Estado democrático de direito e terceiro setor: a atuação do Ministério da Justiça na qualificação de entidades sociais

Por: GIFE| Notícias| 16/08/2004

JOSÉ EDUARDO ELIAS ROMÃO
Diretor do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação da Secretaria Nacional de Justiça

No exercício da competência atribuída ao Ministério da Justiça para titulação de entidades privadas, sem fins lucrativos e que cumprem finalidades de interesse público, a Secretaria Nacional de Justiça outorgou em seis meses, mediante procedimento administrativo próprio, o título de Utilidade Pública Federal (UPF) a 154 entidades e qualificou como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) outras 253. No total, o número de outorgas de UPF e de qualificação de OSCIP gira em torno de 10.500 e 2.000 entidades, respectivamente.

E justamente porque os mencionados “”títulos”” vinculam-se à atividade de regulação estatal dirigida ao terceiro setor, da qual decorrem possibilidades de repasses diretos e indiretos de recursos públicos, sua atribuição pelo Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação (DJCTQ) tem aumentado mês a mês e, por conseqüência, fomentado interesses políticos e econômicos que, às vezes, parecem concorrer com fins públicos e sociais.

Embora a idoneidade dos meios e a licitude dos fins predominem nas relações entre Estado e terceiro setor, pode-se perceber uma acentuada inclinação da opinião pública no sentido de generalizar os desvios, isto é, de transformar os poucos casos comprovados de fraude na apropriação de recursos públicos – ou mesmo de venalização oblíqua de serviços gratuitos – em regra geral. Sinal claro desta aludida inclinação vê-se não apenas na reedição de expressões pejorativas como “”pilantropia”” e “”onguistas””, mas, sobretudo, na extensão que o significado “”descrédito”” alcança indiscriminadamente junto a inúmeras entidades do terceiro setor.

Assim, visando promover a realização de interesses públicos, seja pela atuação do Estado seja pela ação não-governamental, e prosseguindo no esforço de reconstituição do marco normativo do terceiro setor, de forma articulada e participativa, assoma neste momento a necessidade de se identificar com rigor (individualizando, se preciso) as entidades que, por um lado, não atuam em prol do interesse público e, por outro, agem por vias transversas em prejuízo da coletividade e também daquelas instituições que, há anos, prestam serviços essenciais à sociedade.

Nesta linha, o Ministério da Justiça estuda: a consolidação dos textos normativos vigentes que direta ou indiretamente disciplinem a relação entre Estado e terceiro setor; a organização de um mapeamento, com base em investigações científicas consolidadas, de todas as entidades que detenham qualificações atribuídas pela administração federal; e formas de acompanhamento e fiscalização das entidades qualificadas que recebam incentivos, repasses ou subsídios do Estado, de modo a zelar pela correta aplicação dos recursos públicos.

Quanto à consolidação normativa convém, nesta oportunidade, destacar a adequação do título de Utilidade Pública Federal ao paradigma do Estado Democrático de Direito.

Com o ocaso do Estado Social assinalado pela promulgação da Constituição Federal de 1988, afirma-se a vigência do Estado Democrático de Direito, bem como dos princípios da participação e da pluralidade que lhe atribuem lastro e conformam. Porém, transcorridos mais de 15 anos da transição entre os mencionados modelos normativos, grande parte da legislação no Brasil permanece vinculada e circunscrita ao decaído Estado Social, impregnando de anacronismo e ineficácia o ordenamento jurídico.

Desta forma, observado o contexto paradigmático do Estado Democrático de Direito, parece inevitável uma alteração significativa dos textos normativos para que toda e qualquer norma do ordenamento jurídico propicie a realização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, já que as normas devem ser compreendidas a partir de sua integração à Constituição Federal de 1988 e, por extensão, aos princípios da participação e da pluralidade que lhe atribuem lastro.

Entendendo que o título de utilidade pública deve se prestar a estimular a participação dos particulares na promoção da democracia, do bem-estar comum e na reparação da dívida social acumulada pelo país, parece correto vincular sua concessão à promoção de atividades que realizem ou colaborem com a realização dos objetivos constitucionais, tal como prescreve uma das indicações fortes de Programa de Governo:

A imensa dívida social acumulada ao longo da história do país pode ser saldada também com a ajuda de milhares de organizações que fazem parte do chamado Terceiro Setor e dos investimentos sociais das empresas socialmente responsáveis. Os recursos do governo e da sociedade devem ser mobilizados de forma articulada, eficiente e produtiva em torno das grandes prioridades do nosso governo: a promoção da justiça social, a retomada do crescimento econômico e a geração de emprego e trabalho.

Ademais, uma nova regulamentação para UPF, além de permitir a concessão do título para entidades que estejam para além do paradigma assistencial, poderia estabelecer critérios e procedimento pelos quais os cidadãos participariam ativamente do planejamento, da execução e da avaliação das ações de interesse público circunscritas ao terceiro setor.

Entre outros pontos levantados pelo trabalho que realiza o Ministério da Justiça está a desvinculação entre UPF e o Cebas (Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social). Até o momento as vantagens de se suprimir a vinculação entre as qualificações despontam. Vale mencionar pelo menos duas: removendo procedimentos sobrepostos diminuem-se custos à administração e ao administrado, ao mesmo tempo em que se aumenta a probabilidade de eficiência e de efetividade do serviço público prestado, e retirando a condição de pré-requisito do título de UPF para o recebimento do Cebas pode-se realizar um controle qualificado e democrático pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), órgão colegiado vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

A efetivação de tal medida dependeria apenas da alteração de algumas normas. Na verdade, depende tão somente da revogação de dispositivos da Lei nº 8.212/91 (art. 55, inciso I) e dos Decretos nº 3.048/99 (arts. 206, inciso I e 208, inciso I) e nº 2.536/99 (arts. 3º, inciso XI). Todavia, sua viabilidade exige uma atuação coordenada do Poder Legislativo, bem como das entidades que participam do processo legislativo em nome do interesse público.

Por fim, é importante salientar que tratar do acompanhamento e da fiscalização das entidades qualificadas que recebam incentivos, repasses ou subsídios do Estado, de modo a zelar pela correta aplicação dos recursos públicos, não pode nunca justificar a institucionalização de mecanismos e procedimentos que venham, noutro contexto, restringir a liberdade de associação, tal como garantida na Constituição, ou pior, que se revelem instrumentos de cooptação política e captação econômica.

A realidade da atuação do terceiro setor no Brasil tem demonstrado que o modelo do controle social e da maior liberdade de atuação das entidades, proposto por legislações mais recentes acerca da matéria (como a Lei de OSCIPs, por exemplo), depende também da atuação estatal de modo a permitir que a própria sociedade intervenha para coibir eventuais abusos por parte das entidades e, quando for o caso, do próprio Estado.

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