A saúde mental tornou-se um desafio urgente para empresas e sociedade. Em 2024, o Brasil registrou mais de 472 mil licenças médicas relacionadas a transtornos ligados ao trabalho. Ouvimos especialistas que destacam o papel que o Investimento Social Privado (ISP) pode ter na busca por ambientes de trabalho mais saudáveis.
No Brasil, as mulheres lideram os números de afastamentos do ambiente de trabalho devido a transtornos relacionados à saúde mental. Os dados são do Ministério da Previdência Social e revelam um cenário alarmante tendo em vista que, em 2024, o país registrou 472.328 licenças médicas desse tipo, entre homens e mulheres. O maior número dos últimos 10 anos.
O levantamento aponta que houve um aumento de 68% em relação a 2023. “É a crise de um modelo de trabalho pautado na exploração da força vital”, observa Bárbara Borges, psicóloga e fundadora da plataforma Pra Preto Psi.
Para Maria Fernanda Resende Quartiero, diretora-presidente do Instituto Cactus, as empresas desempenham um papel fundamental no cenário atual da saúde mental no Brasil. Muitas organizações, afirma, cultivam uma cultura onde a comunicação sobre questões emocionais e psicológicas é minimizada ou ignorada.
“Isso cria um ambiente onde os funcionários não se sentem seguros para expressar suas dificuldades, o que só agrava o estresse e o mal-estar emocional. A constante pressão pela produtividade e a glorificação do ‘sempre estar ocupado’ acabam por criar condições propícias ao burnout”, acrescenta.
A síndrome de burnout é uma doença diretamente relacionada ao trabalho e associada ao termo de “esgotamento profissional”. Trabalhar demais, não se identificar com as tarefas que precisa realizar, ter pouca autonomia, lidar com injustiças e não compartilhar os mesmos valores da empresa estão entre os principais fatores que contribuem para o desenvolvimento da síndrome. Esse cenário leva a um estresse contínuo, que pode afetar todo o funcionamento do corpo.
*Informações do Hospital Albert Einstein
Nesse cenário, as violências no ambiente de trabalho, como assédio moral e sexual, sobrecarga de funções, e a falta de reconhecimento e discriminação de gênero e raça são fatores determinantes para o adoecimento mental. Ponto de vista demarcado por Francinai Gomes, também psicóloga e fundadora da Pra Preto Psi.
“No Brasil, um ambiente de trabalho adoecedor é principalmente marcado pelas microagressões. Elas são descritas [pelo professor e jurista brasileiro] Adilson José Moreira como operações cotidianas que carregam comunicações expressas de menosprezo, invalidação e inferiorização”, explica, reforçando que também podem vir com um toque de humor ou até parecer conselhos bem-intencionados, mas, no fundo, carregam um conteúdo que alimenta a sensação de não pertencimento, inadequação e desesperança.
Um fator que agrava a conjuntura é se referir à saúde mental como um problema individual do trabalhador, de forma que a responsabilidade corporativa passa longe do assunto. O Brasil lidera em prevalência de depressão na América Latina e ocupa o segundo lugar nas Américas, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).
Além disso, Maria Fernanda explica que historicamente a saúde física sempre foi vista como essencial. No entanto, hoje é mais amplamente debatido como a saúde mental muitas vezes pode acarretar doenças físicas, como problemas cardíacos e hipertensão.
“Ao abrir espaço para o conhecimento e cuidado em saúde mental, a empresa também está prevenindo esses problemas, o que pode resultar em menos custos com licenças médicas e tratamentos”, recomenda. A diretora também pontua que tratando a saúde mental como uma responsabilidade corporativa, as empresas investem em um ambiente de trabalho mais resiliente e sustentável.
O Brasil, um dos países com os maiores índices de desigualdade de gênero, tem as mulheres como principais alvos das doenças mentais. De acordo com dados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), mulheres com idade média de 41 anos, corresponderam a 301.348 (64%) dos casos de afastamentos no trabalho. Entre os homens esse número chegou a 170.980. Realidade que Jesus Moura, psicóloga e coordenadora da Clínica Psicológica Ilê Psi, associa à dupla jornada encarada pelas trabalhadoras.
“Elas trabalham fora ou de home office e, além disso, têm o trabalho dos cuidados com a casa, família, e o nível de estresse se apresenta por força dessa sobrecarga mental. Há um aumento de fatores ansiogênicos e depressivos (…) por conta de um esgotamento físico e emocional devido às questões pelas quais as mulheres são exigidas socialmente.”
Perspectiva também apontada por Cida Bento, psicóloga e co-fundadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert). “Normalmente, as pessoas mais fragilizadas dentro da família ficam sob nossa responsabilidade, as crianças, os idosos, as pessoas que estão precisando de ajuda”, destaca. Ela ainda chama atenção para outro fator importante. “A gente adoece mais, mas de alguma maneira vai buscar tratamento. Os homens permanecem nesses ambientes inóspitos tóxicos de trabalho e morrem mais cedo”. O público feminino corresponde a 70% das pessoas que procuram profissionais em saúde mental no Brasil, segundo informações do Relatório do GetNinjas.
A pesquisa “Check-up de Bem-Estar 2024” – que contou com 10.300 trabalhadores/as entrevistados/as – mostrou que 41% das mulheres que possuem dupla jornada são negras, enquanto as brancas correspondem a 37%. No aspecto da saúde financeira – apontado pela pesquisa como um fator crucial para o bem-estar geral – apenas 30% das mulheres negras se destacaram como detentoras dessa estabilidade; homens negros corresponderam a 36%; mulheres brancas, 42%; e homens brancos, 51%.
“Quando criamos instituições atentas a essa dimensão política e territorial do sofrimento psíquico não estamos apenas acolhendo, mas denunciando e desafiando as estruturas que criam e perpetuam noções de cuidado que minam a esperança e impedem que pessoas negras se projetem para um futuro”, aponta Francinai Gomes.
Nesse sentido, a atualização da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), em 2025, representa um avanço na prevenção do adoecimento mental no trabalho, ao estabelecer diretrizes mais claras sobre a gestão de riscos ocupacionais, incluindo fatores psicossociais. Com a exigência de que empresas adotem medidas para identificar e mitigar condições que possam impactar a saúde mental dos trabalhadores, passível inclusive de multa, a nova NR-1 reforça a responsabilidade dos empregadores na criação de ambientes mais saudáveis e seguros.
“Isso significa mais do que uma política de ‘não assédio’; é necessário que haja um compromisso explícito com o cuidado da saúde mental, com programas de suporte psicológico acessíveis, e diminuição das metas impossíveis e consequentemente da pressão excessiva”, diz Bárbara Borges.
Para Maria Fernanda, o Investimento Social Privado também pode contribuir no caminho de fortalecer o entendimento da saúde mental como uma responsabilidade corporativa. Uma dessas frentes de atuação é o financiamento de pesquisas e a produção de dados e evidências que embasam políticas empresariais voltadas para a promoção da saúde mental dos colaboradores, como faz o Panorama da Saúde Mental, lançado pelo Instituto Cactus. “Com dados sólidos, as empresas podem desenvolver estratégias eficazes, adaptadas às realidades de diferentes setores e perfis de trabalhadores.”
Outra via de atuação apontada pela diretora é o fortalecimento das políticas públicas voltadas para a saúde mental no ambiente corporativo. Mas lembra que a saúde mental é um fenômeno multifacetado e intersetorial. “Trabalho e renda são fatores relevantes, mas não os únicos determinantes. O acesso a lazer, cultura, atividades físicas, educação de qualidade, conexão com o meio ambiente, segurança e moradia digna também exercem papel fundamental.”
Um exemplo concreto da atuação do ISP nesse sentido é o trabalho da Fundação José Luiz Egydio Setúbal (FJLES) voltado para a saúde mental de crianças e adolescentes, que em 2024 realizou a 6ª Edição do Fórum de Políticas Públicas da Saúde na Infância, com o tema “Saúde Mental e as Comunidades Escolares”.
“Embora diversos fatores influenciem o agravamento da condição mental, a escola é um espaço essencial de cuidado e promoção de práticas mais saudáveis, seja, por exemplo, pela implementação de Programas como Saúde na Escola, ou por atividades que abordem o tema de forma transversal considerando a Base Nacional Comum Curricular e o protagonismo jovem”, comenta Márcia Woods, assessora de relações estratégicas da FJLES. Ela acredita que o incentivo precoce ao cuidado da saúde mental é crucial para a criação e manutenção de hábitos mais saudáveis.
Outras formas de apoio do ISP observadas pela assessora, são o monitoramento e avaliação de programas e políticas, facilitando o diálogo intersetorial, formação de gestores e, também, promovendo ações para apoiar famílias e comunidades em relação à boa saúde mental das crianças e adolescentes.
O Brasil registrou
licenças médicas desse tipo, entre homens e mulheres, em 2024
dos casos de afastamentos no trabalho são de mulheres com idade média de 41 anos
O público feminino corresponde a
das pessoas que procuram profissionais em saúde mental no Brasil
das mulheres que possuem dupla jornada são negras, enquanto as brancas correspondem a
das mulheres negras se destacaram como detentoras de estabilidade financeira;
homens negros corresponderam a
mulheres brancas, 42%;
e homens brancos, 51%.
Dados: Ministério da Previdência Social; Instituto Nacional do Seguro Social (INSS); Check-up de Bem-Estar 2024; GetNinjas
Contribuir no caminho de fortalecer o entendimento da saúde mental como uma responsabilidade corporativa
Fortalecer as políticas públicas voltadas para a saúde mental no ambiente corporativo
Incentivar o cuidado precoce da saúde mental para a criação e manutenção de hábitos mais saudáveis.
Natália Passafaro
COORDENAÇÃO DE COMUNICAÇÃO
Geovana Miranda
ANALISTA DE COMUNICAÇÃO
Afirmativa
REPORTAGEM/TEXTO
Marina Castilho
DESIGN & DESENVOLVIMENTO