos resultados. Você tem que aceitar isso. Nós tivemos um doador que fazia isso e depois de alguns anos nós conseguimos chegar nele e dizer: “por que vocês só nos dão um terço do que dão para os outros”? E então eles aumentaram o valor. Parte do que nós do AWDF estamos tentando fazer é mudar as premissas das pessoas, tirar as pessoas dos estereótipos negativos. Nós dizemos aos doadores: “as mulheres africanas e as organizações de mulheres da África estão fazendo coisas incríveis”.

Você acha que ter seu próprio orçamento ajuda em sua relação com outros doadores?
É sabidamente difícil levantar fundos para o orçamento, mas isso faz uma grande diferença. Muitas pessoas estão interessadas em financiar programas, mas não os custos principais. Então, ter um orçamento para financiar nossos custos principais nos dá estabilidade e facilita parcerias mais igualitárias.

Nós ainda temos um longo caminho a percorrer. Estamos felizes com o orçamento que levantamos até o momento, mas precisamos de pelo menos quatro vezes esse valor para financiar os custos principais do AWDF.

Qual a importância de as mulheres terem sua própria agenda?
É essencial. Não é uma luta de mulheres contra homens. Trata-se de as mulheres criarem agendas que atendam a nossos interesses e nossas interpretações do interesse da comunidade e nacional. Nossa experiência nos diz que se outras pessoas tomam decisões que afetam a vida das mulheres africanas, muitas dessas decisões serão míopes ou irrelevantes. Não estou dizendo que as mulheres africanas sempre tomarão as decisões certas, mas muitos círculos internacionais de tomada de decisão carecem da voz, do conhecimento e da sabedoria das mulheres africanas. Isso quer dizer que, coletivamente, tomamos decisões piores do que poderíamos. Há aquele dito “nada para nós sem nós” e me surpreende até que ponto as pessoas ignoram isso quando se trata das mulheres africanas.

Há dignidade em influenciar nosso próprio destino. Por muito tempo as pessoas tiveram estereótipos negativos das mulheres africanas e eu acho que o AWDF é uma parte realmente importante na mudança desse estereótipo, dizendo às pessoas “abram seus olhos e vejam nossos pontos fortes”.

Quem cria a agenda da filantropia africana hoje em dia?
O continente tem muitas agendas diferentes de filantropia. Há muito tempo a filantropia é forte na África, mas não é devidamente documentada ou valorizada. Por um lado, você tem os Ibrahims e os Motsepes, pessoas de grande valor que criaram fundações e doam grandes montantes. Por outro lado, temos doações de milhões de africanos comuns, que vêm da solidariedade e não necessariamente de um excedente e, portanto, até pessoas que têm muito pouco fazem doações. Gerry Salole do Centro Europeu de Fundações tem uma ótima frase, que diz que “não há um africano bem sucedido que não tenha se beneficiado da filantropia africana em algum momento de sua vida”. A filantropia está enraizada na África.

O AWDF é membro da Rede de Doadores Africanos, que divulga uma grande variedade de atividades filantrópicas no continente e tenta promover um ambiente favorável para a doação. Há muita filantropia na África, mas precisamos facilitá-la e torná-la mais eficiente para que as pessoas possam doar.

Como palestrante de uma sessão do AGN sobre filantropia Norte-Sul, realizada no ano passado, você falou sobre dar impulso à solidariedade. Como vocês impulsionam a solidariedade da assistência internacional e, ao mesmo tempo, se mantêm uma agência local?
Você faz isso sendo realmente claro sobre suas agendas, valores e princípios antes de começar a levantar recursos. Para o AWDF, isso significa que precisamos conversar constantemente com as organizações de mulheres para garantir que estejamos em contato e realmente representemos o que está acontecendo. Nós precisamos garantir que não iremos nos tornar só mais uma voz falando para as mulheres ao invés de falar com elas.

Também precisamos reconhecer quando os outros compartilham nossas visões e valores e, ao mesmo tempo, devemos ser mais proativos na promoção de nossas próprias agendas dizendo “é isso que queremos que vocês façam, essa é a mudança que queremos ver”. É difícil porque, falando honestamente, há alguns doadores que querem dar os recursos, mas abusam do poder que isso dá a eles. Eles não têm muita ideia sobre o que está acontecendo na base, mas acham que podem ditar o que deveria acontecer. Eu acho que isso é totalmente errado. Você também tem outros doadores que são absolutamente inacreditáveis, que realmente entendem as noções de acompanhamento e solidariedade. É uma batalha constante.

O poder é sempre uma coisa ruim?
Como mulheres, sempre aprendemos que ter poder de alguma forma nos muda ou é errado. Todos temos poder, diferentes tipos de poder. Quando não reconhecemos esse poder é mais fácil que os outros passem por cima de nós. Nós precisamos conhecer o poder que temos e exercê-lo com responsabilidade. Quando você não faz isso, é um verdadeiro desastre. Não se trata apenas de fazer doação. Trata-se de ativismo, de como educamos nossos filhos, trata-se de poder físico, poder intelectual, poder emocional. Não somos boas em falar de poder e, como não falamos sobre isso, não aprendemos a usá-lo bem.

Tudo se resume em entender o poder e como usá-lo construtivamente. Os doadores precisam ter cuidado, porque é muito fácil abusar do poder. Já vi exemplos de grandes fundações que vão a pequenas comunidades. As pessoas saem e cantam uma canção de boas vindas e contam a eles o que está acontecendo no vilarejo. Mas ninguém conta a verdade ao doador, porque eles têm medo que ele pare de dar o dinheiro.

E no caso de alguns intermediários, aqueles que mediam as discussões entre os grupos locais e os doadores externos, nem sempre eles têm interesse em que o povo local diga exatamente o que está acontecendo ou exatamente quais são ou não os desafios. Mais uma vez, trata-se de não fazer bom uso do poder. Se as pessoas que exercem mais poder em determinadas situações não reconhecerem esse poder e usarem-no adequadamente, elas acabarão prejudicando a si mesmas e a todos que as cercam.

Mais informações disponíveis em:
www.awdf.org
Entre em contato com Theo Sowa em [email protected]

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