Especialistas avaliam os impactos da pandemia na saúde financeira das organizações da sociedade civil

Por: GIFE| Notícias| 23/04/2020

Segundo o Mapa das Organizações da Sociedade Civil, o Brasil conta com cerca de 782 mil organizações da sociedade civil (OSCs). Atuando nas mais diversas esferas que compõem o tecido social, desde justiça criminal até educação, saúde, cultura e pesquisa, essas organizações desempenham o importante papel de prestar assistência social e apoiar o Estado na garantia de direitos fundamentais da população. 

A dinâmica social teve uma mudança drástica, principalmente a partir de 11 de março, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou estado de pandemia em razão da acelerada disseminação do novo coronavírus. Se o funcionamento de escolas e escritórios, por exemplo, foi afetado em razão de medidas como distanciamento social, o mesmo aconteceu com as OSCs.   

A atuação dessas organizações, entretanto, faz-se mais do que necessária nesse momento. Em diversas plataformas e ferramentas que mapeiam os esforços para conter o avanço do vírus no Brasil, aparecem ações das OSCs, seja na produção de equipamentos de proteção individual (EPIs) – em falta em diversas unidades de saúde do Brasil -, seja na arrecadação de cestas básicas ou de recursos para compra de alimentos e kits de higiene e distribuição em locais de alta vulnerabilidade social. Diversas organizações também se enquadram na categoria de serviços essenciais, os quais têm aval do governo para continuar operando e atendendo a população. 

Vale pontuar, entretanto, que não só as áreas de saúde e assistência social precisam da atuação e apoio das OSCs. As organizações também se uniram e protagonizaram a elaboração e assinatura de uma nota de repúdio à Medida Provisória (MP) 928, editada pelo presidente Jair Bolsonaro ainda em março. A ferramenta altera o prazo de resposta dos pedidos à Lei de Acesso à Informação (LAI) – que atualmente já passa de 20 dias com possibilidade de prorrogação por mais dez – para indeterminado enquanto estiver vigente o estado de calamidade pública devido à pandemia.

Sustentabilidade financeira 

Medidas como o isolamento social não impactam apenas a mobilidade da população, o funcionamento das aulas e o trabalho presencial. A suspensão de atividades compromete o orçamento das OSCs, em geral já bastante modesto. 

Para João Paulo Vergueiro, diretor executivo da Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR), já é possível identificar as consequências da crise do coronavírus no financiamento e sustentabilidade das OSCs. “Toda e qualquer atividade de captação de recursos presencial foi interrompida. Não tem como fazer jantar, bazar ou chá da tarde e é importante que seja assim. Mas, muitas organizações dependem de receitas vindas de atividades cotidianas. Em São Paulo, por exemplo, tem a nota fiscal paulista, que são as notas doadas no comércio, só que as lojas estão fechadas”, explica.  

A paralisação do trabalho acarreta inúmeras consequências, desde a interrupção dos serviços prestados à população até a necessidade de demissão de parte da equipe devido à falta de caixa para destinar à folha de pagamento. Em carta aberta, a CIVICUS, aliança global de organizações da sociedade civil e ativistas dedicada a fortalecer a ação cidadã e a sociedade civil no mundo todo, pontua que, ao mesmo tempo em que estão acontecendo mudanças de estratégia, repriorização e ajustes na programação e expectativa de resultados das OSCs em nível global, a infraestrutura da sociedade civil está sob imensa pressão financeira. 

Segundo a organização, responder a momentos desafiadores requer flexibilidade na forma com que financiamentos são utilizados. Por isso, “chamamos todos os doadores e intermediários provedores de suporte essencial à sociedade civil para adotar abordagens com oferta do máximo de flexibilidade, certeza e estabilidade aos grantees e parceiros”, diz trecho do documento. 

Importância do apoio institucional às OSCs 

Ana Toni, diretora executiva do Instituto Clima e Sociedade (iCS), reforça a necessidade de investir na infraestrutura da sociedade civil. “A filantropia conseguiu rapidamente dar apoio a comunidades, até mesmo antes que o Estado, por meio dessas organizações. Isso é quase uma ironia porque no Brasil, nós doamos pouquíssimo para a sociedade civil e quando chega uma pandemia desse tipo são as OSCs que podem e devem ser as maiores receptoras para fazer com que os recursos cheguem mais rapidamente na base”, explica. 

Para a diretora, o momento pede apoios emergenciais para suprir as necessidades imediatas, mas as ações não podem se restringir a isso. “Estamos vendo organizações filantrópicas doando muito recurso para alimentação, kits de higiene e álcool em gel, mas não querem minimamente financiar as organizações e voluntários por trás dessa distribuição. Exige-se que as organizações prestem contas, mas não querem pagar pelo contador; que distribuam alimentos, mas não querem pagar pelo coordenador que vai planejar a ação. Infelizmente, sempre foi assim. Espero que isso não aconteça, mas tenho medo de que quando a pandemia acabar, essas organizações estejam exatamente na mesma situação de antes: sem nenhum apoio institucional.”

A desvinculação de recursos para projetos e direcionamento do investimento para que a organização possa sustentar sua infraestrutura é uma das possibilidades que evitariam, por exemplo, a demissão de funcionários em um contexto de crise de qualquer natureza. No contexto de pandemia, Ana reforça que, se não fossem milhares de voluntários trabalhando literalmente de graça em favelas e comunidades, muitas doações não chegariam a seus destinatários. 

“Eu só tenho a agradecer a sociedade civil que está fazendo um trabalho fenomenal de entrega de kits, máscaras, álcool e alimentos, mesmo com estruturas hiper debilitadas. Essas pessoas estão colocando suas próprias vidas em perigo para distribuir tudo isso, quando, na verdade, essa é uma obrigação do Estado, do qual estamos acompanhando a morosidade, e da nossa filantropia, percebendo e fortalecendo essas organizações de uma maneira permanente”, defende a diretora. 

O que as organizações podem fazer 

João Paulo defende que o impacto do momento atual é potencialmente menor para organizações que contam com uma base maior de doadores e maior recorrência das doações. São indivíduos que doam todos os meses, independente da realização de jantares, bazares ou eventos. 

Além disso, o diretor pontua a criação de campanhas online de financiamento coletivo – os chamados crowdfundings – como medida que muitas organizações estão adotando, assim como alguns financiadores, que criam as campanhas ‘um pra um’, ou seja, a cada R$ 1 doado, por exemplo, a organização financiadora doa mais R$ 1. 

Em um contexto de cancelamentos de eventos no Brasil e no mundo, João Paulo afirma que a migração para o mundo online é um dos caminhos mais adotados. “Algo que tenho visto e recomendado é a organização estruturar seu site e uma página para receber doações online, investir nas suas mídias sociais, mobilizar seus doadores e explorar o voluntariado para que ele apoie as ações de captação de recursos online via WhatsApp, Facebook e Instagram.”

Além de ações diretas das próprias organizações, o diretor da ABCR também menciona a articulação de atores do setor da captação de recursos e outros, como o próprio GIFE, na defesa para que sejam zerados os impostos sobre doações. Outras ações de advocacy estão sendo desenvolvidas, como para estender a medida de ajuda do governo com pagamento de salário mínimo a funcionários de pequenas empresas. 

Movimento internacional e recomendações

João Paulo e Ana concordam que é difícil comparar o Brasil com outros países, uma vez que, nos Estados Unidos, por exemplo, a cultura de doação é mais forte que em terras brasileiras. 

É por isso que lá, segundo a diretora, as organizações de base são mais fortes, têm mais estrutura e conseguem coordenar melhor as ações, por já receberem apoio há anos e, assim, terem conseguido, gradativamente, absorver os recursos de maneira mais estruturada que as organizações no Brasil. 

A CIVICUS defende que a forma com que a sociedade venha a lidar com a pandemia trará implicações longas e duradouras sobre como o futuro mundial será construído. Para instruir como é possível continuar provendo suporte a organizações da sociedade civil, a instituição traz cinco dicas:

– Ouvir grantees e, juntos, explorar as melhoras formas de apoiá-los no enfrentamento da crise, confiando que eles sabem o que é melhor em seus próprios contextos; 

– Encorajar o redesenho e novo cronograma de atividades planejadas e fornecer diretrizes claras sobre como obter aprovação dessas mudanças; 

– Apoiar meios novos e criativos de criar uma cultura de solidariedade e interação ao mesmo tempo em que há adesão a medidas como distanciamento social e outras medidas de precaução; 

– Oferecer flexibilidade considerando novos acordos de pagamentos baseados em necessidades reais das organizações, convertendo o financiamento destinado a projetos em fundos de uso livre, ou estudar a adição de recursos extras para ajudar na construção de reservas financeiras ou para cobrir custos extras; 

– Simplificar devolutivas e processos de inscrição para que grupos da sociedade civil possam fazer melhor uso de seu tempo, energia e recursos apoiando os mais vulneráveis. 

Projeto Sustenta OSC

O projeto Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil (Sustenta OSC) é realizado pelo GIFE e pela Coordenadoria de Pesquisa Jurídica Aplicada (CPJA) da FGV Direito São Paulo, em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e com apoio de União Europeia, Fundação Lemann, ICE, Instituto Arapyaú e Laudes Foundation.

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