Estudo aponta avanços e obstáculos para o desenvolvimento social na América Latina e Caribe
Por: GIFE| Notícias| 19/06/2017A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) acaba de publicar a nova edição de seu principal relatório anual sobre temas de desenvolvimento social. O documento ‘Panorama Social da América Latina 2016’ aborda, em diversos capítulos, a presença de uma acentuada heterogeneidade estrutural que, em grande medida, está na base dos altos níveis de desigualdade social típicos da região.
Em abordagem inédita, a pesquisa também examina a realidade das populações afrodescendentes na América Latina – quem são, quantas são, onde estão, qual marco institucional e normativo as ampara, que tipo de desigualdades e discriminações enfrentam, entre outros assuntos.
Para além da administração pública, o material representa um importante instrumento para investidores sociais avaliarem o cenário político-econômico da região e poderem melhor direcionar seus recursos. Conversamos com a diretora da Divisão de Desenvolvimento Social da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), Laís Abramo, para entender melhor essa iniciativa. Confira:
GIFE – Conte-nos um pouco sobre o Panorama Social da América Latina 2016
Laís Abramo – O relatório é uma publicação anual da Cepal e se refere a temas sociais. É elaborado a partir do processamento das estatísticas oficiais dos países [da América Latina e Caribe] e de mais uma série de processamentos realizados com outras análises. Essa edição destaca o tema da desigualdade social. Fizemos uma apreciação da evolução da desigualdade de renda, medida pelo Coeficiente de Gini – índice de medição das desigualdades sociais e do nível de concentração de renda. Complementamos com um exame da distribuição funcional da renda, que é a repartição de toda a riqueza do país entre o fator capital e o trabalho, ou seja, da parte que realmente vai para os trabalhadores e daquela que vai para a remuneração do capital. Analisamos também eixos estruturantes da desigualdade social, como a questão da distribuição do tempo entre homens e mulheres – elemento importante das desigualdades de gênero -; e as desigualdades ao longo do ciclo de vida: infância, adolescência, juventude, vida adulta e velhice. Essa edição conta, ainda, com um capítulo inédito sobre o tema dos afrodescendentes na América Latina. Esse é o conteúdo básico. O que diferencia o Panorama desse ano é a visão multidimensional da desigualdade.
GIFE – Sobre o capítulo inédito que olha para as questões étnico-raciais, o que você pode destacar?
Laís Abramo – São vários dados a compartilhar sobre as populações afrodescendentes. Primeiro, é importante dizer que consideramos as questões étnico-raciais na América Latina um elemento central da estruturação das desigualdades. Estamos falando dos povos indígenas e das populações afrodescendentes. No caso do Brasil, esse é um tema muito trabalhado, pois o país tem estatísticas muito sólidas a respeito da questão. Mas essa não é a realidade da grande maioria dos países latino-americanos. Em boa parte das localidades, apenas em 2010 foi incorporada a pergunta da autoidentificação racial nos censos locais.
Essa é uma questão importante para a qual chamamos a atenção: a necessidade de ter estatísticas claras e sistemáticas produzidas sobre a população afrodescendente. Consideramos uma necessidade central, especialmente no contexto da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que coloca de maneira muito clara a ideia de que ninguém deve ficar para trás no processo de desenvolvimento [por conta de questões étnico-raciais].
Há, na América Latina, no mínimo [já que as metodologias de medição de alguns países não são precisas], 130 milhões de afrodescendentes. Ou seja, 21% da população. Uma em cada cinco pessoas do continente é afrodescendente. E, desses 130 milhões, aproximadamente 100 milhões estão no Brasil.
E se pensarmos uma agenda de direitos, vemos que as desigualdades são sistemáticas. Por exemplo, a taxa de mortalidade infantil, ou seja, crianças que morrem antes de completar um ano de idade, é sistematicamente mais elevada entre os afrodescendentes. Outro exemplo é a porcentagem de jovens que não estão estudando nem ocupados no mercado de trabalho: se compararmos, de um lado, as jovens mulheres afrodescendentes e, de outro, os jovens homens não afrodescendentes – que são os dois extremos da hierarquia social -, a porcentagem das meninas afrodescendentes sem estudo nem ocupação é, pelo menos, o dobro do outro grupo. Em alguns países essa diferença chega a ser três, quatro ou cinco vezes maior.
GIFE – A desigualdade afeta muito mais as mulheres, certo? Apesar do aumento da participação feminina no mercado de trabalho, elas ainda desempenham mais tarefas em casa, a famosa dupla jornada. Essa também é uma marca latino-americana?
Laís Abramo – Sim. No interior dos domicílios, o trabalho de cuidados acaba recaindo mais sobre as mulheres. E, com o processo de envelhecimento da população, elas têm de cuidar não apenas dos filhos, mas também dos idosos e das pessoas doentes ou com deficiência. Isso é algo que recai de maneira muito desequilibrada sobre as mulheres. Por isso precisamos pensar em políticas de cuidado. Elas são centrais nos sistemas integrados de proteção social.
Esse sistema de cuidado engloba desde creches a outros serviços, como restaurantes populares, lavanderias a preços acessíveis, jornadas escolares estendidas, maior flexibilidade da jornada de trabalho, sistemas de transporte mais adequados que façam com que as pessoas percam menos tempo no deslocamento entre casa-trabalho-casa. São pontos centrais para avançarmos na superação dessa divisão tão desigual do tempo entre homens e mulheres, dessa dupla jornada que recai muito mais sobre as mulheres e mais ainda sobre as mulheres mais pobres.
GIFE – E o que o estudo aponta sobre o investimento social e as boas práticas em políticas públicas na América Latina e Caribe?
Laís Abramo – Fizemos uma avaliação dos recursos destinados às funções sociais que sempre existem em um país, como proteção social, saúde, educação, moradia, proteção do meio ambiente e lazer e cultura. Observamos que houve, e isso é uma característica importante da América Latina, uma reação à crise econômica internacional de 2008 e 2009 por meio do aumento do investimento na área social. Costumamos dizer que foram medidas de caráter anticíclico, para aumentar justamente o investimento social. No caso do Brasil, por exemplo, foram ampliadas a cobertura do Bolsa Família, as linhas de créditos para empresas e pessoas, a política de valorização do salário-mínimo. Isso aconteceu entre 2009 e 2010. Aumentamos a porcentagem do gasto público social, e o nível se manteve ao longo do período. Em 2015 chegamos ao ponto mais alto dessa curva. Isso é importante. Mostra um grande esforço dos países para manter ou aumentar o nível de investimento nas políticas sociais.
GIFE – Quais são os principais desafios para os países latino-americanos evoluírem no processo de desenvolvimento social?
Laís Abramo – Vou destacar um dado importante que está no capítulo um, que é a questão da concentração de renda. Vemos que a América Latina, como todos sabemos, não é o continente mais pobre, mas é o continente mais desigual do mundo. Isso é um problema e um enorme desafio para a sociedade latino-americana e para os governos que têm a responsabilidade principal de conduzir as políticas públicas.
Entre 2003 e 2015, houve um processo importante de diminuição da concentração de renda, de diminuição da desigualdade medida pelo Coeficiente de Gini. Calculamos que isso se deu a um ritmo anual de 0,9% ao ano na grande maioria dos países. E por que isso aconteceu? Porque a renda dos mais pobres aumentou. Se dividirmos a população em cinco quintis, ou seja, em cinco partes iguais na distribuição da renda, foi entre as pessoas que estão no primeiro quintil, os 20% de menor recurso, que esse rendimento aumentou mais. E por isso diminuiu a desigualdade. E por que aumentou o rendimento? Está associado basicamente ao aumento da renda do trabalho, tanto dos salários dos assalariados, quanto dos rendimentos dos trabalhadores autônomos, além das transferências previdenciárias ou dos programas de combate à pobreza. É importante dizer que esse feito positivo está associado a políticas de caráter redistributivo que foram implementadas pela maioria dos países nesse período.
De acordo com nossa análise, nesse período, combater a pobreza e a desigualdade passou a ter uma prioridade inédita na agenda pública de muitos países. Isso foi central para os resultados observados. No entanto, os altos níveis de desigualdade e pobreza se mantêm. Vemos sinais muito preocupantes, como, por exemplo, o aumento das taxas de desemprego. Isso poderia ameaçar as conquistas desse período recente.
GIFE – E existe algum caminho para retomarmos o processo de desenvolvimento observado entre 2003 e 2015?
Laís Abramo – Penso que seja muito grande a tarefa dos países da América Latina de tentar manter esse caminho de investimento social com enfoque de direitos. Não estou falando de políticas assistencialistas, residuais, mas de pensar que a proteção social é um direito de todas as pessoas, tentando associar o combate à pobreza também com a limitação da extrema riqueza.
Observamos na região uma tremenda concentração da riqueza, e, em muitos países, os sistemas tributários são de caráter muito regressivo, penalizam sempre os mais pobres. Existe uma enorme sonegação de impostos, que também retira muitos recursos das políticas públicas.
Precisamos avançar em relação a sistemas universais de saúde, educação e proteção social, com olhar especial para determinadas populações, como os indígenas e os afrodescendentes. Por isso a importância de políticas de ação afirmativa, como, por exemplo, as cotas para entrada dos afrodescendentes e indígenas no Ensino Superior. Costumamos dizer que o social não se resolve apenas no social. Para resolver as questões sociais precisamos também, evidentemente, de um processo de crescimento econômico, de diversificação da base produtiva, de aumento da produtividade e de aumento da capacidade de inovação das economias.
GIFE – Que outro ponto você destacaria no documento?
Laís Abramo – O importante é entendermos a desigualdade como uma característica estrutural da América Latina, e que é impossível avançarmos no desenvolvimento sustentável sem diminuir de maneira significativa essa situação complexa, composta de múltiplos eixos estruturantes. É muito importante conhecer cada um deles e a forma como se inter-relacionam e se potencializam.
Em termos de políticas, me vêm à cabeça dois exemplos: as ações afirmativas dirigidas às famílias de mais baixos recursos e as dirigidas aos afrodescendentes e indígenas para o acesso ao Ensino Superior. O Brasil é uma referência nessas ações. As políticas de cotas para a universidade pública têm mudado a cara da realidade brasileira e permitido saldar uma dívida histórica com as populações afrodescendentes. O outro exemplo são os sistemas de cuidado do Uruguai, Costa Rica e Chile, que são muito importantes para construir iniciativas de proteção social integradas e que ajudem a diminuir as desigualdades de gênero também.