Fundações e ONGs: transparência para gerar confiança

Por: GIFE| Notícias| 26/08/2011

Eleno Gonçalves*

Outro dia numa mesa de bar uma amiga contava sobre sua recente viagem à Tailândia. Até que perguntei, admito, em tom malicioso, sobre a famosa “massagem tailandesa” – no Brasil anunciada também em casas de prostituição. Ela respondeu que a massagem tailandesa é milenar e faz parte da cultura daquele povo. E acrescentou uma informação que me surpreendeu: na Tailândia, a maioria das casas oferece este serviço ao ar livre, em salas abertas ou com paredes de vidro, totalmente transparentes.

Por quê? “É a transparência que protege tanto os turistas e clientes quanto as massoterapeutas, não deixando dúvidas, para quem passa na rua, sobre o que acontece lá dentro. Isso ajuda a afastar o turismo sexual.”

Ao ouvir essa história pensei como isso se aplica ao mercado social ou setor sem fins lucrativos. Chamado também de terceiro setor ou sociedade civil organizada, ele compreende as FASFIL (Fundações e Associações Sem Fins Lucrativos) criadas voluntariamente pela sociedade e voltadas para o interesse público. Muitas popularmente conhecidas como ‘ONGs’ ou ‘Institutos’.

Este setor teve um crescimento fantástico nas últimas duas décadas, quaisquer que sejam os indicadores escolhidos: número de organizações, número de profissionais empregados ou recursos financeiros envolvidos. O estudo publicado em 2008 (com dados de 2005) pelo IBGE, Ipea, Gife e Abong mostra que o número de FASFIL saltou de 107mil em 1996 para 338 mil em 2005. Neste ano elas empregavam mais de 1,7 milhão de pessoas (sem contar os informais e o grande número de voluntários).

O crescimento, a profissionalização e o peso econômico do mercado social trazem inúmeros desafios para a sociedade brasileira, além de causar certos incômodos para a iniciativa privada e para o estado. Um deles está relacionado ao mau uso que se faz dessas figuras jurídicas (fundações e associações). Em quase todos os países do mundo esse setor goza de variadas formas de incentivos, isenções e imunidades. A contrapartida para esses incentivos quase sempre passa por rígidos padrões de governança, que incluem transparência, prestação de contas e responsabilidade. No Brasil, a sociedade civil se profissionalizou há apenas uma geração, a legislação é muitas vezes confusa, e ainda existem muitas brechas para o uso mal intencionado ou indevido de ONGs.

Assim, muitas ONGs foram e são criadas para atender a interesses privados. Vejamos alguns exemplos: ONGs de comércio ou prestadoras de serviço que praticam concorrência desleal com empresas do mesmo ramo; ONGs que remuneram indiretamente seus dirigentes “ativistas voluntários” por meio das empresas destes; ONGs que são braços políticos de sindicatos, governos ou parlamentares, por vezes utilizando dinheiro público ou proveniente de corrupção; ONGs criadas para lavagem de dinheiro de empresas; ONGs cujos associados são também os próprios empregados etc.

Porque isso ocorre? São vários os motivos: falta de uma legislação adaptada à realidade atual, baixa capacidade ou inviabilidade de fiscalização por parte das autoridades, cultura de conivência com a corrupção, sistema tributário caótico que incentiva empresas e pessoas a dar “jeitinhos” etc.

Generalizar é injusto. Assim como nem todo político é corrupto e nem todas as empresas sonegam: nem toda fundação é ‘pilantrópica’. No setor social a maioria das organizações e as pessoas que nelas trabalham são sérias, de boa-fé, e trabalham de fato para bem comum. São muitas as fundações empresariais, familiares e independentes que promovem de fato a transformação social, e que são verdadeiramente voltadas para o interesse público.

Mas é comum quando alguém diz que trabalha numa ONG, várias perguntas, maliciosas ou não, naturalmente serem feitas: “É séria mesmo?”, “Quem está ganhando dinheiro com isso?”, “E a CPI das ONGs?”, “Quem é o ‘dono’ da ONG?”. Isso é perfeitamente compreensível, afinal, a falta de transparência é ainda a regra para a grande maioria das fundações e ONGs. Os exemplos acima, quando escandalizados ou explorados, ajudam a despertar a desconfiança e generalizá-la para todo o setor.

Há muitos profissionais do setor social, grandes líderes sociais, que ainda têm uma visão estrita e crêem que o simples fato de trabalharem por uma causa lhes dá “foro privilegiado”, como se fossem legítimos representantes do Bem. Alguns ficam até constrangidos em “”falar de dinheiro””, “”abrir os números””, como se houvesse um segredo a ser guardado.

Entretanto, pelo contrário: justamente por arrecadarem doações de indivíduos e empresas, as ONGs deveriam praticar uma transparência igual ou maior do que a exigida dos governantes. As pessoas depositam não somente recursos, mas sua confiança nessas organizações. Russell Leffingwell, da Carnegie Corporation, disse em 1952: “Achamos que as fundações deveriam ter bolsos de vidro” (http://www.glasspockets.org). O Foundation Center é uma das principais organizações no mundo que atua na promoção de total transparência das fundações e ONGs.

Esse tema é uma tendência consolidada nos Estados Unidos. No Brasil algumas organizações já despertaram para a importância da transparência no terceiro setor. O GIFE e o IBGC publicaram um guia de melhores práticas de governança em 2009 e lançaram um curso de governança específico pra fundações e institutos empresariais no ano passado. Este ano o GIFE iniciou um movimento para promover a transparência entre os seus associados, a maioria fundações e institutos de origem empresarial.

Os cidadãos já não confiam cegamente nas ONGs e fundações da mesma forma ingênua como antigamente. Após o “boom” das últimas décadas, hoje há muitas ONGs endividadas e há uma tendência de ‘consolidação’ (este termo é muito usado pelo mercado financeiro para os momentos de quebradeiras, falências, fusões e aquisições). As organizações que sobreviverem serão as que conseguirem conquistar e manter a confiança de seus ‘clientes’ intermediários ou finais, ou seja: doadores, investidores sociais privados, empresas patrocinadoras, beneficiários e a sociedade em geral. A publicação de demonstrativos financeiros completos ainda é rara entre a maior parte das fundações e ONGs.

Nessa era da desconfiança, a transparência poderá ser o grande diferencial para as fundações e ONGs, pois a reputação é o grande ativo da maioria delas. Por isso, todas as fundações e associações, desde as grandes de origem empresarial até as pequenas ONGs de base, precisam melhorar substancialmente seus sistemas de governança, com uma atenção especial para a transparência. Ela deve ser vista como oportunidade e não como obrigação. Ela pode propiciar a verdadeira alavancagem do investimento social, pois atrairá apoios e parcerias. Ela serve também como um meio de proteção contra as suspeições indevidas.

Por fim, como todo esse longo discurso se realiza na prática? Como cobrar transparência de uma fundação ou ONG? Segue abaixo uma lista de itens cuja publicação na internet deveria ser feita por todas as organizações sem fins lucrativos. Os seis primeiros são itens essenciais, ao passo que os quatro últimos são mais avançados:
1) Missão, Objetivos, CNPJ e Estatuto Social da organização;
2) Composição da Diretoria ou Conselho não remunerado (nome de cada membro);
3) Composição da Diretoria ou Equipe Executiva (nome completo dos profissionais);
4) Relatório de Atividades (o que a organização fez no ano anterior);
5) Demonstrações Contábeis e Financeiras (ano anterior);
6) Plano de Ação (o que a organização pretende fazer no ano seguinte);
7) Critérios utilizados para definição de beneficiários;
8) Parecer do Conselho Fiscal e Auditores Independentes (ano anterior);
9) Indicadores de Impacto e/ou Resultado (atingidos no ano anterior);
10) Metas de Impacto e/ou Resultado (pros anos seguintes).

Para usar a analogia inicial: precisamos que os líderes das fundações e ONGs sejam como as massoterapeutas tailandesas, ou seja: mais do que a obrigação (no Brasil sempre tem alguém querendo criar uma nova lei), que eles tenham o desejo de ser transparentes. Na outra ponta deste mercado, doadores, mantenedores e beneficiários precisam agir como os clientes da massagem, ou seja, devem exigir esta conduta por parte das organizações, inclusive condicionando apoios futuros.

Pode parecer um sonho distante tal nível de sofisticação do mercado social acontecer no Brasil. Sabemos que a realidade não muda do dia para a noite. É preciso que os líderes queiram mudar e dar os primeiros passos para que se desenvolva no Brasil um ambiente favorável e sustentável para as organizações da sociedade civil. Organizações que atuam em causas públicas não têm ou não deveriam ter motivos pra continuarem ocultas. Este esforço coletivo por mais transparência aumentará a percepção positiva que os cidadãos têm a respeito das ONGs, fundações, FASFIL ou o nome que se queira dar a este setor tão fundamental em qualquer sociedade livre, plural, justa e democrática.


*Eleno Paes Gonçalves Junior, 35 anos, administrador (CRA 111106) especialista em gestão de iniciativas sociais. Foi gerente institucional do GIFE entre 2007 e 2011 e, hoje, é
superintendente adjunto de operações do IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa.

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