Direito à moradia digna é teoria constitucional não aplicada

Dados apontam que o número de domicílios vazios no Brasil é duas vezes maior que o déficit habitacional. Apesar disso, a realidade aponta para uma mazela longe de ser resolvida.  Especialistas afirmam que o repasse desses espaços a quem não tem moradia digna, poderia resolver parte considerável do problema. No especial redeGIFE de março, o debate é sobre habitação e moradia digna. Ouvimos atores/atrizes do investimento social que atuam na área, além de representantes de movimentos sociais e pessoas afetadas.

De acordo com dados da Fundação João Pinheiro (FIP), o Brasil possui um déficit habitacional de 5,8 milhões de moradias. Enquanto isso, a quantidade de domicílios vazios no país é duas vezes maior que esse déficit. Apesar de ser um direito social assegurado pela Constituição Federal, o acesso à moradia digna está longe de ser uma realidade para toda população brasileira.  

“O direito à moradia é um fator fundamental de garantia de dignidade. Em um contexto de déficit habitacional e de crise climática, que impõe cada vez mais o risco de vida às famílias que ocupam as periferias urbanas, a questão da moradia se torna um ponto prioritário a ser resolvido”

RUD RAFAEL, coordenador nacional do Movimento de Trabalhadores Sem-Teto (MTST)

Na esteira para a efetivação desse direito, o governo federal oficializou em fevereiro de 2024 o programa “Imóvel da Gente”, que busca reaproveitar imóveis sem utilidade ou abandonados pela União, para que se tornem moradias. Idealizado pelo Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos, o projeto tem o objetivo de, em quatro anos, destinar 1.000 imóveis à utilidade social.

Mulheres, sobretudo negras, são as mais afetadas pelo déficit

Dirigente do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) e co-vereadora pela mandata coletiva Pretas por Salvador, Cleide Coutinho afirma que não há comprometimento suficiente do Estado na busca por efetivas soluções. 

“Falta interesse dos governos em querer resolver essa situação, há mais casas sem gente, do que gente sem casas no Brasil. Onde estão essas moradias?”

CLEIDE COUTINHO, dirigente do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM)

Nesse cenário, mulheres são as principais afetadas. “Considero a ausência de moradia digna uma das mazelas que mais impacta a vida dessas mulheres, maior grupo populacional do Brasil”, continua a co-vereadora. 

Dados do FIP de 2021, mostraram que 60% das moradias precárias no Brasil são ocupadas por mulheres, sobretudo mulheres negras. Em 2019, por exemplo, 63% das casas chefiadas por elas encontravam-se abaixo da linha da pobreza, como apontou dados do IBGE. 

“Moradia digna é aquela que permite que seus moradores possam viver dignamente e se desenvolver socialmente, economicamente, educacionalmente”

RODRIGO IACOVINI, diretor executivo do Instituto Pólis.

Para Rodrigo, a moradia digna é a porta de entrada para viver plenamente os demais direitos humanos. Além dos critérios técnicos, a coordenadora do programa Cidades e Desenvolvimento Urbano da Fundação Tide Setubal, Fabiana Tock, chama atenção para os critérios sociais. “Morar com dignidade não se trata só das condições materiais, dos itens de déficit quantitativo e qualitativo. Mas também qual é o bairro que você vive, se está inserido no meio urbano, acessa uma mobilidade adequada, emprego, é possível ter conexões com seus vizinhos, permite espaços de convivência.”

Desafios

“Tem esgoto a céu aberto; no posto de saúde não tem atendimento. Só temos um ônibus na comunidade, que só passa a cada duas horas, domingos e feriados não tem ônibus pra gente. Temos apenas uma creche, que não abrange todas as crianças. A água não é saudável, vem escura como café. Nós não existimos para o poder público.”

O relato é de Joelma Andrade, 42 anos, coordenadora do Centro Comunitário Mário Andrade, no Ibura (PE). O centro é uma homenagem ao seu filho, morto pela Polícia Militar em 2016. Mãe de mais quatro filhos, ela vive no Parque da Aeronáutica Santa Luzia, onde luta por acesso a direitos básicos.

Ela conta que, para driblar os desafios, a comunidade precisa se virar por conta própria, colhendo a sujeira da água com panos, e fazendo a limpeza dos canais de esgoto e das canaletas.

“Ter moradia digna, saneamento básico, água de qualidade muda a saúde e a vida de uma família”

JOELMA ANDRADE, coordenadora do Centro Comunitário Mário Andrade, no Ibura (PE).

A situação da comunidade se agravou ainda mais durante as fortes chuvas de 2022 na região, que inundaram as casas. No caso de Joelma, a ventania chegou a levar seu teto. Foi quando a Habitat para a Humanidade Brasil, promoveu reformas nas casas impactadas. Joelma afirma que a comunidade não tinha perspectiva de auxílio das autoridades do governo. “O poder público quer tirar o povo das casas, não ajeitá-las.” Para Socorro Leite, diretora executiva da Habitat, o primeiro desafio do Brasil é tornar a questão da moradia uma prioridade nacional, tanto para os governos, quanto para o setor privado. Outro desafio apontado pela diretora, é a ausência de investimentos públicos continuados na política de habitação.

Imagens de Ibura (PE), fotos gentilmente cedias pela comunidade

“Não temos recursos assegurados todos os anos. Temos períodos com um governo que investe mais, outros que investem menos ou não investem”

SOCORRO LEITE, diretora executiva da Habitat para Humanidade

Rodrigo Iacovini, acredita que é preciso repensar a produção da moradia. “É preciso mudar a concepção de que a riqueza vai se plasmando em imóveis, que geram dividendos especulativos e que isso tá certo. Imóveis que estão ociosos para fins especulativos têm que ser revertidos para moradia popular, porque se estão vazios, não estão cumprindo sua função social.”

Perspectiva partilhada por Rud Rafael. “Existe o princípio constitucional da função social da propriedade que estabelece que não existe direito absoluto à propriedade, esse direito tem que estar vinculado ao cumprimento de uma função social, mas não há fiscalização em relação a isso no  Brasil.”

Camila Jordan é diretora executiva da TETO Brasil, e aponta outro desafio do contexto brasileiro: a maior parte das cidades foram autoconstruídas pelas populações mais vulneráveis, cujo acesso à cidade formal foi negado.

“As pessoas migraram para as cidades em busca de oportunidades e foram excluídas do processo de urbanização. Um dos maiores desafios hoje para o Brasil é fazer a integração desses territórios, porque eles já existem. Tem lugares de alto risco, onde as pessoas precisam ser removidas, mas a maior parte deveria passar por uma requalificação urbana”

CAMILA JORDAN, diretora executiva da TETO Brasil

Habitação também é responsabilidade do investimento privado Social

Dados do Censo GIFE 2022-2023 mostram que ambiente urbano e sustentabilidade são o foco prioritário de atuação de apenas 2% das organizações respondentes. Cenário que Rodrigo Iacovini considera lamentável.

“Eu sinto que o ISP [Investimento Social Privado] acha que a moradia é algo que o mercado habitacional vai resolver. É preciso entender que a moradia é basilar para melhoria dos indicadores de direitos humanos.”

A avaliação é compartilhada por Fabiana Tock, que também observa que o ISP se priva de entender que a temática da habitação também é responsabilidade do setor.

“Quem executa obras são governos, não vamos encampar uma obra de urbanização, mas podemos influenciar governos, criar modelos que possam ser implementados por governos e inspirar a criar outras formas de provisão habitacional, de intervenções de favelas, de urbanização”

FABIANA TOCK, coordenadora na Fundação Tide Setubal

Expediente

Natália Passafaro
COORDENAÇÃO DE COMUNICAÇÃO

Geovana Miranda
ANALISTA DE COMUNICAÇÃO

Afirmativa
REPORTAGEM/TEXTO

Marina Castilho
DESIGN & DESENVOLVIMENTO


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