Imposto, poder e filantropia

Por: GIFE| Notícias| 16/10/2013

*Richard Murphy

Ninguém é neutro quando se trata de riqueza. Você a tem ou não. Ou você a aprova ou não. Você a deseja ou talvez não. É e sempre foi uma questão que divide. É claro que essa divisão se estende à filantropia, que é um derivado direto do acúmulo de riqueza.

A riqueza tem sido vista como uma coisa boa na história recente. A filosofia de John Locke, segundo a qual a riqueza é aceitável se for baseada no valor que uma pessoa tem segundo seu próprio trabalho, acrescido de um recurso que ocorre naturalmente, foi adaptada pelo filósofo neoliberal Robert Nozick. Ele derrubou a noção de Locke de valor agregado do trabalho do dono da riqueza sugerindo que a riqueza pode ser acumulada com o esforço dos outros, desde que os outros não sejam coagidos no processo. John Rawls, um contemporâneo de Nozick, discorda. Ele só tolera a riqueza se ela puder demonstrar claramente que beneficia aos mais pobres em qualquer comunidade.

Atitudes modernas em relação à riqueza
As profundas linhas divisoras nas atitudes modernas em relação à riqueza são evidentes na diferença entre Nozick e Rawls: este último com um viés para os pobres e o primeiro assumindo que eles não têm qualquer reivindicação razoável sobre a riqueza que o trabalho deles produz, mesmo se essa riqueza estivesse disponível para eles. Muitos gostariam de pensar que os filantropos têm uma inclinação à posição de Rawls, mas a realidade é que o acúmulo de grande parte da riqueza usada na filantropia moderna é filosoficamente justificado por Nozick, já que o acúmulo é publicamente louvado com base em uma narrativa de esforço pessoal baseado no pensamento de Locke, mesmo que tenha pouca credibilidade em uma economia moderna integrada. É importante observar que todo esse pensamento ocorre antes de considerar o imposto sobre o acúmulo de riqueza. O imposto é a grande preocupação da maior parte do meu trabalho.

É claro que muitas das antigas fundações filantrópicas foram criadas na era de baixa taxação, anterior à Segunda Guerra Mundial. Mas, desde então, muitas buscaram replicar essa vantagem de formas que eu questionaria. O acúmulo de riqueza moderno, especialmente na era de relaxamento de controles de capital após 1980, tem sido bastante associado ao que eu chamaria de abuso fiscal.

O papel dos paraísos fiscais
Hoje o acúmulo de riqueza muitas vezes se dá no exterior, com o uso dos paraísos fiscais, ou resulta do investimento em empresas que usaram técnicas agressivas de evasão fiscal para evitar as obrigações tributárias que poderiam incorrer nos países onde geraram sua receita e onde empregam seus funcionários.

Eu e meus colegas da Rede de Justiça Fiscal argumentamos que os paraísos fiscais criaram deliberadamente uma desigualdade no mundo. Deixando de lado por um momento a dimensão de seu uso, o anonimato que eles oferecem e a legislação fiscal subversiva que criaram para beneficiar o que sempre será uma pequena elite, eles também deliberadamente criaram desigualdades em nossas economias. Essas desigualdades favorecem empresas multinacionais em detrimento às nacionais, grandes empresas em detrimento às pequenas, empresas bem estabelecidas em detrimento às novas, além de possibilitarem o rápido acúmulo de capital em um ambiente livre de impostos. Nada disso ocorreu por acaso: tudo isso resulta do projeto, com base em uma lógica que os poucos que são capazes ou querem usar esses locais merecem os resultados, que devem ser negados ao restante da sociedade.

Parece ser apropriado que alguns tenham preocupações éticas em relação a isso. Embora os paraísos fiscais sempre tenham sido usados de forma legal, o fato é que os mesmos mecanismos que foram usados para acumular riqueza também foram usados para facilitar o crime internacional e organizado em uma escala nunca vista antes. Uma pequena parte desse uso é na forma de corrupção que tem flagelado muitos países em desenvolvimento. A maior parte é na forma de crimes que todos reconhecemos, como lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e de pessoas. Há também o crime financeiro: suborno comercial, abuso de informação privilegiada e evasão fiscal que acontecem por meio dos paraísos fiscais. A maior perda de todas, no entanto, é quase certamente o custo que os países em desenvolvimento têm que arcar pelo fato de as empresas multinacionais desviarem o lucro desses países para paraísos fiscais, usando o mecanismo de avaliação incorreta de transferência, que a Christian Aid estima em custar anualmente àqueles países mais do que o orçamento total de assistência no mundo todo.

E a filantropia?
Quando tanto acúmulo moderno de riqueza é associado a tais métodos, é de se admirar que nós, e os outros, questionemos o papel do filantropo moderno no combate a essas questões que a vida moderna enfrenta, muitas delas criadas pelas mesmas estruturas que ajudaram o acúmulo de riqueza do filantropo? Além disso, muitas vezes grande parte dos orçamentos de fundações é investida em ações de empresas que vão longe para não pagar imposto.

Também há outras preocupações. O fato que nem todos são iguais na doação filantrópica é um problema óbvio. No Reino Unido, como em qualquer outro lugar, os contribuintes nas faixas mais altas de imposto têm direito a votos desiguais nas deliberações sobre o benefício das concessões fiscais, apesar de não haver evidências que, em termos de parcela de rendimentos disponíveis, eles doam mais para causas filantrópicas do que os outros, havendo inclusive algumas evidências contrárias. Isso leva a uma probabilidade que os interesses dos mais ricos sejam excessivamente representados na atividade filantrópica – uma probabilidade que aumenta pelo fato de o sistema tributário do Reino Unido oferecer uma recompensa direta e pessoal ao filantropo que está na faixa mais alta de imposto, através de um reembolso parcial do imposto da soma doada, sendo que não há tal benefício para os contribuintes na faixa básica de imposto. Isso aumenta o incentivo para que os que têm rendas mais altas doem, mas também aumenta a chance de eles direcionarem sua generosidade para causas que dizem respeito a eles e não necessariamente à sociedade como um todo.

A filantropia distorce os resultados?
Isso leva à questão óbvia sobre se isso distorce os resultados que a filantropia busca promover. Há um viés inerente no sentido de manter o status quo em uma sociedade que inevitavelmente funciona bem para a filantropia? Quando uma filantropia deseja não somente aliviar a pobreza, mas questionar por que os pobres sofrem as injustiças que a sociedade impõe sobre eles, tanto aqui no Reino Unido quanto no mundo todo, os benefícios fiscais são usados para limitar a atividade filantrópica? Fazer essas perguntas pode levar a filantropia a uma arena perigosa de “políticas”, que é negada aos que desejam receber concessões fiscais.

Trata-se simplesmente de um mecanismo para exercer o controle sobre uma parte da sociedade que deveria fazer perguntas relevantes sobre as verdadeiras mudanças necessárias, inclusive mudanças fiscais, que eliminariam muitos dos problemas que a filantropia existe para combater? E, assim, a concessão fiscal na prática tem atuado como uma poderosa ferramenta para manter o status quo dos doadores maiores (por valor, se não pela proporção da renda ou da riqueza) ao invés de questioná-lo?

Os incentivos fiscais têm um papel útil?
Por todos esses motivos, eu não estou convencido que os incentivos fiscais tenham um papel útil na filantropia. Esses incentivos fiscais podem custar até £ 2 bilhões ao ano no Reino Unido, sendo que o uso de grande parte desse dinheiro é ditado inevitavelmente por doadores e não pelos necessitados. Se essa soma anual fosse dedicada a aliviar a pobreza digamos, financiando um banco de microfinanças no Reino Unido, ela não seria mais eficiente em aliviar a pobreza do que a concessão de benefício fiscal para aqueles que não precisam?

Essa pergunta raramente é feita e a sugestão, feita em 2012, que essa maior concessão fiscal para os doadores mais ricos deveria ser limitada, originou uma revolta furiosa, principalmente entre os que desfrutam do benefício. Mas no ambiente político atual, menos febril, eu ainda acho que essa pergunta deve ser feita – no mínimo porque o debate de 2012 revelou o poder que os doadores mais ricos e suas fundações exercem nesse debate e sobre os recipiendários de sua benesse, que apoiam o benefício fiscal que geralmente só beneficia os mais ricos – apesar de, em alguns casos, terem como finalidade filantrópica o alívio da pobreza, o que significa, por implicação, que combateriam a desigualdade.

Também não estou convencido que a associação entre patrocinador – visto como a pessoa de habilidade excepcional, independentemente da sociedade onde vive – e a ação filantrópica justificada por Locke, possa ser defendida na sociedade moderna onde a criação da riqueza quase invariavelmente resulta da ação coordenada de várias pessoas, e não somente de um indivíduo excepcional que pode, tanto por boa sorte quanto por capacidade, ter tido a oportunidade de liderar aquele grupo de pessoas. A filantropia deveria ser firmada em um princípio onde a acumulação da riqueza na qual se baseia não tenha causado dano algum, como argumentou Rawls. Assim, surgem sérias questões para os que administram as fundações, inclusive:

• A condição de filantrópica e os benefícios fiscais que ela enseja são consistentes com os objetivos sociais que buscamos promover?
• Os fundos que administramos foram tributados de forma justa?
• Podemos ter certeza que os fundos que administramos vêm de uma fonte que foi devidamente tributada antes de ser doada?
• Como podemos alcançar metas sociais conflitantes com as condições dos benefícios fiscais que desfrutamos a título de filantropia?

As perguntas sobre governança fiscal agora estão no cerne do debate da justiça fiscal no caso de grandes empresas. Talvez seja hora para que isso também se aplique às fundações. Para os que têm coragem de prosseguir com essa questão, no entanto, vai um alerta: essa questão vai além do centro do debate sobre onde está a pobreza em nossa sociedade, e as respostas podem não ser agradáveis.

*Richard Murphy é um dos fundadores da Rede de Justiça Fiscal e lidera a Pesquisa Tributária no Reino Unido. Email: [email protected]

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