Falta de políticas públicas dificulta combate à discriminação nas escolas
Por: GIFE| Notícias| 03/02/2003MÔNICA HERCULANO
As discussões em torno do sistema de cotas para negros nas universidades e da inclusão da história e da cultura afro-brasileiras em toda a grade curricular trouxeram à tona um outro tema relevante: o preconceito racial no ambiente escolar.
No livro Discriminação racial nas escolas – entre a lei e as práticas sociais, lançado em dezembro pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o advogado Hédio Silva Jr. atenta para o fato de que a escola é um preditor de destinos profissionais, ocupacionais e de trajetórias de vida, podendo desencadear ou impedir seu pleno desenvolvimento.
“”A discriminação começa já na pré-escola. Não há nenhum tipo de política, treinamento ou capacitação dos servidores que trabalham com as crianças desta faixa etária, na qual as experiências são fundamentais para o seu desenvolvimento””, explica Hédio.
Eliane dos Santos Cavalleiro, mestre em educação e autora do livro Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação racial na educação infantil, diz que o professor leva para a sala de aula o racismo que está na sociedade e trata as crianças negras de forma diferente. “”Isso impossibilita o elogio, o afeto e o contato físico. A criança vai se sentindo diferente, como se não pertencesse ao espaço escolar, acarretando a falta de vontade de ir para a aula.””
Hédio acredita que há uma predisposição dos professores em se habilitar para o tratamento da diversidade. “”Tenho contato com sindicatos e associações de professores de vários estados e sinto que há uma crescente consciência da gravidade do problema e uma disponibilidade para sua superação.””
Um dos aspectos positivos dessa capacitação, segundo Eliane, é que ela vai além da questão racial. “”O professor que aprende a educação anti-racista, além da questão do negro, vai aprender a não discriminar a criança com problema de obesidade, terá mais atenção às especificidades das comunidades indígenas e à questão do gênero. É uma questão de sensibilização.””
Livro didático – Tanto o advogado quanto a professora apontam outro fator importante na questão da discriminação racial nas escolas: o livro didático como meio de divulgação do racismo.
Hédio acredita que a criança negra enfrenta uma hostilidade já no conteúdo do livro e lembra que a primeira representação que ela tem de si própria na escola é na condição de escravo.
Além desse constrangimento, Eliane aponta para o fato de que são poucas as famílias negras que aparecem nos livros. “”São sempre serviçais, empregadas domésticas ou de famílias carentes. São imagens que reforçam a idéia de inferioridade. Não há oportunidade da criança perceber o negro como igual.””
“”Entendo que todo o conteúdo do livro didático deve ser redefinido. Acabar com o estereótipo do branco superior e do negro inferior, com um enfoque transversal nas ciências, na geografia, na história, na disciplina de artes e na matemática. Enfim, é possível promover um enfoque positivo da diversidade humana na maior parte das disciplinas””, diz Hédio.
Denúncias – Para o advogado, ainda faltam denúncias mais formais de preconceito racial nas escolas. Apesar do aumento nos últimos anos, Hédio observa que elas ainda ficam num plano muito local, como em casos nos quais a mãe reclama com a professora, essa pede para a criança acusada pedir desculpas e encerra-se o assunto.
“”Existe uma tendência das pessoas de desqualificarem o fato. O número de denúncias hoje é pequeno em relação ao seu impacto e dimensão. Mas eu diria que isso resulta muito do fato de não termos instâncias de reclamações. Se o sistema de ensino criasse referências e estimulasse a população a reclamar de problemas desse tipo, teríamos enfim um monitoramento e um retrato mais fiel da intensidade dessa prática e do problema no cotidiano da escola.””
Uma das sugestões apresentadas por ele em seu livro como base de articulação para esse monitoramento é a criação de Comissões Coordenadoras Permanentes (CCPs) municipais, que envolveriam governo, iniciativa privada e terceiro setor na implementação de uma política de promoção da igualdade racial.
“”Quando foi alterada a Lei de Diretrizes e Bases, os estados e os municípios acabaram criando essa figura da participação da comunidade na definição do conteúdo. Acho essencial a participação da sociedade. Sem ela, uma política não vai pra frente, porque é preciso convencer os professores da seriedade do programa, reabilitar a instituição para que ela dê a devida atenção a isso, monitorar muito vigorosamente o conteúdo do livro que está sendo veiculado e envolver as várias entidades de direitos humanos, de direitos das mulheres e dos negros nos debates com as escolas””, explica Hédio.
História afro-brasileira – Sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no último dia 10 de janeiro, a lei nº 10.639 determina que as escolas de ensino fundamental e médio devem incluir história e cultura afro-brasileira em toda a grade curricular.
“”Sou a favor, mas com a ressalva de que não basta uma lei. A meu juízo, a aprovação foi importantíssima, mas agora é preciso que os sistemas de ensino estejam preparados. Eu diria que o que tem sido feito é muito tímido no plano dos municípios e estados. Temos iniciativas, mas não são sustentadas por uma política. Não adiantafazer um concurso de redação sobre o 13 de maio e nunca mais fazer uma discussão sobre o assunto na escola””, avalia Hédio.
Eliane reforça que, mais do que implementar a lei, é necessário treinar os profissionais da área de educação. “”Além de levar o discurso para a criança, o professor deve se perceber também como alguém sujeito a praticar discriminação. E isso só é possível por meio de curso de formação.””
Ela afirma que não se pode pensar apenas na educação da criança negra, mas numa educação anti-racista para brancos e negros. “”A criança negra está carente de receber elementos para compreender o racismo e perceber a diversidade racial.””