Escola precisa olhar para as desigualdades neste reinício, dizem especialistas

Por: Fundação FEAC| Notícias| 04/07/2022

Quando a crise sanitária de Covid-19 parou o país, em março de 2020, o grande desafio da educação vinha sendo a implementação da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) Brasil afora. O educador mineiro Aldeir Rocha, mestre em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), ministrava oficinas em dezenas de municípios brasileiros, em redes públicas e privadas, para discutir e ajudar a colocar em prática a organização curricular por habilidades e competências, que incorpora o conteúdo, mas vai muito além dele.

“A partir daí surgiu a ideia de colocar isso tudo em um livro. Foi quando veio a pandemia e trouxe outras preocupações”, conta Rocha, que divide com a ex-secretária de Educação de Salvador e ex-coordenadora de Educação do Unicef Maria de Salete Silva a autoria do livro A escola no pós-pandemia: retorno ou reinício? (editora Autografia), lançado no final de 2021.

Com o isolamento social e o ensino realizado a distância por dois anos e meio, as desigualdades que já existiam se aprofundaram, a defasagem no aprendizado se ampliou de forma dramática, assim como a evasão escolar.

“Diante deste cenário, pensamos que o retorno às aulas não poderia ser uma simples volta ao ponto em que paramos, mas um reinício para uma nova visão do que pode ser a escola, o currículo, a formação dos professores, e especialmente a educação integral. Esse foi o mote do livro”, diz Salete.

Os autores concederam entrevista, por telefone e WhatsApp, à Fundação FEAC:

Como a pandemia poderia ser uma oportunidade para aprofundar mudanças na Educação e avançar?

Aldeir Rocha – O que eu percebi ao longo deste tempo é que, embora muitas escolas públicas e privadas até já tivessem um currículo organizado por habilidades e competências ou objetivos de aprendizagem, ainda havia uma dificuldade muito grande de fazer com que este fosse de fato o eixo organizador do planejamento, aula e avaliação.

O conteúdo ainda ocupa um espaço central, estratégico, quando as pessoas vão planejar, dar aula ou avaliar. Você tem lá um documento curricular ordenado por competências e habilidades, mas se você pergunta a um professor ou professora, que trabalha há três ou quatro anos na quarta série do ensino fundamental, com o que ela trabalha no terceiro bimestre com alguma facilidade esse profissional te enumera uma lista de conteúdos.

Mas se a pergunta for quais habilidades, quais domínios cognitivos devem ser desenvolvidos ali, aí o profissional precisa recorrer ao documento. Ou seja, sempre me parece faltar uma intencionalidade pedagógica clara para trabalhar outras dimensões que não o conteúdo.

Maria de Salete Silva – A pandemia nos ajudou a discutir o conceito que colocamos no título de que a volta pode ser um retorno ou um reinício. E a gente puxa para o conceito de reinício. Não devemos apenas voltar e recomeçar de onde paramos.

“Não podemos reduzir a proposta ao conteúdo quando, na verdade, você não quer que os alunos assimilem apenas conteúdo e sim que desenvolvam a capacidade de utilizar, ressignificar, avaliar, comparar e analisar, para dar mais sentido ao que ele está aprendendo.”


Não podemos reduzir a proposta ao conteúdo quando, na verdade, você não quer que os alunos assimilem apenas conteúdo e sim que desenvolvam a capacidade de utilizar, ressignificar, avaliar, comparar, analisar, para dar mais sentido ao que ele está aprendendo. Agora, o que está colocado é tudo aquilo que a gente já estava discutindo antes da pandemia, numa situação de ruptura.

O reinício não é apenas a implementação ou enfrentamento dos desafios da BNCC, mas compreender que os desafios que ela nos coloca são a melhor resposta para uma retomada em um outro patamar, com a clara intencionalidade pedagógica que vai nos impulsionar para avançar mesmo.

Desenvolver a dimensão cognitiva deve ser uma prioridade?

Aldeir Rocha – Sim. A dimensão do conhecimento está bem tratada, vem sendo bem conduzida. A dimensão afetiva e social vem tendo atenção nos últimos anos, tem muita coisa no mercado nessa dimensão socioemocional, mas a dimensão cognitiva ainda fica um pouco de lado. Não há uma percepção clara da relevância disso. E é muito importante.

Por exemplo, um professor relata que “o aluno sabe matemática, o que ele não sabe é interpretar os problemas”. Veja, esta é uma dificuldade do domínio cognitivo. Esse “interpretar” é genérico demais. A gente quer saber o que ele não está sabendo fazer: estabelecer comparação? Descrever? Analisar? Avaliar uma situação? É preciso saber.

Quais são outros gaps cognitivos comuns em sala de aula?

Aldeir Rocha – Você pede que o estudante estabeleça uma comparação entre A e B. Via de regra eles escrevem uma lista de características de A e uma lista de características de B. E não comparam. Por aí você percebe que ele desenvolveu a capacidade de lembrar, de descrever, mas ele não sabe comparar. Ou seja, falta algo no âmbito cognitivo. E isso não vem espontaneamente, isso precisa de trabalho intencional por parte da escola.

Exemplo muito comum é o aluno ir fazer uma avaliação, até externa, o Enem ou o Saeb, ou até avaliação da escola mesmo. Ele fica diante de uma questão e pensa: ‘Eu estudei bastante isso aqui, vou me dar bem’. Ao ler a pergunta, ele não consegue responder.

“A preocupação de cumprir a lista de conteúdo é grande e não tem aquele olhar próprio para a dimensão cognitiva.”


O professor explorou muito o tema em relação ao conteúdo, mas não se preocupou se estava tratando isso nos diferentes níveis cognitivos necessários. O aluno às vezes aprende aquele conteúdo, mas cognitivamente ele ficou ali no lembrar, compreender, aplicar e não foi trabalhado com ele um outro nível, um pouco mais sofisticado. E aí ele não tem, e o professor nem percebeu.

E muitas vezes isso não é feito porque não está na pauta do dia. A preocupação de cumprir a lista de conteúdo é grande e não tem aquele olhar próprio para a dimensão cognitiva. Daí a importância de um trabalho intencional, desde a hora do planejamento.

Qual o papel da escola em desenvolver noções de cidadania e sociabilidade?

Maria de Salete Silva – É muito importante entender que habilidades e competências, que são conhecimentos que nós queremos que o cidadão possua, não vão ser construídas quando ele terminar o ensino fundamental ou no ensino médio. Elas são construídas no dia a dia, desde a educação infantil. Com certeza isso vai enriquecer a prática dos professores e das equipes de gestão, o entendimento de como não criar pequenos grupos que não se falam, não se entendem, não convivem.

É preciso até ampliar esta sociabilidade para além das salas de aula. Entender hora do recreio, de alimentação, ida e volta da escola, chegada na escola como momentos importantes no entendimento de que nós somos. A humanidade não existe e não se concretiza com uma soma rígida de indivíduos 1, 2, 3, 4. Esta articulação que existe dentro da sala, o papel de ajuda, apoio que alguns alunos podem dar para outros, tudo isso forma o cidadão, que vê além de si próprio e de sua casa.

O que será mais importante na retomada do ensino?

Maria de Salete Silva –  Não é apenas retomar, mas vamos ver como podemos reiniciar. O maior desafio no momento é ganhar confiança dos adolescentes. Que [o ensino] seja muito mais que aprender um rol de conteúdos.

“O reinício tem de considerar essas diferenças e desigualdades entre as crianças e adolescentes de uma mesma sala de aula, escola, município ou região.”


Nós temos um quadro gravíssimo de evasão escolar, de não aprendizagem ou diferenças e gaps de aprendizagem, e especialmente na sociabilidade da escola, o significado que a escola tem. O reinício tem de considerar essas diferenças e desigualdades entre as crianças e adolescentes de uma mesma sala de aula, escola, município ou região.

Não há como tratar a aprendizagem e a intencionalidade que temos dessa aprendizagem acontecer como se todas as crianças estivessem no mesmo patamar. Há uma grande quantidade de crianças que estavam entrando no processo de alfabetização quando o curso foi interrompido. E considere que essas crianças estarão dois a três anos mais velhas. Quem tinha 5 anos [na pandemia], agora, está com 7 ou 8. É uma necessidade estabelecer estratégias que considerem todas estas diferenças e desigualdades.

Como você vê o homeschooling, projeto em discussão no Congresso?

Maria de Salete Silva – A educação escolar, a sociabilidade e a escola integral dificilmente serão alcançadas numa proposta de homeschooling. Já ouvi pessoas dizendo que a criança tem outros grupos sociais, como a igreja, por exemplo. Mas há um elemento nesta história, que não temos como fugir, que é a intencionalidade pedagógica da escola.

“A educação escolar, a sociabilidade e a escola integral dificilmente serão alcançadas numa proposta de homeschooling.”


A escola é um espaço que concretiza políticas públicas que atendem a diversas dimensões da cidadania, como o direito à alimentação, ao transporte, acesso à leitura e etc. Estas questões fazem parte de uma política pública para educação integral de crianças e adolescentes e são formadoras de consciência de cidadania. Isto é construído numa situação de convivência social, de conhecer sua cidade e se situar na sua comunidade. Não entendo como o homeschooling poderia enfrentar todos estes desafios.

Livro: A escola na pós-pandemia: retorno ou reinício?
Livro: A escola no pós-pandemia: retorno ou reinício?

Lançado no final de 2021, durante a pandemia, o livro aborda a importância dos aspectos cognitivos no cotidiano escolar. Os autores Aldeir Rocha e Maria de Salete Silva propõem uma reflexão de como seria uma educação no período pós-isolamento social e o que as escolas brasileiras devem priorizar, a seu ver, nesse momento. Defendem que redobrar a atenção a esta dimensão é fundamental para reiniciar a jornada presencial. E assim produzir avaliações diagnósticas significativas e construídas numa perspectiva multidimensional. A proposta é que incorporem os conteúdos, mas possam também ir muito além deles.

A escola no pós-pandemia: retorno ou reinício
Editora Autografia
www.autografia.com.br
R$ 34,90
 

Por Natália Rangel

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