Estado avançou, mas faltam ações efetivas contra o trabalho infantil

Por: GIFE| Notícias| 13/05/2002

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou na última semana um relatório no qual aponta que o trabalho infantil diminuiu 21% no Brasil entre 1992 e 1999, mas que ainda existem 6 milhões de crianças nesta situação no país.

Para Daniel De Bonis, coordenador do programa Empresa Amiga da Criança, da Fundação Abrinq, o número é alto pois as ações do Estado ainda são paliativas e não atacam as principais causas do problema, como a má distribuição de renda e a falta de escolas em período integral. Veja a entrevista concedida ao redeGIFE.

redeGIFE – Segundo os dados apresentados pela OIT, houve uma desaceleração no ritmo da queda do trabalho infantil. Entre 1995 e 1998, a diminuição foi de 13,6%, e entre 1998 e 1999, de 2,4%. Por que ela ocorreu?
Daniel De Bonis – Se você analisar os dados ano a ano entre 1992 e 1999, você observa que, de 1992 a 1995, o número de crianças trabalhando é praticamente estável. Há uma pequena queda, mas o volume não muda muito. Já entre 1995 e 1997, o número caiu consideravelmente. E entre 1997 e 1999 ele volta a estabilizar. Do nosso ponto de vista, e também do de outros pesquisadores, o que concluímos é que houve uma diminuição localizada num curto período de tempo. Não foi exatamente uma tendência. E isto ocorreu em razão do fim da inflação. Com o advento do Plano Real, as famílias mais pobres tiveram, naquele momento, um aumento do poder aquisitivo e puderam tirar as crianças do trabalho.

redeGIFE – As ações governamentais e as da sociedade civil também contribuíram para a diminuição do número de crianças trabalhando?
De Bonis – Na primeira metade dos anos 90 há uma grande mobilização da sociedade em torno do tema. Foi criada a Fundação Abrinq, começam no Brasil as campanhas de combate ao trabalho infantil da OIT e da Unicef e cresce a conscientização de empresários e sindicatos. Já o governo teve uma posição mais reativa. Depois que a sociedade cobrou, em 1996 o Estado começa a desenvolver ações na área, sendo a principal delas o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), que gerou bons resultados. Mas o fato de a sociedade perceber que o trabalho não é uma alternativa para a criança, que ela deve estar em uma escola com qualidade e que as empresas têm um papel fundamental neste processo, é que foi fundamental. Esta visão é a grande conquista do Brasil durante a década de 90.

redeGIFE – O relatório da OIT também afirma que 10% das crianças do mundo nas piores formas de trabalho, entre elas a prostituição, estão no Brasil. Como reverter esta situação?
De Bonis – Ainda não há uma ação efetiva de combate a estas formas por parte do Estado. O Peti, por exemplo, atinge muito mais o trabalho rural, como o corte da cana, a carvoaria, o sisal etc. Não há muitos projetos contra a prostituição infantil e o tráfico de drogas.

redeGIFE – Por que não há uma atuação do governo no combate a estas formas de trabalho?
De Bonis – São problemas difíceis. O combate ao trabalho infantil já é complexo. A estas formas é mais ainda. Não há muita tecnologia social para isso. Como você lida com um problema como a prostituição infantil? Não adianta apenas dar uma bolsa para a família. É muito mais complicado do que isso. Envolve uma questão de valores, de desestruturação da família e até de redes criminosas que atuam nesta área. Você precisa de uma articulação enorme, incluindo ações de polícia. Aliás, isso é algo que a OIT está exigindo, uma ação policial em assuntos como a prostituição infantil e o tráfico de drogas.

redeGIFE – O senhor citou a política de bolsas. Esta é uma ação interessante para a erradicação do trabalho infantil?
De Bonis – O Peti oferece uma bolsa para as famílias que assumem o compromisso de retirar as crianças do trabalho e de as matricularem na escola. Ela é de R$ 25 mensais por crianças que moram no campo e de R$ 40 se a família reside na cidade. Eu avalio que a bolsa do Peti está sendo efetiva como uma ação de emergência na qual você tem crianças trabalhando e quer retirá-las desta condição. Nisso o programa é muito eficaz. Agora, erradicar o trabalho infantil é uma outra questão. Se no momento em que você retira a bolsa a criança volta ao trabalho, não se pode dizer que o trabalho infantil foi erradicado. Isso mostra que a família não superou a condição de pobreza. A bolsa é apenas paliativa.

redeGIFE – Como têm sido a relação entre Estado e as organizações da sociedade civil quando a pauta é o trabalho infantil? O Estado tem promovido um diálogo em torno do tema?
De Bonis – O diálogo é sempre difícil. Ele nunca é fácil porque a sociedade civil está sempre querendo mais do que o Estado está fazendo. O terceiro setor está sempre à frente. Minha avaliação é que o governo acaba sendo sempre reativo. O que não é de todo ruim, pois ele poderia não estar fazendo nada. Não há dúvidas de que ele está desenvolvendo um programa que atinge um universo muito grande e este é um ponto que devemos valorizar. É provavelmente uma das maiores iniciativas de combate ao trabalho infantil que está sendo implantada em um país em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, porém, é um programa que não está eliminado permanentemente o problema. A avaliação é positiva quando se observa o empenho do governo, mas ao mesmo tempo é negativa quando se vê que esta política não é eficaz, pois as famílias não superam as condições de pobreza que levam as crianças ao trabalho.

redeGIFE – Que contribuições as organizações da sociedade civil podem dar ao Estado?
De Bonis – A principal contribuição é mostrar os caminhos para soluções eficientes e de baixo custo. Afinal, as ONGs atuam localmente, e não conseguem atingir grandes contingentes. Só o Estado tem o poder de atuar em escala universal. Na região do sisal na Bahia, a sociedade se organizou e conseguiu desenvolver projetos associados ao Peti que mostraram bons resultados na melhora da situação das famílias e na erradicação do trabalho infantil. O MOC (Movimento de Organização Comunitária), uma ONG local, foi tão eficaz que se defende na Bahia a possibilidade de seus projetos serem assumidos pelo governo e espalhados por todo o estado. A entidade sozinha não tem capacidade de fazer isso. Já as secretarias de Educação ou de Assistência Social, se quiserem, conseguem.

redeGIFE – O senhor acha que aquela imagem que as pessoas tinham de que o trabalho infantil não é um grande problema, pois pode até moldar o caráter, e que se não for isso a opção que fica é a rua, já foi superada?
De Bonis – Isso começa a mudar. Mas, como toda mudança de valores, ela é lenta. O trabalho infantil está muito associado à educação. A partir do momento que a sociedade passa a valorizar o ensino – o que também aconteceu na década passada -, ela começa a perceber que o trabalho não é a alternativa. As pessoas às vezes falam: “”Mas, se não trabalhar, vai estar na rua””. Não, não vai. Vai estar na escola. Nem a rua nem o trabalho são opções.

redeGIFE – Com todos estes dados, qual sua avaliação sobre a atual situação do trabalho infantil no país?
De Bonis- O relatório da OIT é uma boa síntese do que o Brasil conquistou nos anos 90. É um dos poucos países nos quais governo, ONGs e empresários conseguiram se articular em torno da causa e discutir soluções, mesmo que não concordando o tempo todo, mas colocando o tema como prioritário na agenda do país. Por mais que os números em si nos mostrem que você tem um enorme contingente de crianças trabalhando, hoje o Brasil dá muito mais importância a este assunto do que há dez anos. Em outros países em desenvolvimento, não se avançou tanto como aqui. Ainda faltam soluções estruturais, porque a bolsa do Peti é uma solução de emergência. Claro que é importante, pois, se uma criança está trabalhando, você tem a obrigação de tirá-la desta condição imediatamente. Agora, o que a gente quer do governo é que isto não sirva de desculpa para não combater as causas e os problemas estruturais que levam ao trabalho infantil. Enquanto não tivermos uma escola em período integral que evite que as crianças optem pelo trabalho, uma fiscalização forte, principalmente no que diz respeito às piores formas de trabalho, e uma melhor distribuição de renda, fica impossível erradicarmos o trabalho infantil.

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