A pandemia do novo coronavírus tirou debaixo do tapete as inaceitáveis desigualdades brasileiras

Em entrevista exclusiva ao redeGIFE, Katia Maia, diretora executiva da Oxfam Brasil, falou sobre as desigualdades estruturais que têm sido escancaradas pela crise provocada pela chegada da pandemia de Covid-19 ao Brasil.

Para a socióloga, reforma tributária, renda básica e fortalecimento da democracia e da defesa de direitos são algumas das pautas prioritárias, tanto para a fase de recuperação pós-pandemia, como para enfrentar as desigualdades que estruturam a sociedade brasileira.

Confira a entrevista na íntegra.

redeGIFE: Passados mais de quatro meses desde o primeiro caso de Covid-19 confirmado no Brasil, o cenário é bastante desafiador, chegando a quase 2,5 milhões de pessoas contaminadas e 90 mil óbitos. Para além dos desafios relacionados a prevenção e tratamento, uma série de indicadores escancaram desigualdades estruturais que marcam a sociedade brasileira, bem como demonstram que essas desigualdades podem estar sendo potencializadas frente à crise gerada pela pandemia. Como você avalia esse cenário e quais são os temas e agendas relacionadas ao debate sobre desigualdades que se fazem ainda mais prioritárias no momento atual e por quê?

Katia Maia: A pandemia do novo coronavírus tirou debaixo do tapete as inaceitáveis desigualdades brasileiras. A Covid-19 chegou ao Brasil ainda no final de fevereiro, por meio de pessoas da classe média e alta que visitaram países europeus, e, hoje, se dissemina mais rapidamente nas periferias das grandes cidades e nos municípios do interior do país: 96% das cidades brasileiras registraram casos de Covid; em 13 estados, todos os municípios registram ao menos uma pessoa infectada pelo novo coronavírus. Ao chegar nas periferias, a pandemia atinge milhões de pessoas que vivem aglomeradas, em situação de extrema vulnerabilidade, em habitações precárias, sem saneamento básico e acesso à água. Quem vive nesses territórios também enfrenta outros problemas, como o desemprego e a falta de renda. Sendo o distanciamento social uma das principais formas de combate à propagação da pandemia, muitas pessoas não têm como trabalhar e, assim, obter renda necessária para suas necessidades básicas.

Nesse contexto desafiador, algumas medidas parecem fundamentais para responder ao ‘vírus da desigualdade’. A recuperação dos impactos da Covid-19 implica uma reconstrução social e econômica do país. E, para que isso ocorra, é necessária uma reforma tributária justa e solidária, que enfrente as distorções e privilégios existentes no sistema tributário nacional e que tenha como uma de suas prioridades a redução das desigualdades. Esse tema está na agenda política do Congresso Nacional, no entanto, sob o foco da simplificação e não na redistribuição da conta, que hoje é paga principalmente pela maioria da população que tem menos e pela classe média.

É preciso que haja apoio a uma reforma tributária solidária e redistributiva – no sentido de retirar a tributação do consumo e buscar que quem tem mais, paga mais. Uma reforma simplista está longe daquilo que o país necessita para garantir a retomada de um desenvolvimento econômico que seja socialmente justo. Essa será a primeira prova de aprendizagem, a partir do sofrimento causado pelo novo coronavírus, pela qual as instituições e a sociedade brasileira irão passar. Precisamos de uma economia a serviço da sociedade.

redeGIFE: Apesar do aprofundamento dos desafios econômicos e sociais, a atual crise suscitou entre os diversos setores um movimento amplo de ações coordenadas e colaborativas para enfrentar os efeitos da pandemia e apoiar os setores mais vulneráveis. Nesse contexto, o apoio institucional às OSCs, tema que vem sendo cada vez mais debatido nos últimos anos, inclusive pelo setor do investimento social e da filantropia, ganhou ainda mais relevância e tem se materializado em ações de apoio às organizações comunitárias e de base, que têm tido um papel fundamental para fazer chegar a ajuda na ‘ponta’. Na sua avaliação, como a demanda por fortalecimento econômico e institucional do setor das OSCs se coloca frente à atual crise e também para o planejamento das ações para recuperação no pós-crise?

Katia: O aumento dos fundos destinados à filantropia tem ganhado destaque nesse período de crise que estamos enfrentando. É necessário o apoio a coletivos, comunidades e grupos locais, que estão na ‘ponta’, lidando com os impactos da pandemia nos territórios. Muitas dessas organizações e iniciativas estão ocupando espaços deixados vazios pelo Estado. É importante que esses recursos possam também fortalecer essas organizações locais e as lideranças que estão na linha de frente do combate à Covid. Essas pessoas são agentes de mudança e precisam ser reconhecidas como tal. Doar cesta básica somente não resolve. O desafio que estamos enfrentando é de longo prazo e demanda a valorização e o fortalecimento comunitário, seja nos territórios das periferias urbanas ou em áreas rurais. Esse apoio local e fortalecimento de lideranças deve estar combinado com o apoio a organizações dedicadas a defender políticas públicas. Também é necessário que se reconheça o racismo do nosso país e se priorize iniciativas com comunidades, organizações e lideranças negras. 

Não está em discussão a importância da filantropia protagonizada majoritariamente por grandes empresas, muitas delas com programas robustos e grandes volumes de investimentos. Todas e todos devemos reconhecer a importância disso. Mas é preciso também reconhecer que a filantropia não substitui o Estado. Nesse sentido, precisamos garantir o espaço tributário para aumentar os gastos sociais do país, como mencionei anteriormente. O tamanho das desigualdades que enfrentamos nos coloca esse tema como uma questão ética.

redeGIFE: Quais são os principais desafios no sentido do fortalecimento da sociedade civil e quais recomendações podem ser apontadas ao setor privado, ao poder público e à filantropia e investimento social para avançarmos no tema?

Katia: O desafio é transformar a mobilização para resposta emergencial decorrente da pandemia – extremamente necessária em um cenário no qual o governo federal adotou uma postura negacionista da gravidade do novo coronavírus – em um apoio sustentado na defesa de direitos, redução de desigualdades e fortalecimento da democracia. A crise causada pela pandemia veio se somar a um cenário em que a democracia brasileira estava sob ataque por dentro, vindo do Palácio do Planalto contra outros dois poderes: imprensa e sociedade civil.

A defesa da democracia e da Constituição Federal deve ser uma responsabilidade de todas e todos, não apenas de organizações da sociedade civil e movimentos sociais, englobando inclusive o setor privado. Além disso, é fundamental que o setor privado assuma sua responsabilidade nas definições econômicas que serão feitas no país nos próximos meses. É hora de renunciar aos lucros, dividendos e salários exorbitantes em nome de garantir empregos e condições dignas para trabalhadoras e trabalhadores.

redeGIFE: Assim como a articulação interna dos setores, seja a iniciativa privada, o poder público ou a filantropia e o investimento social privado, a articulação entre os setores também tem ganhado novas experimentações frente à necessidade de otimização dos recursos e soluções. Existem ações realizadas pela Oxfam que apontam para essas novas formas de interlocução e colaboração entre os diversos setores da sociedade? Se sim, como se dão?

Katia: A Oxfam Brasil participa de uma série de coalizões e articulação de atores que fazem parte de setores variados, incluindo sociedade civil, movimentos sociais, frentes populares e outros. Alguns exemplos: 1) Coalizão Direitos Valem Mais: iniciativa que questiona a manutenção da Emenda Constitucional nº. 95, de 2016, que estabeleceu um teto de gastos por vinte anos. Dela, fazem parte mais de 100 entidades, incluindo organizações da sociedade civil, sindicatos, conselhos nacionais, associações, economistas e movimentos sociais; 2) Pacto pela Democracia: iniciativa da sociedade civil voltada à preservação e ao revigoramento da vida política e democrática no país, criada em junho de 2018; 3) Brasil pela Democracia e pela Vida: campanha que visa congregar todos e todas que compreendem como indispensável a defesa da vida nessa pandemia e do Estado Democrático de Direito e suas instituições, de maneira a assegurar, fortalecer e expandir os ainda insuficientes espaços de participação e intervenção social, especialmente entendendo que uma democracia plena no nosso país passa pelo enfrentamento ao racismo; 4) Mais recentemente, a Oxfam Brasil passou a integrar o conselho consultivo da recém-criada Frente Parlamentar Mista sobre Renda Básica, presidida pelo deputado federal João Campos (PSB-PE). Do conselho fazem parte representantes de organizações da sociedade civil (como CUFA e Coalizão Negra por Direitos) e especialistas (como Tereza Campelo, Laura Carvalho, Monica de Bolle e Armínio Fraga, entre outros).

redeGIFEQuais são os aprendizados gerados por essas ações compartilhadas até o momento e como eles podem contribuir para o enfrentamento às desigualdades no país?

Katia: O principal aprendizado é que a democracia e a participação social no Brasil, mesmo que incompleta – pois não está enfrentando o racismo nem o sexismo -, pode ser resiliente e vibrante, vide as diversas iniciativas comunitárias de solidariedade cidadã que surgiram por todo o país, muitas lideradas por pessoas das periferias – em sua maioria, negras -, por comunidades quilombolas, povos indígenas. Sem elas, a ausência do Estado em grande parte do país teria sido ainda mais sentida. Esse papel fundamental que a sociedade civil tem desempenhado, no entanto, não afasta a responsabilidade do Estado e de agentes políticos de enfrentar os abismos sociais do nosso país. Essa mobilização cidadã deveria se engajar nas pautas estruturantes que precisam ser enfrentadas. 

redeGIFE: Que agendas e ações você destacaria como imprescindíveis no pós-crise para que o Brasil avance, efetivamente, na superação das desigualdades e nas transformações necessárias para um país mais justo?

Katia: Aprimorar a capacidade fiscal do Estado brasileiro é essencial para o fornecimento de políticas públicas necessárias para enfrentar as desigualdades sociais e econômicas. Nesse sentido, o debate sobre a reforma tributária desponta com uma agenda prioritária. Outro tema é a importância do gasto social. A EC 95 mostrou o dano que vem causando e o potencial de dano futuro. O Brasil é um país onde gasto com saúde e educação é obrigação do Estado e a maioria da população precisa ter esses serviços garantidos e com qualidade.

Seguramente, o tema da Renda Básica é uma das prioridades também. Serão milhões de desempregados e milhões de novos pobres. A renda básica emergencial, que foi prorrogada por mais dois meses, não é suficiente. Esse debate é muito importante e deve envolver a participação da sociedade civil para garantir que tenhamos um programa que atenda às reais necessidades da população. O Brasil tem o Bolsa Família, um programa reconhecido internacionalmente. Uma possibilidade é construir uma proposta a partir dessa experiência, aumentando valores e alcance e melhorando o cadastro único. Não importa o nome. O importante é garantir um programa que se torne política de Estado. Soma-se a essas pautas a defesa e o fortalecimento da democracia, garantindo o funcionando de conselhos e a participação social, a diversidade, os direitos humanos, o combate ao racismo e a equidade de gênero.


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