Fronteiras e desafios para a agenda democrática brasileira
Por: GIFE| Notícias| 03/04/2017Buscar caminhos para qualificar o campo social brasileiro, fomentando a reflexão, a cultura de doação e o fortalecimento das organizações da sociedade civil, e, portanto, da democracia, é um dos objetivos da atuação do GIFE.
A complexidade desse campo e o grande número de atores que nele se move fazem com que as respostas e ferramentas para isso não sejam simples. Ao contrário, ao transitar por esse ecossistema, um olhar multifacetado é fundamental para uma construção coletiva, que dê conta de todas as vozes.
Essa orientação já vem pautando a atuação do GIFE no pensar e articular o campo do investimento social privado no Brasil. E é na mesma direção que segue seu novo Secretário-Geral, José Marcelo Zacchi. A multissetorialidade que marca sua trajetória traz chaves variadas de leitura e articulação que casam muito bem com as diretrizes do GIFE, cujo papel central é gerar conhecimento a partir de articulações em rede para aperfeiçoar o ambiente político institucional do investimento social e ampliar a qualidade, legitimidade e relevância da atuação dos investidores sociais privados.
Zacchi tem experiência tanto em governo quanto no setor privado, com passagens pela Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, onde foi assessor e chefe de gabinete entre 2003 e 2004, além de ter atuado como consultor do ONU-HABITAT, do BID e do Banco Mundial em projetos sociais, urbanos e de segurança pública no Brasil e na América Latina. Foi ainda fundador e dirigente do Instituto Sou da Paz, da Casa Fluminense e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e apresentador do programa Navegador, sobre inovação e tecnologia, na Globo News.
Neste número do RedeGIFE, Zacchi revela um pouco de suas ideias e de como elas convergem em sintonia com o atual momento da instituição.
Em diversos momentos você atuou em organizações da sociedade civil. O que traz dessas passagens?
Foram vários envolvimentos articulando ações de interesse público em diversas organizações ao longo do caminho, como no Instituto Sou da Paz, no Fórum Brasileiro Segurança Pública e, mais recentemente, na Casa Fluminense. Os temas e contextos de dedicação variaram, mas em todos havia o sentido comum de agregar atores múltiplos para a construção coletiva de respostas a desafios públicos, ajudando a criar as condições para sua resolução. Formar ambientes de mobilização, criação e difusão de ideias e práticas para a superação contínua de fronteiras sociais, econômicas e políticas, interconectar a cidadania com o setor privado e o poder público em torno desses objetivos.
Acredito muito na centralidade do papel de uma sociedade plural, ativa e articulada para um horizonte de desenvolvimento sólido em qualquer contexto. Acho que um dos principais êxitos da trajetória recente do Brasil foi o avanço nesta direção, com a multiplicação de espaços de ação coletiva, o fortalecimento da sociedade civil e a expansão da consciência de papéis compartilhados na construção pública. O GIFE tem uma participação valiosa nessa história desde o princípio, e é uma fonte central de satisfação ter podido também contribuir com ela no meu percurso pessoal.
Como foi sua experiência trabalhando no poder público?
Acho que tudo que fazemos na vida pública encontra sua melhor expressão quando consegue cumprir com efetividade o objetivo a que se destina, e dialogar em simultâneo com a construção ampla de soluções para nossos desafios coletivos. Neste sentido, a motivação para o diálogo construtivo com as políticas públicas esteve presente em tudo a que me dediquei, e o chamado para assumir tarefas buscando levar este acúmulo na atuação direta no poder público foi consequência quase natural.
Seja trabalhando pela expansão e qualificação de serviços sociais e urbanos em âmbito local no Rio de Janeiro, ou pela abertura de caminhos pela reforma e aprimoramento da segurança pública no plano nacional, ou ainda em organizações internacionais, a experiência de atuar no serviço público é sempre pessoalmente estimulante, pelas possibilidades de ajudar a gerar transformação e benefícios em larga escala, e um aprendizado valioso, pela compreensão ampliada dos vários fatores e atores interagindo na esfera pública, seus obstáculos e potencialidades. Trago comigo esse legado, com a alegria pelo que foi possível realizar e o espírito sempre renovado de contribuir de forma permanente para a qualificação dos nossos modos de ação pública, desde a dimensão mais local e cotidiana aos desafios globais.
Você também acumula experiências na área de comunicação, com o Overmundo e o programa Navegador. Qual o lugar dela no campo social?
Construção pública com alcance e raízes firmes é comunicação, articulação e interação virtuosas contínuas, não é? A criação e renovação de respostas coletivas se faz sempre na circulação e troca múltiplas de ideias e conhecimentos – quanto mais amplas, abertas e plurais, melhor. Isso está a meu ver na essência da democracia e da sua virtude e tarefa maiores: da criação e cultivo de canais compartilhados com essas características emerge a capacidade de produzir, validar e atualizar com dinamismo soluções na esfera pública, necessárias a cada momento. Renovar esses canais de forma positiva é também um dos desafios claros no Brasil e no mundo hoje, desafiando-nos à atualização agregadora e produtiva. O envolvimento com a comunicação, e com suas novas formas na era digital e em rede, vem daí, e acho que faz parte assim tanto da minha vivência quanto da de todos que se dedicam à vida cidadã em nosso tempo. A habilidade para criar, incidir e fazer a diferença nos desafios comuns passa por isso, que será sempre assim um requisito decisivo em nosso campo.
Olhando para sua trajetória e para o cenário brasileiro atual, é possível elaborar um raciocínio sobre o que mudou no campo social do país? Quais são os desafios do momento?
Apesar das crises múltiplas que vamos enfrentando, me parece essencial não perder a perspectiva dos muitos avanços que pudemos construir no país nas últimas décadas. A partir da transição democrática dos anos 1980, vivemos um ciclo de construção incremental que nos permitiu acumular conquistas valiosas nos planos social, econômico e institucional. Este ciclo se cumpriu, e isso traz ao primeiro plano as evidências dos seus limites e a consciência imprescindível das tarefas múltiplas adiante, em dimensões diversas. Mas saber reconhecer os avanços é para mim fator não de acomodação, mas de precisão no balanço e de afirmação da nossa capacidade de preservá-los e ir além deles.
A possibilidade de renovar energias nesta direção demanda também a clareza de que todos esses avanços passaram, naturalmente, pela capacidade de mobilização e implantação de políticas públicas virtuosas nos vários níveis, mas que tiveram suas raízes primeiras na sociedade. Desde os primeiros movimentos de democratização lá atrás, a conjugação de esforços na sociedade civil teve um papel decisivo em inspirar mudanças, basear sua efetivação e desenvolver o repertório para convertê-las em práticas públicas consistentes. Ao longo do caminho, avançamos na expansão contínua de atores e organizações dedicados a esse processo, no aprimoramento dos modos de ação, na multiplicação de espaços de envolvimento, do associativismo local à criação de plataformas temáticas diversas, passando por novas formas de atuação do setor privado, com a mobilização de capacidades e recursos para a produção de bem público. Esta é uma história compartilhada por todos, e o tecido social fortalecido legado por ela é um patrimônio do qual não podemos abrir mão.
Agora, por sua vez, é nítida a tarefa de revigorá-lo e apontá-lo para o futuro. Precisamos claramente encontrar caminhos para um novo horizonte de desenvolvimento sustentável comum, renovando as habilidades de diálogo positivo na sociedade e produzindo respostas para os limites postos nas diversas áreas: educação, saúde e qualidade de vida, gestão das cidades, redução de desigualdades, a agenda ambiental e de mudanças climáticas, ciências e inovação, desenvolvimento econômico e expansão de oportunidades em geral, e o retomar da trilha de aprofundamento da cidadania e da democracia. Foi na soma de esforços distribuídos de todos os setores que produzimos avanços nessas áreas todas nas últimas décadas, e terá de ser com ela que o faremos no percurso por vir.
Nessa perspectiva, quais são agendas importantes agora? E como o GIFE e o universo do investimento social privado poderão contribuir?
Há agendas múltiplas por desdobrar, é claro, como é natural diante da amplitude dos desafios.
Antes de tudo, se a trajetória descrita nos lega de forma notável uma sociedade civil e modos de participação pública do setor privado ampliados e fortalecidos, isso não significa que tenhamos um ambiente pronto e plenamente consolidado. São muitos os limites de sustentabilidade econômica e institucional enfrentados pelas organizações da sociedade civil, as oportunidades de aprimoramento dos seus instrumentos de governança, atuação e transparência, as possibilidades de expansão de práticas regulares de avaliação, impacto e disseminação de experiências. O GIFE tem contribuído de forma decisiva nessas frentes todas desde a sua criação, e é natural que busque seguir fazendo-o sempre de forma crescente, em sintonia com os desafios presentes.
Para isso, mantendo sempre o empenho na ampliação do universo do investimento social no Brasil nas suas várias frentes, indo do fomento à cultura de doação e envolvimento na sociedade como um todo à expansão da participação pública do mundo corporativo, da promoção dos ambientes de negócios de impacto e finanças sociais à afirmação de um marco legal e regulatório que possa amparar e impulsionar tudo isso, de forma sustentável e fortalecida, no país. E renovar também as vias de interconexão e cooperação entre os vários atores envolvidos nesses esforços, na rede de associados do GIFE, no seu universo amplo de parceiros e na produção conjunta de respostas pela sociedade e o poder público como um todo.
Acho que temos aí um leque generoso e vital de aportes possíveis para a interface com o chamado presente de afirmação de uma nova etapa de construção democrática e de desenvolvimento para o país. Com este chamado lidamos hoje, e com este sentido de pluralidade, ação coletiva e capacidade de diálogo e cooperação revigorados estou certo que poderemos corresponder a ele.